Opinião
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3 de agosto de 2021
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08:17

Incêndios (Coluna da APPOA)

Incêndio na Cinemateca Brasileira (Reprodução/TV)
Incêndio na Cinemateca Brasileira (Reprodução/TV)

Gerson Smiech Pinho (*)

Em 1933, o filósofo Walter Benjamin escreveu um texto em que discorria sobre a pobreza da experiência na vida do homem moderno. Para o autor, o peso e a relevância da transmissão do saber e da cultura não acontecia mais em seu tempo como já ocorrera no passado. De maneira oposta às sociedades tradicionais que atribuíam grande valor à preservação de suas tradições, Benjamin reconhecia na modernidade uma condição frágil e débil na passagem do legado cultural e histórico às novas gerações.

Talvez seja possível afirmar que a constatação de Benjamin encontra uma de suas expressões mais agudas e pungentes nos tempos sombrios e sinistros em que estamos mergulhados atualmente. Difícil imaginar outro contexto tão propício ao menosprezo pela memória, à desvalorização da história e ao pensamento rasteiro.

Uma expressão bastante sintomática dessa situação está no modo como nosso patrimônio cultural tem se transformado literalmente em cinzas bem embaixo de nossos narizes e diante de nossos olhos. Ainda nem bem havíamos tomado distância do incêndio que assolou o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2018, e novamente testemunhamos, perplexos e atônitos, o fogo consumir o acervo histórico de filmes e de documentos da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Mais uma vez, a história é esburacada pelo descaso e pelo negacionismo que ardem em brasa em nosso país e que varrem com suas labaredas o registro materializado da nossa memória, da nossa ciência e da nossa arte.

Frente ao caos e à devastação, sonhar se impõe como algo vital, naquilo que permite vislumbrar cenários diferentes desse que encontramos à nossa frente. Esta é uma das qualidades mais fundamentais da arte – sua capacidade de transcender os limites da realidade. Com ela, torna-se possível sair da vivência palpável e tangível para mergulhar no campo da ficção, do sonho e do devaneio. 

Quando soube da notícia do incêndio na Cinemateca, lembrei imediatamente de um sonho registrado por Sigmund Freud em seu clássico livro “A interpretação dos sonhos”. O mesmo havia sido relatado por um homem que adormeceu ao lado do caixão de seu filho morto. Enquanto dormia, sonhou  que  o  menino estava  vivo novamente e falava em tom de repreensão:  “Pai, não  vês  que  estou queimando?” Ao ouvir esta frase, o homem acordou em sobressalto e constatou que o corpo do filho estava realmente sendo queimado pelo fogo de uma vela que caíra sobre ele. Provavelmente, a luz do fogo das velas que chegou até o adormecido tenha levado à produção desse sonho comovente, o qual permitiu o reencontro do pai com o filho por mais uma vez. Segundo Freud, em função da  realização  desse  desejo, o  pai  teria prolongado seu sono por mais um  momento.

Talvez a lembrança desse sonho tenha me vindo à mente pela impressão de que as luzes das chamas que chegam a nossos olhos também clamem por um despertar. O sono da imobilidade frente ao descaso faz com que o fogo siga se alastrando e consumindo a arte, a história, a ciência e as florestas. Por acaso não vemos que isso queima e que clama por socorro?

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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