Política
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28 de abril de 2022
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12:58

Vítimas do sistema de justiça brasileiro contam sua história: ‘a Justiça sou eu, é a minha voz’

Por
Marco Weissheimer
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Mesa do FSM Justiça e Democracia reuniu vítimas do sistema de justiça no Brasil. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Mesa do FSM Justiça e Democracia reuniu vítimas do sistema de justiça no Brasil. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Ana Paula Oliveira conheceu o sistema de justiça brasileiro na própria carne, ou melhor dizendo, na carne do próprio filho, Johnatha, de 19 anos, assassinado com um tiro nas costas por um policial militar no Rio de Janeiro, no dia 14 de maio de 2014. Assim como Johnatha, Ana Paula nasceu e foi criada na favela de Manguinhos, localizada na zona norte do Rio. “Eu conheci o sistema de justiça através da dor”, resumiu, quarta-feira (27) à noite, na abertura da mesa “Vítimas do sistema de justiça”, no auditório Dante Barone, dentro da programação do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia, que ocorre em Porto Alegre. O auditório da Assembleia Legislativa gaúcha ficou lotado para ouvir os relatos de quatro mulheres e um jornalista que foram (e seguem sendo, em diferentes medidas) vítimas do sistema de justiça brasileiro.

O policial militar que matou Johnatha, que já respondia por triplo homicídio, segue em liberdade. Todos os dias, ao longo desses oito anos”, disse Ana Paula, “venho procurando reunindo forças e a cada dia descubro que a Justiça sou eu, que a Justiça é a minha voz, que a voz do Johnatha sou eu. A minha luta é uma luta pela vida”. Juntamente com outras mães que tiveram seus filhos assassinados pelo Estado, Ana Paula criou o movimento Mães de Manguinhos, “um movimento de mães de negros pobres, moradores de favelas, assassinados pelo Estado brasileiro”, como ela definiu.

Auditório do Dante Barone ficou lotado para debate com vítimas do sistema de justiça (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Com uma voz firme, Ana Paula falou chorando, durante boa parte de sua exposição, que calou fundo no auditório. “Essa luta não pode ser só das mães que perderam seus filhos assassinados pelo Estado, tem que ser de toda sociedade”, defendeu. “A Justiça que me foi apresentada tem uma engrenagem voltada para matar, para encarcerar, para desaparecer com os corpos negros. “Não é fácil para mim falar dessa dor. Eu luto para que outras mães tenham o direito de viver com os seus filhos”. 

Em seguida, foi a vez de Marinete Silva, mãe da vereadora Marielle Franco, assassinada no dia 18 de março de 2018, no Rio de Janeiro. “Marielle”, resumiu Marinete, “era uma pessoa tão plural, que incomodou tanto algumas pessoas, que acabou sendo morta”. O sistema de justiça brasileiro, afirmou a co-fundadora do Instituto Marielle Franco, não é para ninguém que vive na periferia. “Precisamos ter uma mudança total deste sistema. Um número enorme de crianças e adolescentes vivem sem assistência e estão morrendo todos os dias. Estamos vivendo um genocídio dentro do Brasil”.

Marinete Silva acredita que a morte de Marielle foi um divisor de águas, pelo fato de marcar a luta de uma mulher que enfrentou o sistema branco, patriarcal. E também por expor as falhas do sistema de justiça brasileiro. “Já estamos no quinto delegado no processo de investigações. Dois homens foram presos, mas os mandantes ainda não foram responsabilizados. Não tem como ter democracia com um crime bárbaro como esse. Mas Marielle não foi calada e não vai ser. Estamos aqui para isso”, acrescentou Marinete, alertando que a atual conjuntura exige muito mais do que ficar apenas gritando ‘Fora Bolsonaro’. “Cada um de nós precisa fazer o seu dever de casa”, resumiu.

Marinete Silva, mãe de Marielle Franco (Foto: Luiza Castro/Sul21)

O jornalista Luis Nassif fez um relato de vários processos que sofreu nos últimos anos, incluindo condenações e bloqueios de contas que atingiram inclusive sua companheira. Além disso, contou que está com três matérias censuradas, que ainda não puderam ser publicadas por decisão judicial. “Eu poderia falar que o Dória (João Dória, ex-governador de São Paulo e pré-candidato à presidência da República pelo PSDB) processou o GGN, pedindo 5o mil reais de indenização por suposto dano moral, e o juiz elevou esse valor para 100 mil, mas o que é isso diante de uma mãe que tem o seu filho assassinado?”

Nassif defendeu a necessidade de estabelecer um debate em outro patamar envolvendo a situação da democracia e da justiça no Brasil. “Temos hoje uma democracia imperfeita, onde o trabalhador virou um mero insumo. Quando temos algum momento de desafogo, como tivemos nos governos Lula e Dilma, o mercado vê isso como uma ameaça que coloca seus negócios em risco. A grande questão que está colocada diante de nós hoje é o aprofundamento da democracia e da participação social em todas as políticas públicas”, afirmou, citando como exemplos a serem seguidos a luta da Saúde Pública que conseguiu resistir a Bolsonaro ao longo da pandemia e as tecnologias de Reforma Agrária e de agroecologia desenvolvidas pelo MST que fizeram do movimento o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.

Luis Nassif relatou casos de processos e censura que vêm sofrendo. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Primeira advogada indígena da região sul do Brasil e do povo kaingang, Fernanda Kaingang expôs o processo de crescente e massiva violação de direitos dos povos indígenas, que a atingiu pessoalmente também. “Neste momento estou refugiada. Estou há seis meses fora da minha aldeia”. Fernanda Kaingang, que vivia na Terra Indígena Serrinha, no Rio Grande do Sul, recebeu ameaças de morte por denunciar o esquema de arrendamento de terras da aldeia para o plantio de soja principalmente.

Há 21 anos, lembrou a advogada, foi realizado o Fórum Social Mundial aqui em Porto Alegre e foi organizado um espaço pelos povos indígenas, a Confederação dos Tamoios. “Onde está o espaço dos indígenas em 2022? Éramos mais de 1000 povos indígenas no Brasil. Hoje somos 350. Onde estão os outros 700? No primeiro Fórum, foi feito um tribunal onde o capitalismo foi condenado. Hoje, pergunto: onde está a execução da pena?”, questionou. Fernanda Kaingang denunciou o avanço do agronegócio, de madeireiras e mineradoras sobre as terras indígenas. No caso do Rio Grande do Sul, um dos principais problemas envolve o processo de arrendamento de terras por fazendeiros em áreas indígenas.

Fernanda Kaingang denunciou arrendamento de terras em áreas indígenas no RS. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

“Caciques estão sendo cooptados por esse esquema e armados para que os indígenas se matem entre si. A violência não faz parte da cultura indígena, o estupro não é cultura indígena e o feminicídio também não. Eu escapei de ser morta por questionar esse esquema de arrendamento de terras. O arrendamento de terras indígenas mata”, denunciou Fernanda que chamou sua mãe, Audila Kaingang, da primeira turma de educadoras indígenas do Brasil, para subir ao palco e entregar um documento à ex-presidenta Dilma Rousseff, que é um pedido de socorro dos povos indígenas.

Recebida aos gritos de “Dilma guerreira do povo brasileiro”, a ex-presidente Dilma Rousseff abriu sua fala destacando a importância de relembrarmos a nossa história para entender o caráter estrutural da desigualdade que “condena o Brasil a estar permanentemente aquém de suas potencialidades”. Trata-se, assinalou, de uma desigualdade perversa atravessada pelas questões racial e de gênero. Para Dilma, os mais de 300 anos de escravidão que o Brasil teve ecoam até hoje na sociedade e são responsáveis pelo neofascismo brasileiro.

“Precisamos encarar isso. A questão nacional está intimamente ligada à escravidão e ao colonialismo. Não há como enfrentar a desigualdade no Brasil sem enfrentar esses temas. A nossa elite tem no seu DNA essa visão de ver o negro e o indígena como coisas. Isso explica também o extermínio da juventude negra que ocorre em todos os estados da Federação. E, além dos casos conhecidos, tem também aqueles silenciados, que se não tiver uma mãe de Manguinhos denunciando, ninguém tomará conhecimento”.

Dilma Rousseff: “Quando a Justiça tarda, ela falha”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Dilma Rousseff chamou atenção ainda para os laços estreitos que unem a Justiça e a Política. “Uma Constituição é um instrumento jurídico e político. Um golpe de Estado também”. Neste ponto, ela apontou uma falha dos setores democráticos no processo pós-ditadura, cujo preço está sendo pago até hoje. “Nós fizemos a justiça em relação à ditadura de 64 atrasada. Perdemos o tempo histórico. A Comissão da Verdade foi uma pálida retomada do direito à verdade histórica que o país tem. Mas o direito à verdade não é só conhecer. É também fazer a justiça de transição e hoje pagamos o preço de não ter feito isso. Quando Bolsonaro elogia a ditadura ele flerta com a intervenção e não tem o obstáculo de um povo com consciência histórica sobre o que aconteceu. Quando a justiça tarda, ela falha”, disse Dilma.

Estamos vivendo um momento, acrescentou, em que um processo histórico foi resolvido por um golpe de Estado e que será necessária muita organização social para derrotar Bolsonaro. “Bolsonaro não tem o chip da moderação. O fascismo não tem. Temos uma alternativa no campo popular, com o presidente Lula, mas que não pode se limitar ao Lula. Precisamos de muita participação e organização. Como disse um pensador italiano, organizar é ser capaz de ter uma estratégia para alterar o que se quer alterar. Fazer política é fundamental para fazermos as mudanças no Brasil. Caso contrário, os presidentes populares continuarão caindo”.


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