Opinião
|
30 de agosto de 2021
|
07:45

Os povos indígenas lutam por nós (por Marcos Rolim)

(Foto: Apib/Divulgação)
(Foto: Apib/Divulgação)

Marcos Rolim (*)

Os povos indígenas brasileiros estão em luta e sua mobilização, de grandeza histórica, diz respeito a todos nós, ao nosso futuro e mesmo à possibilidade de haver futuro. 

Para entender o que está ocorrendo, é preciso, primeiro, ter presente o que o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) acaba de anunciar ao mundo. O projeto, que reúne os mais importantes recursos humanos e tecnológicos das ciências ambientais do mundo, concluiu que os efeitos do aquecimento global já estão presentes hoje nos eventos climáticos extremos, como os incêndios no hemisfério norte que já atingiram até o Ártico; as inundações na China, na Alemanha e na Bélgica; o aumento da intensidade e frequência dos ciclones tropicais, a perda de cobertura de gelo marinho ou a seca prolongada no sudeste brasileiro e irão se agravar muito nas próximas duas décadas até o ponto do processo não ser mais reversível. Para evitar que as temperaturas globais aumentem para além do ponto crítico de 1,5º em 20 anos, será preciso um esforço mundial para uma redução impactante dos níveis de emissão de gases de efeito estufa e sua eliminação total em 30 anos. Ou isso, ou o apocalipse ambiental. Essa é a conta a ser feita.  

Em sua palestra no Fronteiras do Pensamento, o biólogo Jared Diamond disse que estamos todos muito preocupados com a pandemia e que isso só ocorre porque testemunhamos que a doença mata as pessoas. Há, portanto, uma relação de causa e efeito observável e clara. O ponto, disse ele, é que quando as pessoas morrem em tsunamis, dizemos que essa foi a razão das suas mortes sem sabermos que, se as barreiras de coral estivessem intactas, o impacto das ondas seria muitas vezes menor e muitas pessoas não teriam morrido. Os corais estão sendo destruídos pelo aquecimento dos mares, mas não vemos no processo a causa das mortes. Assim ocorre com todos os demais eventos climáticos oriundos do desequilíbrio ambiental: vemos as tragédias, mas não percebemos a relação causal.

No Brasil, a maldição que nos governa se encarregou nos últimos dois anos de desmontar todo o sistema de proteção ambiental construído a muito custo ao longo de décadas. A orientação do governo na área foi a da destruição de todas as barreiras capazes de deter o desmatamento e o garimpo ilegais, aproveitando-se, inclusive, da pandemia para “passar a boiada”. As declarações de Bolsonaro, desde a campanha, oferecendo garantias a todas as ambições do agronegócio e aos que almejam as terras indígenas, ofereceu o sinal verde a bandidos da pior espécie que, se não forem detidos, transformarão a Amazônia em um deserto cercado por crateras.

Na região da aldeia de Palimiú, no coração da reserva Yanomami, trava-se hoje uma guerra de extermínio. Ali, no rio Uraticuera, há 43 pontos de garimpo ilegal de ouro. Repito: 43. Apenas na área Yanomami, onde já há 20 mil garimpeiros instalados ilegalmente, há 500 requerimentos para mineração protocolados na Agência Nacional de Mineração, o que envolve 3,3 milhões de hectares (uma área maior que a Bélgica). Essas autorizações não podem ser concedidas porque não há  lei que permita mineração em terras indígenas, mas a expectativa dos bandidos, que matam indígenas usando fuzis e que, recentemente, afundaram uma canoa com crianças, é de que os bravos congressistas aprovem o  PL 191/2020 do Governo ou qualquer outro que autorize o garimpo em terras indígenas. Enquanto a lei não muda, os garimpeiros vão construindo sua lei à bala, sob o olhar de paisagem do governo militar. O nome do plano do Governo e de seus asseclas no Parlamento é só um: o genocídio Yanomami e de todos os demais povos indígenas que se atravessarem no caminho do lucro rápido.

É neste contexto que o STF se prepara para decidir sobre a tese do chamado “marco temporal”. Resumindo, se a tese for aceita, os povos originários só terão o direito à terra se provarem que estavam ali quando da aprovação da Constituição Federal.  Vale dizer:  se um povo indígena foi expulso de suas terras antes da CF, não haveria mais o que postular e essas terras estarão livres para que gente como os atuais garimpeiros assassinos desenvolvam ali os seus projetos. Contra essa tragédia lutam os povos indígenas. Solitariamente, na companhia dos seus cantos, de todos os seres vivos das florestas e dos espíritos dos seus antepassados. 

As lideranças políticas brasileiras com algum compromisso com a humanidade – porque não se pode pedir mais do que isso nessa época – deveriam estar todas ao lado dos povos indígenas, mas raras dentre elas manifestam preocupação real ou são capazes de lutar efetivamente contra o massacre que se prepara. Essa distância é resultado, de um lado, da incapacidade de luta de partidos que são pouco mais que geleias de interesses e desculpas e, de outro, dos cálculos definidos para se contar no momento oportuno com o apoio dos ruralistas.   Os grandes veículos de imprensa deveriam dedicar grande parte de seus espaços para ouvir o que as lideranças indígenas têm a dizer e permitir que os cientistas expliquem o que está em jogo, mas o tema segue sendo secundarizado. Em situações piores, há quem defenda explicitamente o marco temporal como o Estadão que cometeu a façanha de dar a seguinte manchete: “Julgamento do STF pode afetar propriedades de todo o Brasil”. 

Celebro aqui a coragem desses homens e mulheres indígenas que nos enchem de orgulho. O que eles estão defendendo não é apenas o seu direito à terra. Eles lutam por nossos filhos e netos e assumem a vanguarda em uma luta que sintetiza o maior desafio do Planeta. Só isso.

Cada um de nós pode fazer algo. Uma ação decisiva é doar recursos às entidades que organizam a luta como, por exemplo, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Acesse aqui e veja como ajudar: https://apiboficial.org/ 

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora