Opinião
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12 de outubro de 2021
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07:07

Sua majestade, o algoritmo (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Luciano Mattuella (*)

Na minha adolescência, peguei bem a transição das fitas cassetes e dos cd’s para o formato de música digital. Lembro de fazer download das faixas que eu gostava no Napster ou no eMule, dois programas de compartilhamento de arquivos da época. A velocidade da internet nos anos 90 não era grande coisa, e era costume conectar apenas depois da meia-noite, quando era cobrado somente um pulso telefônico. Não foram poucas as noites em que fui dormir e deixei o computador ligado, na esperança de que na manhã seguinte eu já tivesse no computador algum álbum do Nirvana, do Pearl Jam, dos Paralamas do Sucesso, entre tantas outra bandas que me fascinavam na época. Os arquivos mp3 eram abertos no WinAmp, um reprodutor de mídia que se tornou icônico de uma geração.

Volta e meia eu tinha acesso a alguma revista de música, mas a maior parte do meu gosto musical era construída a partir das indicações de amigos. Sempre tinha aquele conhecido a quem recorrer, que sabia muito sobre os últimos lançamentos. Boa parte da graça disso estava em descobrir bandas que eu nunca teria ouvido. Eu sentia esse encontro com a diferença como um alargamento do mundo, e também como uma forma de estreitar laços com os amigos. Foi por aí que, mais tarde, acabei me aproximando do jazz, estilo musical que aprecio muito hoje em dia.

Devo muito do meu gosto musical, literário e cinematográfico a estas recomendações de amigos e conhecidos. É como se eu tivesse me construído através deles, carregando um pouco de cada um em mim – aliás, esta poderia ser uma boa definição de amizade: carregar um tanto do outro em si. 

Nos últimos tempos, cada vez menos tenho tido essa sensação de descobrir algo através de um conhecido ou de um amigo, parece que todos temos visto, escutado e lido as mesmas coisas. Os tempos são outros.

Costumo não ser muito saudosista, aliás, vejo mesmo a nostalgia como uma forma de indisponibilidade ao outro: quando estamos tão apaixonados por aquilo que já foi, perdemos a oportunidade de nos reinventarmos a partir do diferente e do novo. O saudoso, em certa medida, é alguém que padece da uma miopia seletiva, não conseguindo ver no mundo a não o que lhe fizer eco. Neste sentido, tendo a pensar a nostalgia como uma derivação do narcisismo. Entretanto, procuro também estar advertido de que a novidade, quando vem dar à praia, nem sempre o faz na qualidade rara de sereia, para citar Gilberto Gil. 

Fiquei pensando nisso tudo quando assisti aos primeiros episódios de Round 6, série recém-lançada pela Netflix. Apesar de ter, sim, me entretido, a minha percepção ao final foi de que aquilo era uma produção absolutamente esquecível, sem nada que a diferenciasse de tantos outros seriados que estão por aí. Caso o leitor não tenha visto, a premissa da série coreana é a seguinte: o personagem principal está passando com dificuldades financeiras graves e a ele é oferecida a oportunidade de participar de um misterioso jogo mortal cujas provas simulam brincadeiras infantis. Ainda que a premissa em si seja original, minha sensação foi de estar frente a uma – mal-acabada – colcha de retalhos. A ideia de um jogo sangrento vem de Jogos Vorazes, as provas em si lembram muito Fall Guys, jogo de videogame que virou febre durante a pandemia, o estilo distópico tem todas as tintas – mal pintadas – de Black Mirror… e por aí vai.

Mesmo como relação aos tópicos abordados, o seriado parece um checklist: estão ali as questão de gênero, da emigração, do capacitismo, do etarismo, da meritocracia, da democracia… Todas temáticas essenciais, mas abordadas de forma caricata e superficial, apenas um acendo à audiência instruída.

Mesmo assim, a série tem feito um estrondoso sucesso. Acabei assistindo justamente de tanto escutar outras pessoas falando, algumas mesmo dizendo que esta era “a melhor série que tinham visto”. Mas o mesmo já foi falado de Stranger Things (outra colcha de retalhos nostálgica, aliás). E também de Sense8. E de La Casa de Papel. Ou seja: parece que sempre estamos frente à maior obra de arte jamais feita – até a semana seguinte.

Muito do meu incômodo enquanto via este primeiro episódio de Round 6 veio de que por muitas vezes eu me sentia puxado para fora da trama ao ir me dando conta das referências que compõem o roteiro e o estilo visual do seriado. Era como – e este é o meu ponto – eu estivesse vendo as engrenagens do algoritmo da Netflix operando à céu aberto, na minha frente.

Em uma época tão pautada pelo individualismo e pelo esgarçamento do eu, chega a ser irônico que tenhamos o nosso gosto tão pasteurizado. Vivemos em um tempo que nos traz o mandamento de “sermos nós mesmos, exatamente como todos os outros”. A autenticidade, quando vinda como um imperativo social, acaba se transformando em  uniformização. 

Estamos frente ao algoritmo da mesma forma como uma criança se vê cuidada pelos adultos: são eles que sabem o que é melhor, o que deve ser comido, o que deve ser feito e por onde não se pode circular. Nossa relação com as produções culturais tem estado de tal forma abandonada às escolhas antecipadas que acaba sendo uma espécie de variação estética da lógica do narcisismo infantil mais básico: o que me agrada sou eu, o que não me agrada é o outro e deve ser eliminado ou, pior ainda, nem aparecer no meu horizonte de escolhas. Nos sentimos reconfortados ao nos jogarmos no sofá e ver que o algoritmo “nos entende” e nos entrega o que nos torna ainda mais auto-referidos.

Quando crianças, nos sentimos confortáveis quando sabemos que um adulto tem as ferramentas para decidir o que é melhor para nós – assim também estamos seguros de seu amor. Este cuidado se confunde com a apresentação do mundo, assim a realidade parece ter sido feita sob medida para o nosso narcisismo infantil. Com o tempo, entretanto, vamos circulando por outros espaços e nos frustamos ao saber que as coisas não são bem assim, que há uma aspereza fundamental no nosso encontro com o mundo. Para alguns adultos, esse desencontro se torna uma ameaça; para outros, uma aventura.

Não que haja problema em, por vezes, preferirmos o conforto de assistir ou ler algo que parece ter sido feito “para nós”, alguma série ou filme que nos acolha em nosso próprio ninho. O que me parece digno de reflexão é a forma tão entusiasmada como nós recebemos cada novo suspiro do algoritmo, como se houvesse ali estivesse o sopro da criação… mas, no fundo, é uma produção que não faz mais do que ser um monumento à inflação egóica de nossos tempos. 

Todos temos nossos “guilty pleasures”, esses pedaços de cultura que consumimos sabendo que não são lá muito originais, mas que nos trazem de volta para casa. O problema, me parece, é quando não nos arriscamos sequer a abrir a janela e ver o clima que está fazendo do lado de fora.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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