Opinião
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10 de agosto de 2021
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07:34

Sirvam nossas façanhas… (por Carlos Frederico Guazzelli)

Foto: Felipe Dalla Valle / Palácio Piratini
Foto: Felipe Dalla Valle / Palácio Piratini

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Houve tempo – faz tempo! – em que o Rio Grande dava justificados motivos de orgulho, do ponto de vista democrático e humanista.

Afinal, nestas plagas, na segunda década do século passado, com as primeiras greves, surgiu o movimento sindical, inaugurando a luta dos trabalhadores brasileiros por melhores condições de vida; poucos anos depois, foi a vez das sufragistas gaúchas brandirem por primeira vez a bandeira feminista; não por acaso, aqui foi deflagrada a Revolução de ’30 que, mesmo sob a marca da “modernização conservadora”, foi responsável pelo ingresso do país na era contemporânea; e, durante e depois da Segunda Guerra, os partidos e militantes políticos do estado exerceram papel decisivo na disputa por hegemonia contra os setores reacionários, conseguindo retardar por duas vezes o mergulho no retrocesso, que acabou ocorrendo em 1964; ainda, mesmo sob o período autoritário então desencadeado, foi em terras rio-grandenses que apareceram as primeiras organizações da sociedade civil constituídas para a defesa dos novos direitos coletivos – ao ambiente natural (AGAPAN e ADFG), e à implantação da reforma agrária (MST).

Isto não ocorreu por acaso, tampouco por desígnios divinos ou de qualquer outra natureza metafísica – mas por influência de conhecidos fatores históricos que ora convém recordar. A seu respeito, cabe invocar a notável lição de história econômica ministrada por um judeu austríaco, cuja família radicou-se em São Paulo, onde ele viveu e trabalhou até morrer, há alguns anos. Com efeito, em um pequeno grande livro – “Crescimento Econômico e Desenvolvimento Urbano” – Paul Singer demonstra, à base de minuciosa pesquisa, como o Rio Grande do Sul se distinguiu do restante do país, ao longo do século XX, pelo surgimento e afirmação de novas classes médias – rural e urbana – fruto do processo de imigração iniciado cem anos antes, com os alemães, e continuado cinco decênios depois pelos italianos.

Foram, pois, os descendentes dos imigrantes trazidos pelo Império, que implantaram, primeiro na Região dos Vales, e posteriormente na Encosta Superior do Nordeste, no Planalto Médio e nas Missões, de forma até então inédita no Brasil, núcleos produtivos baseados na economia familiar, destinados ao mercado interno (Setor do Mercado Interno, como designado pelo professor) – abastecendo e mantendo as zonas do ciclo do café, Rio e São Paulo (Setor do Mercado Externo, segundo ele). Graças a isso, Porto Alegre deixou de ser o modesto burgo luso-açoriano que fora até então, ultrapassando Pelotas entre 1900 e 1920, em população e em importância econômica, tornando-se o centro político e administrativo deste novo e pujante desenvolvimento regional.

Este, pois, em apertada síntese, o fator determinante da peculiaridade de nosso estado, que passou a ser chamado, com razão, de “celeiro de Brasil”. Foi assim, pelas contribuições inovadoras e originais introduzidas pelos colonos europeus que para cá vieram, ao longo do século XIX, que o Rio Grande deixou de ser apenas a fração meridional do grande latifúndio em que consistia o Brasil. Importa destacar, no entanto, que isso não se deveu a qualquer suposta , e inexistente superioridade racial ou étnica de parte daqueles imigrantes: muito ao contrário, trata-se apenas de identificar o rico processo de intercâmbio cultural por eles imprimido durante a colonização das terras que passaram a habitar – trazendo novos cultivos e apetrechos, desenvolvendo métodos produtivos e tecnologias até então desconhecidos, não apenas em matéria agrícola, como também em relação às pequenas manufaturas que introduziram.

Não por outra razão, aliás, o incipiente processo de industrialização do estado deu-se nas principais colônias alemã e italiana, com os pólos calçadista e metal-mecânico, respectivamente – cuja origem reside justamente nas oficinas familiares dos colonos. Singer ensina que estas pequenas indústrias, e o comércio local por elas impulsionado, criaram as condições do desenvolvimento social e cultural diferenciado das cidades pequenas, médias e grandes do estado, condições estas responsáveis pelos avanços pioneiros destacados no início deste artigo – cujos protagonistas foram os novos segmentos médios e o proletariado emergente.  

É sabido, no entanto, que esta situação privilegiada no concerto nacional, foi-se perdendo durante as últimas décadas, devido a múltiplas causas, ligadas fundamentalmente ao modelo de inserção desigual da economia brasileira na dita globalização – na verdade, o perverso processo neoliberal de captura financeira do Estado nos países periféricos, como o Brasil, levando-os ao agravamento da pobreza endêmica e da obscena concentração de renda. Nosso estado vem padecendo, de modo muito particular, dos efeitos deletérios da desindustrialização assim causada, tornando-se cada vez mais dependente do “agronegócio” –, ou seja, das monoculturas da soja, do milho e do arroz, voltadas ao mercado externo. 

Por estas ironias da história, nossa economia, outrora baseada em boa parte nas cadeias produtivas de pequenas e médias propriedades familiares, sediadas nas regiões coloniais, tornou-se cada vez mais dependente do secular padrão nacional do latifúndio exportador de “commodities” agrícolas. Contudo, mesmo que a decadência do estado tenha origem nas transformações pelas quais vem passando o capitalismo, desde a ascensão do neoliberalismo, não se pode deixar de registrar a decisiva contribuição dada pelas autodenominadas “elites” locais – em especial, por suas lideranças políticas.

Efetivamente, é de se destacar a lamentável marcha batida à direita e ao retrocesso social e cultural ocorrida no território gaúcho nos últimos trinta anos, conduzida não apenas pelos tradicionais partidos da reação, mas também por aquele que, durante o período ditatorial, organizou a resistência nos limites permitidos pelo regime – e que, findo este, contribuiu sobremodo na re-implantação da democracia, durante e logo após o processo constituinte que se seguiu, no final dos anos 1980. 

A direitização progressiva do PMDB, iniciada com o governo de Antônio Britto, marco da entrega do patrimônio público aos grandes grupos econômicos, de fora e de dentro, atingiu o ápice com sua vergonhosa adesão, na última eleição presidencial, à candidatura de um notório fascista – misógino, racista e homofóbico. Inaceitável e repugnante, sob qualquer ponto de vista, a sujeição de líderes perseguidos ao longo da ditadura militar, a alguém que sempre se proclamou – e continua se proclamando – seu entusiasta adepto, ademais de defensor declarado da tortura e da morte dos adversários.

O cenário futuro decorrente destes deploráveis movimentos políticos regressivos – que ganharam impulso notável com o triunfo do golpe engendrado nacionalmente em 2013, desencadeado três anos depois e consumado em 2018 – inclui um dilema, quase inacreditável, mas provável, entre dois postulantes ao Piratini, para o próximo período. Trata-se de duas figuras que, em tempos de predomínio da razão democrática, ficariam reduzidas ao nível de sua gritante mediocridade – para dizer o mínimo, e na acepção própria do termo – e que só se alçaram ao primeiro plano da política, por sua íntima e oportuna ligação com o boçal governante do país (além de seu anti-petismo furibundo, é claro).

Um destes possíveis candidatos ao governo estadual, há poucos anos, em uma palestra aos seus parceiros de latifúndio, falando sobre a interlocução feita no governo de Lula com os movimentos sociais – de negros, mulheres, quilombolas, indígenas, poppulação LGTB – referiu-se aos mesmos como “tudo o que não presta” (sic). Já o potencial rival, que reza pela mesma cartilha, tem sido uma espécie de coringa no ministério de seu chefe – que já o escalou para várias posições, nas quais revelou a mesma incompetência; ao ponto de, mesmo sendo deputado federal, ter sido substituído, no exercício da relação institucional com o Parlamento, por um general…Da ativa, ainda por cima!

Diante deste panorama, para barrar o terrível processo de destruição, ora em curso, do fruto do trabalho de gerações de riograndenses – nas artes, nas ciências e em todos os domínios da civilização – resta à cidadania consciente e organizada de nosso estado, superar suas diferenças visando à construção, com e acima dos partidos políticos, de uma candidatura ao governo estadual capaz de resgatar nossas melhores tradições democráticas e humanistas.

Sob pena de não nos restar outra coisa senão acender velas, pela querência perdida, ao nosso querido santo popular – vítima do trabalho infantil, do racismo e da tortura.

(*) Defensor Público estadual aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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