Opinião
|
19 de outubro de 2021
|
14:48

A fome é um projeto de Bolsonaro (por Maria do Rosário)

Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Maria do Rosário (*)

São duas as imagens que simbolizam a mais profunda dor dos seres humanos: a morte e a fome. O Brasil, outrora país de esperança, sofre com os sepultamentos em massa que já impactaram mais de 600 mil famílias pela pandemia criminosamente gerida e com a luta das pessoas por ossos e comida coletados até mesmo no lixo, movidas pela fome e miséria absolutas

A irresponsabilidade quanto à pandemia é alvo da CPI no Senado e pedidos de impeachment, que, ansiamos, trarão a fatura a ser paga por Bolsonaro. Quanto à fome, traz à tona um grave retrocesso no enfrentamento a um problema estrutural no Brasil, da desigualdade econômica e social, alvo das políticas entre 2003 e 2016, período em que o Partido dos Trabalhadores governou nosso país.

A segurança alimentar é reconhecida como direito fundamental pelas Normas Internacionais, está prevista na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. O direito à alimentação adequada é pré-requisito para a realização de outros direitos humanos. No Brasil, a Emenda Constitucional 64 de 2010 (Governo Lula), estabelece a alimentação como um direito social assegurado na nossa Constituição Federal.

A forme, até então um problema brasileiro endêmico em razão da alta concentração da renda e riqueza, foi frontalmente enfrentada a partir do Governo Lula (2003/2010), que reformulou o programa criado no governo anterior, transformando-o numa política estratégica e de grande escala. Como resultado, no governo Dilma, em 2014, o Brasil foi declarado pelas Nações Unidas para a Alimentação (FAO) como País fora do Mapa Mundial da Fome.

Segundo Relatório da ONU, de 2002 a 2013 a população de brasileiros considerados em situação de subalimentação caiu em 82%. Esta meta de redução, incluída entre os Objetivos do Milênio da ONU, fez com que a FAO indicasse o Brasil como exemplo mundial a ser seguido no tema. Fome Zero e o Bolsa Família foram o caminho. Segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), baseado em dados de 2001 a 2017, no decorrer de 15 anos, estes dois Programas reduziram a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%.

Como algo simbólico desse período, a mobilidade social geral se destacou, pois coincidiu com o acesso da população a inúmeros bens essenciais, como compra de linha branca para suas casas (geladeira, fogão, máquina de lavar), com famílias podendo festejar os finais de semana com alimentação melhor incluindo carne, e até mesmo, as tão faladas, férias de lazer, viajando de avião.

Porém, no projeto da morte, trazido por Bolsonaro, a realidade mudou drasticamente e o Brasil voltou para o Mapa Mundial da Fome, com a violação, dentre outros, do direito humano à alimentação. Os dados apresentados no Inquérito Nacional de Insegurança Alimentar conduzido pela Rede PENSSAN, apontam que atualmente, 116,8 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar e 19 milhões de pessoas passam fome (Penssan 2021). A mesma investigação indica que a fome no Brasil tem gênero, classe, escolaridade e cor. São as famílias chefiadas por mulheres, negras e de baixa escolaridade que mais sofrem com a fome.

Para compreender este trágico retorno ao prato vazio é necessário situá-lo no contexto político após o golpe de 2016, de caráter neoliberal, quando se deflagrou o desmonte do arcabouço das políticas econômicas e sociais do País. Uma das primeiras medidas foi a aprovação da Emenda Constitucional 95, que congelou o orçamento social, juntamente com o desmonte do conjunto de direitos da cidadania.

No Governo Bolsonaro, as políticas implementadas abandonam a Agricultura Familiar, geradora de alimentos, para favorecer o Agronegócio produtor de commodities, o Brasil do Agro é o País da Fome. Esvaziam-se as políticas de financiamento, compra direta de produtores para alimentação escolar, extinguem-se estruturas participativas como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, liberam-se venenos proibidos em outros países, aumentam os conflitos no campo. Soma-se a pandemia mal enfrentada e de caráter genocida, aliada a uma inflação e descontrole de preços, que resultam na volta da fome ao Brasil. 

O quadro atual reflete o aumento da pobreza e extrema pobreza, é consequência do desemprego, da queda do valor do salário mínimo, do aumento desenfreado da informalidade, do aumento do preço do gás de cozinha, do preço dos alimentos somados ao desmonte de políticas públicas e de controle social, que aprofundam ainda mais este problema histórico, social e político. 

Voltar ao Mapa da Fome é um retrocesso lastimável, fato extremamente danoso e cruel a enormes parcelas da população. Muitas pessoas não sabem o que nem quando comerão. A fome é uma desgraça humanitária.

Por isso, a soberania alimentar se mantém como uma agenda social das mais elevadas.  É fundamental para a garantia do direito humano à alimentação adequada, um conceito introduzido pelos Movimentos Sociais do Campo, como Via Campesina, Fetraf e outros que, ainda nos anos 90, formularam tal concepção em resposta às políticas agrícolas neoliberais. 

Trata-se do acesso à alimentação como segurança e soberania alimentar, o que consiste no fortalecimento da autonomia local, soberania sobre os territórios, concernente à cultura dos povos, valorizando os saberes e hábitos de cada região. É a garantia do direito humano à alimentação adequada, partindo do modo de produção sustentável, reforçando a crítica à expansão do agronegócio que intensifica relações de poder contribuindo para a desigualdade econômica e social. A soberania alimentar é um ato político de enfrentamento à lógica capitalista e ao projeto da morte dos pobres. 

Defendemos a retomada de um amplo projeto de políticas públicas de combate à fome, que perpasse a geração de emprego e renda, educação, saúde, conservação dos recursos hídricos e combate à crise climática, enfrentando igualmente o problema da desigualdade de gênero e de raça. É urgente que se debata uma política nacional de produção e distribuição diversificada que garanta uma alimentação adequada. É necessário orçamento ao Programa Nacional de Alimentação, ao Programa de Aquisição de Alimentos com incentivo a Agricultura Familiar, apoio a iniciativas locais, como as hortas comunitárias e urbanas, promovendo, assim, a diversificação nas formas de abastecimento alimentar com a adoção de novas práticas de desenvolvimento econômico, social, ambiental e de saúde pública.

Por fim há de se perguntar se é possível fazer isso num governo que além de desrespeitar a democracia e trabalhar contra o povo trabalhador, tem a nítida escolha pelas políticas de mercado, com a entrega do patrimônio público e favorecimento do agronegócio? Seguramente que não.

Além de continuarmos votando contra as medidas antipopulares de Bolsonaro e em defesa dos direitos da população a uma vida de qualidade, a resposta só pode ser uma: um governo tão embalado pela necropolítica jamais será de garantia de alimentação para a população e, por isso, lutamos bravamente para que seja impedido. Por razões políticas, econômicas, mas também por valores éticos.

Comer é um direito humano essencial à manutenção da vida. Bolsonaro é o projeto da morte contra a vida. Por isso é tão urgente e necessário que se desengavetem os mais de 130 pedidos de impeachment. No Brasil ou fora dele, quem se omite frente à população e atua contra ela, comete crime de responsabilidade e contra a humanidade. 

(*) Maria do Rosário Nunes, deputada federal PT/RS

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora