Opinião
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21 de junho de 2021
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10:06

Seu Silva (por Marcos Rolim)

Paulo Antônio Soares da Silva (Arquivo pessoal)
Paulo Antônio Soares da Silva (Arquivo pessoal)

Marcos Rolim (*)

Quando mortes em uma pandemia nos são apresentadas em números, temos um dado que é essencial para se medir o tamanho do problema, suas tendências, a concentração em certos grupos humanos, raciais, etários etc  Tudo isso é muito importante, mas nada tem a ver com a experiência de perder alguém que se ama. Cada morte em uma pandemia é, nesse sentido, uma tragédia sem tradução, porque como o assinalou Hannah Arendt, a dor é o mais incomunicável dos sentimentos. O sem sentido, o absurdo de não ter mais alguém ao seu lado, alguém que estaria ali, nos iluminando com seu olhar, por conta da ausência de providências elementares que qualquer governo do mundo teria tomado, não estivéssemos sob o domínio de um perverso, tende a se exaurir no mundo se não atribuirmos à dor algum nome, se não permitirmos que os demais tenham ao menos uma notícia dela. Que seja raiva esse nome, que seja justiça, que seja decência, que seja esperança.  Para isso, talvez seja preciso contar a história de todas as vidas que nos foram roubadas e que essas histórias percorram o Brasil como uma forma de resistir e de atormentar a vida dos assassinos.

O nome dele é Paulo Antônio Soares da Silva, 59 anos, ou “melança” para os amigos. Nascido em Charrua, na época pertencente à Tapejara, se criou nas lides do campo ajudando o pai em diferentes ofícios pelos lados do Tio Hugo e do Ibirapuitã. Por um detalhe não parou de estudar, porque a família precisava do trabalho dele em casa. Ocorreu que uma professora notou sua falta na escola e foi saber o que tinha ocorrido. Foi quando ouviu que a família não podia mantê-lo na escola e foi quando argumentou que o menino era inteligente e que dava gosto vê-lo estudar. O pai se convenceu e o guri voltou à escola. Para fazer o ensino médio, foi preciso ir para Passo Fundo onde se matriculou no Instituto Estadual Cecy Leite Costa. Novos desafios. Era preciso trabalhar muito para se manter e estudar. Silva trabalhou no comércio, depois foi morar com uma tia em Gravataí onde foi servente de pedreiro na Cohab, daí voltou a Passo Fundo para trabalhar como vendedor de gás e, depois, como empacotador da Comercial Zaffari.

Então conheceu Elda, que trabalhava como caixa e tudo começou a fazer sentido. Namoraram, fizeram muitos planos e se casaram. Ele queria ser dentista, ela queria ser professora. Silva acabou passando no concurso para a Rede Ferroviária e trabalhou lá por muito, até que algum governo ordinário resolveu vender a RFFSA e o Brasil abriu mão de investir em seu modal ferroviário. Seu Silva não se deu por vencido e ingressou na Corsan, com a mesma disposição de luta, com a consciência de classe que o levou à militância sindical e com uma imensa alegria, coisa que faziam dele uma pessoa querida e respeitada. Fazia o melhor arroz com galinha do mundo, detestava ternos, andava de havaiana, escutava rádio pela manhã bem cedinho, e ajudava quem podia. Tinha por hábito fazer um rancho paralelo para sempre ter o que dar quando batiam no portão pedindo comida. Com a família toda, se metia em campanhas de solidariedade distribuindo cestas básicas. Ele nunca admitiu que fosse normal que um ser humano passasse fome. Subversivo Silva, diriam alguns e um certo ministro poderia inquirir – Por que mesmo um rancho, não bastam as sobras da classe média?  

O casal Silva teve três filhas: Paula, Larissa e Vitória, meninas criadas com o cuidado do mundo, orgulhos da família, cobertas de amor e confiança no futuro. Paula, a mais velha, foi minha aluna no mestrado em Direitos Humanos da UniRitter.  Adorava o pai, parceiro de todas as horas. Seu Silva ensinou as filhas que a educação é o maior patrimônio que alguém pode ter.

Trabalhou sem parar na Corsan, sob sol e chuva, abrindo buraco, consertando canos, defendendo que a água era um bem de todos e que a empresa não poderia ser privatizada já que prestava um serviço essencial. Silva era um homem forte, sem comorbidades. Jogava futebol toda semana (antes da pandemia), fazia exercícios, caminhava, se alimentava bem, cuidava da horta e do pomar.

Silva pegou o coronavírus. Foi internado em Passo Fundo e faleceu alguns dias depois. Não houve velório. O caixão foi lacrado. Não foi possível se despedir dele. Admirador da Ciência, Silva estava ansioso pela vacina. Estava chegando o seu dia de se imunizar quando ele baixou hospital. Se a vacina tivesse chegado antes, estaria vivo, escrevendo todos os dias no whats da família, como sempre fazia: “Bom dia, lindas!”.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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