Saúde
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7 de setembro de 2023
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07:11

Mediadores interculturais completam dois anos ajudando imigrantes na rede de saúde da Capital

Por
Luciano Velleda
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A equipe dos mediadores interculturais na Unidade Básica de Saúde Santa Marta. Foto: Luiza Castro/Sul21
A equipe dos mediadores interculturais na Unidade Básica de Saúde Santa Marta. Foto: Luiza Castro/Sul21

Youdeline Obas, haitiana, quase 38 anos, está há quatro anos e 8 meses em Porto Alegre. É enfermeira, promotora de saúde da população negra e atua como mediadora intercultural na rede de saúde da Capital desde o início do projeto que visa melhorar o atendimento em saúde da população imigrante. Ela conta que no começo do trabalho, em outubro 2021, ainda não havia um padrão sobre como atuar no dia a dia e as funções foram se aprimorando na prática e na percepção de como fazer a diferença no cuidado dos usuários estrangeiros.

Por atuar no projeto, ela fez curso de política migratória e conta ter aprendido muito sobre o tema. Também entendeu mais sobre o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e como é o acesso para o imigrante. “É uma experiência bem importante poder contribuir com meu trabalho, não só no acesso ao serviço dos imigrantes, como também com os profissionais de saúde”, analisa.

A figura dos mediadores interculturais contratados pela Prefeitura nasceu na área de Saúde do Imigrante da Atenção Primária. O departamento foi criado em 2018 devido ao aumento da migração ocorrida na Capital. Segundo estudo feito em 2021 pela Secretaria Municipal de Saúde, apenas 10% dos 30 mil estrangeiros em Porto Alegre tinham cadastro no SUS e acessavam a rede de atenção primária, “porta de entrada” do sistema de saúde. O baixo percentual foi determinante para a criação do novo projeto.

A haitiana Youdeline Obas está na equipe desde o inicio do projeto. Foto: Luiza Castro/Sul21

 Ao ouvir o pedido para contar um caso de atendimento médico em que tenha auxiliado, Youdeline solta um “bah” profundo, dando mostra da adaptação linguística ao Rio Grande do Sul e indicando terem ocorridos muitos casos. Ela escolhe um. Trata-se de uma mulher haitiana, de 39 anos, com problemas renais e diabetes. Sem saber do seu quadro clínico, ela acabou tendo o diagnóstico durante internação numa Unidade de Pronto Atendimento (UPA).

Quando Youdeline a conheceu, a conterrânea fazia diálise há três anos e desconhecia que poderia, como imigrante, passar por um transplante de rim no Brasil, de modo gratuito. “O SUS não tem discriminação com o imigrante. O SUS é pra todo mundo que está no território”, explica.

Após o primeiro contato com a paciente, Youdeline conseguiu o agendamento com um médico e deu início ao processo para entrar na fila de transplante – uma etapa burocrática que exige entendimento e que poderia ser prejudicada pela dificuldade com o português da paciente haitiana, se não houvesse o acompanhamento da mediadora intercultural.

“Em pouco tempo foi confirmada uma consulta pra ela, que agora está fazendo acompanhamento na Santa Casa. A gente fez todo o processo que precisa para estar na lista de transplante. Precisou de certidão migratória na Polícia Federal, ela fez todos os exames e agora está na lista de transplante esperando alguém compatível. Foi uma história que me marcou porque ela é nova, tem filhos tanto aqui como no Haiti, que precisam de atenção, precisam dos cuidados da mãe. Ela agora tem esperança de voltar a ter uma vida nova”, conta Youdeline.

Ela explica que a principal diferença entre o serviço de saúde em Porto Alegre e no Haiti é a gratuidade. O SUS é todo gratuito, enquanto no país caribenho apenas parte do atendimento de saúde é assim. Lá, quem tem recurso financeiro, procura médico particular, e quem não tem, recorre a “redes naturais”.

“A gente não vai dizer que não faz efeito, faz, só que tem casos em que esses remédios não fazem efeito e precisa de uma atenção especializada”, pondera, destacando que a barreira linguística é a primeira dificuldade dos haitianos para acessar o serviço de saúde na Capital.

O haitiano Jean Júnior explica que o trabalho dos mediadores interculturais vai muito além da tradução do idioma. Foto: Luiza Castro/Sul21

O professor Jean Júnior é o outro haitiano na equipe de mediadores interculturais, composto no total por quatro pessoas – o grupo se completa com uma senegalesa e um venezuelano. Há quase oito anos morando em Porto Alegre, ele atuava como mediador no Centro Vida quando viu o anúncio da Prefeitura sobre o novo projeto e não pensou duas vezes.

Agora, passados quase dois anos do início do trabalho, conta que também se tornou promotor de saúde da população negra e realizou vários cursos na área da saúde para melhor orientar sua função junto à população imigrante. Assim como Youdeline, ele pondera que o trabalho na rede de saúde da Capital iniciou sem “manual” e tudo foi sendo aprimorado na dia a dia.

“É um projeto inovador, um projeto pioneiro no Brasil, que traz para nós um olhar muito diferente. Sou mediador, mas também sou imigrante, vi como esse projeto é muito bom para os imigrantes em Porto Alegre”, afirma Júnior.

A convicção do sucesso do projeto vem dos depoimentos e do sorriso no rosto que ele observa nos imigrantes atendidos, satisfeitos por terem alguém do mesmo país no momento da consulta médica. A função dos mediadores interculturais visa ir além da mera tradução do idioma e se propõe a identificar problemas e diferenças culturais existentes no atendimento de saúde.

A equipe tem um telefone celular, pelo qual são chamados pelos postos de saúde quando há agendamento de consulta com imigrantes. Eles se deslocam até o local e acompanham o atendimento presencialmente. Em casos de atendimentos sem agendamento prévio, o auxílio é feito por meio de uma vídeo-chamada, como um primeiro apoio. Pelo mesmo número de celular, a comunidade imigrante também pode fazer contato diretamente com a equipe pelo número (51) 98902-7789.

“A questão dos mediadores não é só a tradução, é uma questão de vida, de imigrante para imigrante, é uma questão de decodificação de cultura, porque ele se sente muito mais à vontade conosco para contar e para gente passar para o profissional de um jeito para ele saber o que está acontecendo. É uma baita experiência. Não é mais promissor,  é um projeto vencedor já”, acredita Júnior.

Ele conta de um caso recente que lhe marcou, uma pessoa com anemia falciforme. Ao ser atendida, deu início ao tratamento médico e está sendo acompanhada. Pode operar e salvar um dos olhos – o outro havia perdido há poucos anos. Júnior acredita que se o projeto existisse há mais tempo, essa pessoa poderia ter salvado a visão do outro olho. De todo modo, graças ao projeto, pode ser atendida e agora está se recuperando. “São tantos casos de sucesso, é tanta coisa…todos os nossos usuário são especiais, mas tem um caso que marca mais”, avalia.

A timidez que a senegalesa Absa Wada, de 36 anos, demonstra diante do microfone para dar entrevista, não a acompanha quando se trata de ajudar no atendimento de saúde de um imigrante. Morando em Porto Alegre desde o final de 2015, diz que os imigrantes do Senegal que vivem na Capital preferiam pagar por uma consulta particular do que serem atendidos na rede pública. A longa espera pela dificuldade de comunicação desestimulava recorrer ao posto de saúde.

Tendo como base o posto Santa Marta, no Centro, região da cidade que concentra a comunidade senegalesa, Absa diz que agora seus conterrâneos já sabem que ela está no posto e lhe procuram quando há consulta. “A maioria sabe que trabalho aqui e agora me chamam. Eu desço para ajudar ou, às vezes, vêm até aqui no sexto andar me procurar.”

O aspecto cultural, ela explica, costuma ser a maior dificuldade dos senegaleses ao procurarem atendimento médico. Isso porque os homens não gostam de ser atendidos por médicas e as mulheres não gostam de ser atendidas por médicos. “Eu explico pra eles e o homem então deixa ser examinado pela mulher, e a mulher deixa ser examinada por um homem, sem problema”, explica.

Último a se integrar à equipe de mediadores interculturais, em abril deste ano, o venezuelano Gabriel Lizarraga demonstrar estar confortável na função. Comunicativo, saiu da Venezuela em 2018, morou quatro anos na Colômbia, e então decidiu vir para o Brasil. Está em Porto Alegre há pouco mais de um ano.

Ao contrário dos colegas que começaram o trabalho há quase dois anos, Lizarraga chegou no grupo com o projeto mais consolidado e se sente complementando a equipe de mediadores interculturais. Depois dos haitianos, os venezuelanos são a segunda maior comunidade de estrangeiros na capital gaúcha.

“É uma experiência maravilhosa porque te faz valorizar tantas coisas, como imigrante, que às vezes não fazemos. E ver o reflexo nas outras pessoas do que acontece no dia a dia, marca a nossa diferença também como imigrante”, analisa.

No meses em que tem atuado na nova função, Lizarraga conta achar incrível a experiência de conhecer, aqui em Porto Alegre, indígenas venezuelanos que jamais havia conhecido em seu próprio país. Ambos venezuelanos, mas de culturas distintas, tal encontro tem sido para ele uma oportunidade de aprendizado, ao mesmo tempo em que retribui criando confiança na relação e podendo ajudar no atendimento médico.

“Hoje eles se sentem mais seguros em ir a um posto de saúde, sabem que não vão ser discriminados, que não vão faltar com o respeito a sua cultura. Esse entendimento entre o posto de saúde e eles, têm sido uma combinação muito boa”, conta, orgulhoso em atuar na equipe de mediadores interculturais. “Todos os dias fazemos o nosso melhor para dar ao imigrante a qualidade que ele merece.”

 

A senegalesa Absa Wada, da equipe de mediadores interculturais. Foto: Luiza Castro/Sul21

Coordenadora de Saúde do Imigrante da Atenção Primária, na Secretaria Municipal da Saúde (SMS) e idealizadora do projeto Mediadores Interculturais, Rita Buttes explica que a iniciativa sempre teve o objetivo de trabalhar com as comunidades haitianas e senegalesas devido à constatação das suas vulnerabilidade e das várias situações de racismo e xenofobia existentes. Havia ainda a informação de que essas comunidades não acessavam o serviço de saúde.

Ela reforça que, desde a concepção, o projeto sempre almejou ir além da mera figura do tradutor. Por isso o nome mediador intercultural. “A distinção do projeto não é falar a língua. A distinção é justamente ter alguém daquela nacionalidade onde questões específicas do país podem ser identificadas e socializadas com confiança, com alguém que conhece mesmo o país”, explica.

Rita recorda que quando o projeto nasceu, em outubro de 2021, a área técnica da Secretaria Municipal da Saúde tinha a ideia de garantir o acesso dos imigrantes à atenção primária à saúde. Sem saber ao certo como alcançar o objetivo, o trabalho foi então sendo moldado na prática diária. Dois anos depois, a equipe já acompanhou 237 pacientes, que se desdobraram em 2.329 ações.

Rita Buttes é a idealizadora do pioneiro projeto em curso há quase dois anos em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

 “Não é só um atendimento. Os mediadores acompanham o caso no segmento do cuidado, desde quando inicia o atendimento e vai indo em tudo aquilo na rede de atenção em saúde que o imigrante precisa”, relata. Na prática, o projeto que foi pensado para dar acesso à rede de atenção primária, pois havia o dado de que apenas 10% dos imigrantes em Porto Alegre acessavam a atenção primária, foi se revelando importante para toda a rede de atenção em saúde.

Uma gestante, por exemplo, é acompanhada ao longo de todo o pré-natal e segue depois do nascimento do bebê, com o teste do pezinho e outros exames e cuidados. Avaliando em perspectiva, a idealizadora do projeto vê essa ampliação como um avanço,  a necessidade que se revelou dos mediadores interculturais acompanharem toda a rede de assistência em função da continuidade do segmento do cuidado.

Ao acompanhar um caso da gestação ao nascimento do bebê, outra constatação foi que o projeto passou a não atender apenas imigrantes e começou a cuidar também dos seus filhos – estes, por sua vez, brasileiros filhos de imigrantes. “É um avanço para nós ter essa compreensão de que as crianças brasileiras, nascidas de pessoas que migraram, são também alvo muito importante do projeto”, pondera Rita, sem esconder a satisfação com a iniciativa que, silenciosamente, tem aberto a rede de saúde da Capital às comunidades imigrantes.

Prestar a completar dois anos de atividade em outubro, a expectativa é de que os mediadores interculturais sigam rodando os postos de saúde de Porto Alegre, com hora marcada ou sem, presencialmente ou de modo remoto.

Marcador de livro sobre o projeto e com o número de atendimento dos mediadores interculturais. Foto: Luiza Castro/Sul21

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