Opinião
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11 de julho de 2021
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10:38

América Latina e dependência: As raízes históricas do contrarreformismo e neoliberalismo no século XXI (por Émerson Neves da Silva)

Governos progressistas chegaram ao Estado a partir da negação das políticas econômicas neoliberais. (Foto: Casa Rosada/Divulgação)
Governos progressistas chegaram ao Estado a partir da negação das políticas econômicas neoliberais. (Foto: Casa Rosada/Divulgação)

Émerson Neves da Silva (*)

A América Latina, na última década, sofreu com o avanço do contrarreformismo e da retomada do neoliberalismo. A onda do atraso se espraiou na sociedade latino-americana e alicerçou a prevalência dos interesses do capital transnacional e da burguesia local sobre o Estado, desconstruindo políticas públicas voltadas para os setores populares. Os governos progressistas da região, a partir do início do século XXI, produziram uma série de políticas sociais e econômicas, incluindo na agenda do Estado populações historicamente marginalizadas, ao passo que abandonaram o corolário neoliberal que havia sido introduzido nas décadas de 1980 e 1990.

O contrarreformismo pode ser compreendido como reação às reformas e ações estabelecidas pelos governos populares latino-americanos, que “atenuaram” o elemento estruturante do capitalismo na região: a dependência. 

Em 2012, o processo de impeachmant tramitado por cerca de 24 horas destituiu o presidente do Paraguai Fernando Lugo. Apesar de causar uma crise diplomática com os países que questionaram esse ato, o afastamento foi efetivado, consolidando a retomada do Estado pela burguesia do país. Fernando Lugo foi eleito a partir de um arco amplo de alianças. No entanto, sem maioria no legislativo federal, sofreu forte oposição e desestabilização política da elite econômica paraguaia, o que culminou com o seu afastamento. Apesar da conjuntura da América Latina ser marcada pela ofensiva de governos populares, a queda do presidente Fernando Lugo foi um ato que antecipou a onda conservadora, que atingiu a região alguns anos depois. 

A queda do presidente Fernando Lugo explicitou que a histórica relação de dependência econômica e política da América Latina em relação ao centro capitalista não foi resolvido com a eleição de um governo com perspectiva popular no Paraguai, ou seja, o campo de forças representativo dos interesses do capital reestabeleceu o domínio sobre o Estado. 

No Equador, o governo de Rafael Correa diminuiu a pobreza e aumentou o PIB do país, baseando-se em políticas nacionalistas no período de 2007 a 2017. Em 2020 foi condenado por corrupção a oito anos de prisão. Ao largo do seu governo, que efetivou políticas desenvolvimentistas e enfrentou questões sociais históricas, Rafael Correa foi alvo da ação de atores políticos que se utilizaram do sistema Judiciário para criminalizá-lo. Esse expediente é denominado de lawfare. Na sequência do governo de Correa, o Equador presenciou a ofensiva do neoliberalismo e o estabelecimento das relações políticas favoráveis na manutenção dos interesses de setores econômicos transacionais e da burguesia do país.  

Na Argentina, o enredo não foi muito diferente. A primeira mulher eleita presidenta da Argentina, Cristina Kirchener, governou o país entre 2007 e 2015. A gestão reduziu a pobreza do país em 2012, segundo a Cepal, ao nível de 5,7%, o que representou redução de 38,7%. O crescimento econômico nesse período foi o segundo maior da América Latina, perdendo apenas para o Equador. Entre 2003 e 2011, a taxa de desemprego foi reduzida para 7,4%, ao passo que o salário mínimo teve aumento de 25% em 2013, ocasião em que se tornou o maior salário mínimo da América Latina. No entanto, esse cenário econômico trouxe significativa instabilidade política para o governo da presidenta Kirchener. A grande mídia conjugou a ofensiva sobre os avanços econômicos e sociais com a repercussão do uso do lawfare na medida em que o governo de Kirchener foi alvo de uma série de denúncias de corrupção. 

A realidade brasileira, apensar das especificidades, também está inscrita no avanço histórico do contrarreformismo político e social. Os governos de Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2011, e de Dilma Rousseff, 2011 e 2016, protagonizaram avanços nas áreas sociais e econômicas no país comparáveis à Era Vargas. Com a crise mundial do capitalismo a partir de 2008, setores da burguesia brasileira aliados ao capital norte-americano desencadearam campanha baseada no discurso anticorrupção e moralismo social, o que desembocou no impeachmant da presidenta Dilma Rousseff em 2016. O auge desse processo foi a prisão do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva em 2018, vítima de inúmeros processos de corrupção. 

Na Bolívia, em 2016, o presidente Evo Morales convocou referendo para decidir a alteração da Constituição para possibilitá-lo concorrer a mais um mandato. Em meio a esse processo, a mídia produziu um escândalo para prejudicá-lo, atribuindo ao presidente uma paternidade ilegítima, mais tarde foi comprovado não ser verdade, no entanto, Evo Morales foi derrotado no referendo. Mas, em dezembro de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral da Bolívia proferiu decisão habilitando a candidatura do presidente Evo Morales. Na eleição ocorrida em 2019 abriu-se impasse no processo de apuração e o presidente renunciou diante da mobilização de forças politicais e paramilitares.  

Dessa forma, as forças policiais serviram como instrumento de mobilização contra o governo de Evo Morales. O sindicalista e indígena governou no período de 2006 a 2019, representando os interesses das comunidades indígenas e setores populares. Os lucros com a exploração dos recursos naturais do país passaram a ser revertidos em políticas sociais direcionadas aos segmentos populares. Com a alteração da conjuntura, a onda progressista que abalou as estruturas do poder e da sociedade tradicional latino-americana cedeu espaço à emergência do discurso conservador, fascista e moralista.  

Observando esses casos, percebemos que há um padrão na atuação das elites econômicas e do capital transnacional na organização dos golpes na América Latina. O fortalecimento do discurso e prática contrarreformista encontrou ressonância em parte das igrejas neopentecostais. Essas igrejas difundiram o ideário da teologia da prosperidade, acentuando o individualismo, corroendo qualquer forma de organização coletiva que não fosse representativa da igreja. De outra parte, a prática religiosa baseia-se em rígido código moral, o que cria as condições para a cosmovisão dicotômica: cristão x não cristão; bem x mal. 

Para Igor Fuser [1], esse processo conservador foi protagonizado por atores políticos que possuem relação com os setores sociais e econômicos dominantes nos respectivos países durante todo o século XX, como, por exemplo, a cúpula do Judiciário, os proprietários das grandes empresas de comunicação, os acionistas das maiores empresas nacionais.

É pertinente analisar essa participação da diplomacia norte-americana no processo contrarreformista a partir da perspectiva histórica, destacando rupturas e permanências na relação da América Latina com os Estados Unidos e o capitalismo desenvolvido. Pode-se compreender o fenômeno contrarreformista como uma estratégia de manutenção da dependência do capitalismo latino-americano, explicitando as raízes profundas dos laços de subordinação da região as necessidades de expansão do capitalismo desenvolvido. 

Como exemplo dessa permanência histórica pode-se verificar a importância dos recursos naturais para o capital internacional ainda em pleno século XXI.  Os governos progressistas se contrapuseram aos interesses de grandes corporações econômicas transnacionais e da geopolítica norte-americana ao atuarem no sentido de fortalecer a presença do Estado para estimular o crescimento econômico, em especial no controle do petróleo e gás como elementos potencializadores do desenvolvimento social e econômico dos países latino-americanos.

Em síntese, o estabelecimento do contrarreformismo sinaliza a retomada do neoliberalismo na América Latina. É pertinente destacar que os governos progressistas chegaram ao Estado a partir da negação das políticas econômicas neoliberais e seus impactos sociais. É importante ressaltar que as reformas progressistas realizadas não se propunham a superar o capitalismo, no entanto atingiram frontalmente o elemento histórico que caracteriza a formação econômica latino-americana, em especial do nosso capitalismo sui generis: a dependência.

Diante desse breve panorama, cabe aprofundar futuramente a análise desse processo, destacando as experiências de resistência protagonizadas por movimentos sociais do campo e da cidade.  Longe de estar consolidado o contrarreformismo, é pertinente acompanharmos e refletirmos sobre a dialética do popular, que, através das ações coletivas em curso por toda América Latina, pode fortalecer a construção da emancipação da região. 

[1] FUSER, Igor. América Latina: progressismo, retrocesso e resistência. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. especial 3, p. 78-89, nov. 2018. 

(*) Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Agrários, Urbanos e Sociais (NIPEAS/UFFS). e-mail: [email protected]

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