Opinião
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22 de junho de 2021
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08:42

Navegar é preciso – se Pessoa com Saramago…(Coluna da APPOA)

Detalhe da capa do livro
Detalhe da capa do livro "O conto da ilha desconhecida". (Reprodução)

Lucia Serrano Pereira (*)

Esses dia me vinha o navegar é preciso. Talvez por que a gente tenha ainda que navegar no mar tumultuado, e encontrar formas de seguir e de se dizer dessa sequência. E porque ando relendo Fernando Pessoa. Mas a frase do poema, lembremos, é navegar é preciso, viver não é preciso. Essa segunda parte, aberta, estranha. Pode dizer da imprecisão do viver, pode dizer que só a navegação importa… E tantas outras associações. Viver importa e muito no mundo hoje, de forma mais contundente.

Mas recolocando a frase no seu habitat, a poesia de Fernando Pessoa, o que ele diz é que essa era uma frase gloriosa dos navegadores, com tudo o que isso animava na tradição portuguesa das grandes navegações, dos descobrimentos, da ambição da terra nova.

Ainda assim, o que ele quer, e isso é o que importa, é o espírito da frase, para que ela possa estar (como diriam os portugueses) a ser transformada: Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para  a casar como eu sou. 

Carregar, contrabandear o espírito do navegador para a sua coisa: viver não é necessário; o que é necessário é criar. É radical. E dá para entender em se pensando em Fernando Pessoa. Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada, À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. É como abre Tabacaria, talvez a poesia de maior importância do século XX, carregando a melancolia, o mal-estar que atravessava a modernidade. Mas também transportando o sonho.

Sonhar é preciso, sim, em nossos tempos, carregar suas partículas, insistir na navegação. Se Saramago dialogasse com seu conterrâneo nesse ponto, imagino a conversa sobre O Conto da ilha desconhecida. Talvez seja dessas coisas que possamos fazer da janela de casa. Imaginar alguns encontros criados, inventados. Lembro de uma exposição que o Jaílton Moreira fez de capas de álbuns (CDs)  que nunca existiram, tipo o que seria hoje Emicida com Belchior como se tivessem de fato cantado juntos algum dia. 

No conto da ilha desconhecida o homem que queria um barco vai ao rei. Dá-me um barco. Para que, quer saber o rei. O homem chegava pela porta das petições (cheia de burocracia), mas o rei vivia sentado na porta dos obséquios ( presentes e favores a ele). O homem que queria um barco insiste quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és.

Não podemos nos ver se não sairmos de nós mesmos.

O homem que queria um barco vai ser acompanhado pela mulher da limpeza, a mesma que servia o rei desde sempre, mas que sai pela porta das decisões, de uma vez por todas, mudando seu rumo, indo ao cais em busca do homem que queria um barco e seu sonho. E vai se enlaçar, a seu desejo, ao homem, ao barco e ao sonho.

Ele não consegue os marinheiros para navegar. Os marinheiros não querem deixar suas vidas ja acomodadas e confortáveis por uma aventura rumo a uma ilha talvez impossível de ser encontrada, fora do mapa das já conhecidas. 

Ele desanimado, ela lhe pede para não desistir, e nessa noite ele e a mulher partilham pão, vinho, queijo e azeitonas à luz da lua, no barco, jantar ibérico e frugal, ele a acha bonita, ela acha que ele só tem olhos para o barco (mas ela se engana).

E então a mágica ficcional de Saramago: ao dormir ele sonha. E sonha que agora é o homem do leme. Vê que a mulher não embarca pois pensava que ele só tinha olhos para a ilha. Mas vê no barco os marinheiros, agora navegam. No barco cavalos, bois, asnos, os animais de trabalho pesado. Também patos, coelhos, galinhas, a criação doméstica. E parecia natural que lá estivessem. E fileiras de sacos de terra alinhados ao longo da amurada, plantas brotam da terra nos sacos. 

Mas os marinheiros não querem ir longe, querem saltar no primeiro porto da primeira ilha conhecida que aparece. No cais, por causa do atropelo da saída, os sacos de terra se rompem e se derramam, a coberta do barco se transforma toda como que em um campo lavrado e semeado, as raízes das árvores já penetrando no madeirame, e as velas já são imprecisas, balançando ao vento se confundindo e se tramando com as copas das árvores.

A caravela navega como uma floresta ao sabor das ondas, vem os pássaros atraídos pela germinação, e quando o homem tranca a roda do leme para colher o primeiro broto, viu uma sombra ao lado de sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundindo os corpos, confundindos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo.

Ao nascer do sol, o homem e a mulher vão pintar em letras brancas o nome que estava faltando à caravela. E ao meio dia A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.

Navegar é preciso. Linda história de busca/encontro de si e do outro, de si pelo outro, amor, criação e sonho.

Navegar é Preciso

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

“Navegar é preciso; viver não é preciso”.

Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.

Só quero torná-la grande,

ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;

ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. […]

(Fernando Pessoa)

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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