Saúde
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5 de junho de 2022
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09:29

‘Se não é a hora de discutir aborto, quando vai ser?’, questiona médica

Por
Luís Gomes
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Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

O Fórum do Aborto Legal RS realiza, no próximo dia 14 de junho, a 5ª edição do Colóquio Aborto Legal, que irá reunir profissionais e estudantes da área da saúde, segurança e assistência social em um debate online (inscrições pelo link) sobre o acesso ao aborto legal no contexto brasileiro e mecanismos para garantir esse direito e fortalecer as redes de atendimento às situações de violência sexual.

O aborto legal é permitido no Brasil pelo artigo 128 do Código Penal para os casos em que não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Desde 2012, por decisão do Supremo Tribunal Federal, também é permitido em caso de anencefalia do feto.

Contudo, mesmo nesses casos, barreiras são colocadas indevidamente para dificultar o acesso à prática, especialmente nos casos de estupro, como alerta Suzete Bragagnolo, procuradora do Ministério Público Federal com atuação na saúde em Porto Alegre e uma das palestrantes do colóquio. A procuradora diz que, apesar de o aborto legal não estar condicionado à formalização da denúncia da violência sexual por parte da vítima, em muitos casos esta formalização acaba sendo exigida por profissionais de saúde para a sua realização.

Uma dessas barreiras é a portaria do Ministério da Saúde, de setembro de 2020, que estabelece que as autoridades policiais devem ser comunicadas pela equipe médica dos casos, independentemente da vontade da vítima de registrar queixa ou identificar o agressor.

A procuradora destaca, porém, que após a portaria ser editada diversos procuradores regionais de direitos dos cidadãos assinaram um recomendação conjunta direcionada às secretarias estaduais para que a informação dos serviços de saúde à polícia tenha fins meramente estatísticos e não possa ser uma exigência para a realização do aborto. Um protocolo de adoção desse entendimento foi firmado com a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul em janeiro de 2021.

Procuradora do MPF Suzete Bragagnolo | Foto: Divulgação

“Condicionar o serviço de saúde à representação criminal é muito complicado, porque já é complicado fazer com que essas mulheres tenham acesso ao serviço de saúde e daí, elas tendo algum receio de que vai envolver questão criminal e tal, pode restringir ainda mais o acesso”, diz.

Ainda assim, há barreiras que são impostas à margem da legislação e dos protocolos oficiais. Suzete diz que, quando realizou pelo MPF um trabalho de visita aos centros de referência que realizam o aborto legal em Porto Alegre, como o Hospital de Clínicas e o Hospital Conceição, percebeu que havia resistência de alguns médicos em realizarem a prática, sob alegação de objeção de consciência. No entanto, ela destaca que a negativa só pode ser feita se a instituição disponibilizar outro profissional de saúde.

“Alguns hospitais, na época, apresentavam algumas restrições. Nós vimos que havia divergência entre os diversos centros de referência. Em alguns, a equipe lidava de uma forma mais aberta, mais compreensiva a respeito inclusive da legislação. Em outros, as equipes me pareciam ser muito investigativas, sempre desconfiando, digamos assim, da palavra da mulher, porque uma pessoa que chega lá vulnerabilizada, ela precisa de acolhimento e não de uma visão policialesca, não simplesmente colocar em dúvida os medos e o sentimento de uma mulher que já chega no serviço de saúde vulnerabilizada e fragilizada”, diz a procuradora. “É diferente de o serviço de saúde orientar a mulher que quer representar e busca um respaldo. O serviço de saúde está ali dando um apoio, então conscientizar a mulher da importância dessa representação é tranquilo, porque é importante mesmo denunciar. Mas tem mulher que simplesmente não consegue, não se sente segura para isso, e aí vai tolher um direito em razão disso”, complementa.

Helena Borges Martins da Silva Paro, médica ginecologista obstetra e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), pontua ainda que, de acordo com o código civil brasileiro, a única exigência para o aborto é o consentimento da mulher. “Ou seja, não é porque ela tem o direito que ela é obrigada, então ela precisa consentir”, diz. “O médico que exige, o serviço ou o profissional de saúde, que pode ser enfermeiro, pode ser assistente social, pode ser psicólogo, que exige para atender uma paciente vítima de violência sexual estando ela gestante ou não, um boletim de ocorrência, ele está cometendo um crime. Essa é uma exigência criminosa, porque além de estar infringindo o artigo 154 do Código Penal, ele está limitando o acesso das mulheres a esse direito humano fundamental, que é o direito à saúde, que é o direito à sua própria saúde”, complementa.

Médica ginecologista obstetra Helena Paro | Foto: Arquivo pessoal

A médica avalia que a exigência de denúncia, em muitos casos, ocorre até de forma inconsciente pelos profissionais de saúde ou na tentativa de se protegerem em razão do tema ser considerado polêmico. Contudo, ela pontua que isso é resultado do desconhecimento da própria legislação. “Boa parte dos profissionais de saúde que tem essa conduta de exigência de boletim de ocorrência, eu entendo que é por falta de conhecimento e essa falta de conhecimento é culpa deles mesmos, de não buscarem se qualificar para esse atendimento”, diz.

Por outro lado, destaca que também há uma ação deliberada para dificultar o acesso de mulheres ao aborto, o que, em sua avaliação, só resulta em empurrar mulheres para a busca de procedimentos clandestinos, especialmente as mulheres pobres e negras.

“Tem uma parte que eu vejo que é proposital para dificultar o acesso das mulheres, para fazer o acesso a esse direito humano fundamental mais dificultado para as mulheres, achando que impondo essas barreiras, essas dificuldades, eles vão acabar com o aborto legal no Brasil. Não vão. O legal eles até podem diminuir, o que a gente não vê acontecendo, mas eles empurram as mulheres que têm direito a um aborto seguro previsto em lei, orientado por profissionais de saúde, para clandestinidade. Estão empurrando as mulheres que têm direito para o aborto clandestino, mas não estão acabando com aborto. Porque uma mulher que tem uma gravidez em decorrência de uma violência sexual, se ela decide interromper essa gravidez e não consegue acesso, ela vai buscar os meios clandestinos, muitas vezes inseguros ou não. A mulher que tem recurso, ela vai comprar uma medicação no mercado clandestino, que é cara, ao passo que a mulher pobre, muitas vezes isso é um recorte de raça e de classe, as pretas e pobres, vão recorrer aos procedimentos inseguros colocando em risco suas vidas, então é uma hipocrisia”, diz.

Por outro lado, Helena destaca que ações vêm sendo desenvolvidas para garantir o acesso, como é o caso do serviço de acompanhamento por telemedicina que ela própria ajudou a criar no Hospital de Clínicas vinculado à Universidade Federal de Uberlândia, em 2021, para atender mulheres durante a quarentena. Após uma primeira consulta presencial, a mulher em situação de gravidez em decorrência de um estupro passa a ser acolhida e orientada por uma equipe multiprofissional, composta por médicos, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros, por telefone, videoconferência ou WhatsApp. A vítima também recebe três doses de um medicamento que induz o aborto.

“O que a gente tem visto é que o WhatsApp mesmo que é utilizado tanto para esse acompanhamento durante o tratamento, quanto também para as consultas posteriores, que uma vítima de violência sexual geralmente tem um acompanhamento mínimo de seis meses”, diz.

Além disso, ela pontua que a telemedicina ajuda a enfrentar um problema que é o fato de quase 60% das mulheres brasileiras morarem em cidades que não possuem centros de referência para a realização do aborto legal. “Elas têm que viajar para ter esse primeiro encontro, para essa primeira consulta e assinar todos os papéis exigidos nas portarias do Ministério da Saúde, mas o restante do tratamento não precisa demandar que essas mulheres se desloquem, é assim que funciona o atendimento por telemedicina”.

O aborto é legal ou descriminalizado em seis países da América do Sul: Uruguai, Chile, Argentina, Guiana, Guiana Francesa e Colômbia. Neste último, foi descriminalizado até a 24ª semana de gestação por uma decisão da Corte Constitucional, equivalente ao Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro.

O PSOL protocolou em 2017 junto ao STF  a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que questiona os artigos 124 e 126 do Código Penal e visa descriminalizar o aborto até o terceiro mês de gestação. Por determinação da ministra Rosa Weber, uma audiência pública foi realizada em 2018, mas o processo ainda aguarda julgamento.

Recentemente, a discussão ganhou destaque na mídia quando o ex-presidente Lula, pré-candidato à presidência, afirmou em um evento que era a favor da legalização do aborto e de que a pauta seja tratada pelas perspectivas social e de saúde. “Aqui no Brasil, por exemplo, as mulheres pobres morrem tentando fazer aborto porque é proibido, o aborto é ilegal. A mulher pobre ela fica cutucando seu útero com uma agulha de crochê, ela fica tomando chá de qualquer coisa”, disse Lula no dia 5 de abril.

À fala do ex-presidente, seguiu-se uma discussão se ele teria acertado ou errado ao abordar o tema. Para Helena, a imprensa que deveria ter um papel importante para qualificar o debate, acabou, no caso, prestando um desserviço.

“A voz do ex-presidente foi silenciada pela própria mídia, dizendo que não era hora dele falar sobre isso. Se não é a hora, quando vai ser? Se não é hora, quando é o momento de discutir pautas importantes para o nosso País? Pautas importantes de saúde, não só saúde pública, mas saúde individual das mulheres”, questiona a médica.

Helena pontua que as estatísticas apontam que uma a cada cinco mulheres realizam um aborto, seja pelos meios legais ou clandestinos, até os 39 anos de vida. “Se você conhece cinco mulheres nessa faixa etária, você certamente conhece alguém que já interrompeu a sua gravidez. A questão é pensar se ela deve ser criminalizada, se ela deve ser presa ou não, é esse o debate que se coloca, e como a criminalização alimenta o mercado clandestino, isso é algo que precisa ser colocado. E aí a gente não pode interromper esse debate, não pode achar que aborto é pauta de costume. Aborto não é pauta de costume, aborto é pauta de saúde. A gente precisa qualificar esse debate”, diz.

Ela acredita que o STF, apesar da demora para colocar a ADPF 442 em votação, tem legitimidade para julgar a descriminalização, assim como sustenta que é necessário um movimento para eleger parlamentares que defendam os direitos sexuais e reprodutivos de gestantes. Contudo, avalia que é preciso maior mobilização em torno da pauta.

“Eu penso que podemos avançar, mas precisamos de uma mobilização maior da população mesmo, de entender a importância desse debate para cuidar da vida das meninas e mulheres brasileiras, porque hoje o estado brasileiro é um estado que claramente negligencia a vida de meninas e mulheres brasileiras, tanto é que somos o País com um dos maiores índices de mortalidade por covid-19 entre mulheres gestantes. Não é à toa”, afirma.

O 5º Colóquio Aborto Legal RS é organizado pelo coletivo Fórum Aborto Legal RS, com apoio de Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Grupo Curumim, Portal Catarinas, Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. O colóquio prevê a realização de quatro mesas, das 9h às 12h e das 14h às 17h do dia 14 de junho.


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