Meio Ambiente
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31 de agosto de 2023
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06:50

Na mira de ambientalistas, Melo elabora plano de ação que promete enfrentar crise climática

Por
Luciano Velleda
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Fortes chuvas podem atingir a Capital neste domingo. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Fortes chuvas podem atingir a Capital neste domingo. Foto: Guilherme Santos/Sul21

“O Plano de Ação Climática (PLAC) de Porto Alegre tem como objetivo identificar e estabelecer medidas prioritárias concretas de redução de emissões de Gases de Efeito Estufa, de mitigação e de adaptação (social, econômica, ambiental e territorial). O PLAC irá propor mecanismos e instrumentos que possibilitem a implementação pelo município das metas estabelecidas, como zerar as emissões até 2050.”

Assim começa o enunciado da página criada pela Prefeitura para informar sobre a elaboração do Plano de Ação Climática, processo iniciado em março deste ano e que será finalizado em julho de 2024, quando então dará origem a um anteprojeto de lei. Planejado em três etapas – Engajamento e Mobilização; Diagnóstico; e Desenho do Plano de Ação Climática – o trabalho atualmente se encontra na fase dois, o relatório de diagnóstico da análise de riscos e vulnerabilidades climáticas e da pegada hídrica da Capital. O cronograma prevê que a análise de riscos e vulnerabilidades climáticas seja finalizada agora em setembro, enquanto o relatório da pegada hídrica deve ser concluído em outubro.

Planos de ação climática ou de adaptação à crise do clima têm sido desenvolvidos em várias cidades do mundo. Afinal, o tempo urge e os efeitos causados pela mudança do clima já são sentidos em todo o planeta. No caso da Capital gaúcha, se por um lado a iniciativa do prefeito Sebastião Melo (MDB) é bem vinda, por outro, chama a atenção que tal trabalho seja proposto por um governo que tem colecionado críticas de ambientalistas devido aos polêmicos projetos com impacto ambiental. O mais recente se refere à questionada obra em curso no Parque Harmonia, após a área ter sido concedida à iniciativa privada por 35 anos.

Outra contradição se refere ao transporte, o principal emissor de gases de efeito estufa em Porto Alegre. Enquanto Melo se prepara para vender a Carris e deixar toda o sistema de transporte urbano sob domínio privado, ainda incentiva a expansão de mais estacionamentos em empreendimentos imobiliários e urbanos, como no próprio parque Harmonia e também no Marinha do Brasil. Há tempos cientistas apontam que o caminho para enfrentar o aquecimento global é outro: mais transporte público eficiente e menos carros nas ruas.

Diretora de projetos e políticas de sustentabilidade da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smamus), Rovana Reale Bortolini explica que a primeira etapa do Plano de Ação Climática tem sido elaborar um inventário de dados de Gases do Efeito Estufa (GEE). Desse modo, a Capital terá então melhores condições de acesso a financiamentos para tentar minimizar os impactos da mudança climática.

O inventário com dados do efeito estufa tem como base os anos de 2016 a 2019, onde se faz a análise do cenário de emissões de gases do efeito estufa (GEE) em Porto Alegre. Esse diagnóstico mostra que o transporte é o maior emissor, com 67% dos gases de efeito estufa (sendo 11% do transporto público), seguido por energia (19,2%) e resíduos (8,8%).

O segundo passo é a elaboração do plano de ação para mitigar as emissões ou adaptar o território diante do que não se consegue mitigar. “Esse é o objetivo do plano de ação e a gente vai estabelecer as metas de redução das emissões”, afirma Rovana, lembrando que a Capital se integrou, em 2021, à campanha “race to zero”, que busca zerar as emissões de gases do efeito estufa até 2050.

O Plano de Ação Climática em curso pela Prefeitura se propõe a dizer o que precisa ser feito para cumprir o objetivo de zerar as emissões até 2050. De imediato, a diretora de projetos destaca, por um lado, a necessidade de troca da matriz energética do transporte e das construções e, por outro lado, a urgência em adaptar os territórios da cidade mais suscetíveis à mudanças climáticas, como inundações e ventos fortes. Em suma, tornar Porto Alegre uma cidade mais resiliente à crise climática.

Rovena explica que o estágio atual é de elaboração das vulnerabilidades dos territórios e como eles conseguem se adaptar ou não, quais mudanças precisam ser feitas, além do diagnóstico da “pegada hídrica” – que significa o quanto a população de Porto Alegre precisa de água e o quanto estamos poluindo nossa fonte d’água, o Guaíba.

Enquanto o plano não é concluído, ela diz que a Prefeitura já tem atuado para diminuir as emissões de gases de efeito estufa. Como exemplo, cita a certificação sustentável, incentivo para construção de telhados verdes e instalação de painéis solares, o projeto inicial de biodigestores nas escolas, a redução de resíduos sólidos, entre outras ações.

Ela afirma que há, inclusive, a demanda de redução de vagas de estacionamento em novos empreendimentos – um aspecto curioso, considerando o incentivo dado pelo governo Melo a grandes projetos imobiliários e urbanos com centenas de vagas de garagem.

Outro ponto destacado pela diretora de projetos e políticas de sustentabilidade é o estudo para eletrificar toda a frota de ônibus de Porto Alegre. Rovana não dá valores, mas afirma que a Prefeitura já sabe o custo financeiro dessa mudança. “A gente tem esse estudo pra subsidiar o gestor quando achar pertinente e que chegou a hora de trocar. É um custo muito grande, no primeiro momento, mas é importante. O objetivo é atacar essa frente”, afirma, reconhecendo, todavia, que não há prazo estabelecido para isso ocorrer e que a Prefeitura busca financiamento.

Apesar dos eventos extremos do clima já serem realidade, ela explica que o plano em elaboração não trata de medidas emergenciais que poderiam ser aplicadas imediatamente.

Principal responsável pelo aquecimento global, quantidade de CO2 na atmosfera hoje é o dobro de antes da Revolução Industrial. Foto: Guilherme Santos/Sul21

O geólogo Rualdo Menegat, professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, chama atenção para a complexidade do tema e analisa a emergência climática como um fenômeno que não tem apenas uma causa e uma consequência.

Como exemplo da complexidade, ele explica que o degelo nas camadas polares da Terra diminui a reflexão do calor do sol para o espaço. O gelo funciona como um espelho: o sol bate e volta. Com menos gelo, mais regiões do planeta vão ter que absorver o calor do sol e, como consequência, a temperatura aumenta. Se a temperatura sobe, o gelo derrete mais. É um ciclo. A Terra precisa devolver para o espaço a quantidade de calor que recebe do sol. Se isso não acontece, ela esquenta.

Um dos grandes vilões do aquecimento global e da mudança do clima é o dióxido de carbono (CO2), mais conhecido como gás carbônico, chamado pelos cientistas de “forçante climática”, ou seja, com o poder de mudar o clima. É ele o principal responsável por não deixar o calor retornar ao espaço.

“O gás carbônico é uma importante variável e está numa concentração quase o dobro de antes da Revolução Industrial. Então vai aquecer, está aquecendo e a primeira medida que deve ser tomada diante disso, é interromper as causas”, alerta Menegat.

O geólogo destaca que o tema precisa ser debatido pela sociedade. Não se trata de bradar um viés alarmista de “fim de mundo”, mas o assunto deve ser discutido. No caso de Porto Alegre, que prepara seu plano de ação climática, isso envolve interromper ao máximo os principais emissores de CO2. Em termos gerais, a queima de carvão por termoelétricas tem sido o principal emissor de CO2. No caso do Rio Grande do Sul, o problema é exemplificado pela termoelétrica de Candiota. Na Capital, é o CO2 emitido principalmente pelo transporte.

Se a produção de energia baseada em combustíveis fósseis é o primeiro grande problema, o segundo é o consumo da própria energia. E, neste aspecto, Menegat enfatiza que as cidades – e Porto Alegre – precisam mudar o seu consumo de energia. Afinal, ele está em níveis elevadíssimos. E segue aumentando.

“Nós podemos viver com menos energia. Parece que a humanidade não pode viver sem consumir muita energia. É mentira”, afirma o autor do Atlas Ambiental de Porto Alegre. “Podemos viver com muito menos energia. E a energia que nós consumimos é muito desperdiçada. Temos que ter planos de maior eficiência energética para todos os nossos equipamentos, desde uma geladeira até um ar condicionado, os carros… todos são altos consumidores de energia e ainda com baixa eficiência energética. Então é muito importante que a cidade se prepare para ter menor consumo de energia e mais eficiência energética”, explica.

As indústria devem ser mais eficientes. A casa das pessoas (e os prédios) precisa ser mais eficiente, apostando em energia alternativa, como painéis solares. A mudança climática, diz Menegat, impõe que as cidades tenham mais autonomia energética e, como consequência, mais controle sobre o próprio uso de energia. O geólogo defende que o governo municipal incentive esse processo de mudança. “A Prefeitura deve representar os anseios da sociedade e induzir procedimentos. É isso que esperamos de um governo municipal, que ele esteja atento às suas comunidades.”

O transporte coletivo eficiente é uma das necessidades de Porto Alegre para se adaptar a mudança climática. Foto: Luiza Castro/Sul21

O coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre defende que ganhar autonomia energética deve ser a primeira meta de uma cidade como a capital gaúcha. A segunda meta deve ser a autonomia de abastecimento de água. Afinal, a emergência climática altera o ciclo das águas.

Por fim, o transporte público, que precisa ser mais eficiente, barato e de baixo custo energético. Neste ponto específico, o geólogo analisa que Porto Alegre está indo em sentido exatamente contrário, com o sucateamento do transporte público e a terceirização do serviço. “O prefeito simplesmente abandonou as políticas de transporte, entregou nas mãos de terceiros, é a ‘uberização’. Ele deixa de fazer a gestão do transporte público, o que é essencial para a cidade. As cidades sem transportes são inviáveis porque tudo é longe”, pondera.

Menegat defende a expansão dos BRTs (Bus Rapid Transit), um sistema rápido de transporte de ônibus considerado parte importante para as soluções de mobilidade urbana. Os BRTs, destaca o geólogo, são uma bem sucedida estratégia de transporte de massa, embora reconheça que ônibus elétricos também são boas alternativas, além do incentivo ao transporte alternativo, como bicicleta para pequenos trajetos ou para se deslocar até o ponto de ônibus.

“Isso tudo resulta em grande poupança de energia da cidade. Como é possível que a Prefeitura investiu o tesouro dos nossos impostos para construir pistas exclusivas para ônibus BRT e não está em uso, está sucateando?”, questiona. E completa: “No momento em que nós precisamos ter mais transporte público, menos carros nas ruas, mais eficiência de transporte, vemos como Porto Alegre está na contramão. Temos que desativar gradativamente o uso dos transportes individuais de alto consumo energético e baixa eficiência de transporte”, enfatiza.

A crítica do professor da UFRGS tem respaldo na realidade de projetos em curso na Capital desenvolvidos pelo governo Melo. A concessão à iniciativa privada dos parques Harmonia e Marinha do Brasil prevê grandes áreas de estacionamento; a ideia fracassada de também repassar o parque da Redenção à iniciativa privada permitia a construção de um estacionamento subterrâneo; além de outros projetos imobiliários, como a parceria da Melnick e do Grupo Zaffari numa espécie de shopping no centro da cidade, com quase 700 vagas de estacionamento. Todos projetos que incentivam o uso do automóvel, enquanto os caminhos para enfrentar a mudança climática pedem o contrário.

“Porto Alegre abandonou esse plano. Porto Alegre foi pioneira no Brasil com faixas exclusivas de ônibus, é isso que dá eficiência. Hoje se vê as faixas exclusivas de ônibus abandonadas, vazias, enquanto as pistas de carro estão cheias, são milhares de carros parados emitindo gases”, lamenta Menegat.

Acostumado a pesquisar os fenômenos macro da crise climática, o meteorologista Francisco Eliseu Aquino, professor do Centro Polar e Climático da UFRGS, avalia que a emergência climática envolve o planejamento amplo da cidade, incluindo a diminuição da desigualdade social, a já citada melhoria da mobilidade urbana, além de uma cidade com mais ar puro, árvores e água.

“São condições que vão ajudar no enfrentamento da mudança climática”, afirma. Aquino enfatiza que a mudança no clima não só já é uma realidade como tem se intensificado. Portanto, ele explica, cabe aos gestores e à sociedade aumentar urgentemente a resiliência das cidades em relação à mudança climática.

Por ser um dos principais emissores de Gases do Efeito Estufa (GEE), a diversificação do transporte público é um ponto destacado pelo professor da UFRGS. A ampliação de áreas verdes é outro aspecto. Ainda que Porto Alegre seja há tempos reconhecida como uma cidade bem arborizada, a emergência climática exige ainda mais verde. “O maior elemento favorável para combater a mudança climática são os serviços que a própria natureza nos dá. Então uma cidade com cinturão verde, com mais jardins e praças sempre vai ser extremamente importante”, explica.

Além das ações que podem e devem ser planejadas pelas autoridades, o meteorologista ressalta haver um desafio anterior à elaboração do plano de ação climática: a compreensão da população sobre o que é o problema e como colocar em prática, no dia-a-dia, o que precisa ser feito.

“A desinformação sobre esta pauta, devido às diferenças econômicas e sociais, é muito grande e isso torna difícil você ter um plano eficiente. Você pode ter o melhor plano, ter recursos para o plano e a maior parte da sociedade não compreender, não entender a relevância e não cumprir”, analisa, estendendo o olhar para uma cidade com boa parte da população sem acesso a educação e saúde de qualidade, problemas de moradia e alimentação.

Aquino ressalta que 2023 deve ser o segundo ou terceiro ano mais quente do século, conforme medições científicas. Um ano repleto de eventos extremos pelo mundo, como ondas de frio e calor, chuvas extremas, queimadas e ciclones extratropicais. Os oceanos estão mais quentes, conforme registros dos últimos 170 anos. As consequências não são apenas projeções científicas, são reais, como a onda de calor que atingiu o Rio Grande do Sul no verão de 2023 ou as chuvas torrenciais que abalaram o Nordeste em 2022 ou ainda as vastas queimadas no Canadá. Fenômenos extremos que só acontecem porque a mudança climática já está posta.

 

A educação da sociedade é considerada uma premissa fundamental para que qualquer plano de ação climática alcance seu objetivo. Foto: Luiza Castro/Sul21

“A vida vai custar mais caro, o prejuízo vai ser maior e isso vai causar conflito, vai causar dano. E isso repercute em desemprego, em qualidade de vida, que repercute em baixa alimentação, em baixo estudo, que repercute, de novo, em você não conseguir enfrentar adequadamente a emergência climática”, projeta o professor do Centro Polar e Climático da UFRGS.

Ele avalia que as populações da Europa, que estão passando por ondas de calor extremo, hoje percebem que deveriam ter melhorado a arborização de suas cidades. O custo é alto e pago com vidas. Cerca de 60 mil pessoas morreram na Europa, em 2022, devido ao calor. Ondas de calor que só ocorreram porque o planeta está mais quente. E o planeta está mais quente devido às ações humanas. Aquino destaca que isso está acontecendo em países e cidades que já tinham elaborado planos de adaptação climática, porém, a realidade tem mostrado que tais planos não são bons ou são insuficientes.

“Morreram 60 mil pessoas em países onde você tem alerta meteorológico antecipado, sistema robusto, tudo funcionando. O que está acontecendo? Boa parte da população não entendeu, não acompanhou, não cresceu no mesmo caminho”, acredita.

O meteorologista ressalta que a maior parte da população mundial vai ser diretamente afetada pelos eventos extremos. As ondas de calor, por exemplo, atingem cerca de 40% a 50% do planeta Terra, com um impacto enorme na qualidade de vida. E, obviamente, a maior parte dessas populações vivem em cidades. Portanto, afirma Aquino, é imprescindível que as cidades tenham planos de adaptação climática, planos que considerem que a emergência climática está se mostrando mais intensa do que as previsões científicas uma década atrás.

“Os eventos extremos estão assustando os especialistas porque realmente atingiram magnitudes muito elevadas. Estes eventos vão trazer uma vida realmente desagradável”, reconhece o professor da UFRGS.

Educação e comunicação são elementos determinantes para o sucesso de um bom plano de adaptação climática, considera Aquino. Sem estes elementos, a sociedade pode não compreender a gravidade da situação. E sem adesão da população, a Prefeitura de Porto Alegre pode até elaborar um ótimo plano, mas ele não terá sucesso.

“As pessoas precisam ajudar o plano a funcionar. Ele precisa ir pra realidade, pra prática, acelerar a nossa capacidade de adaptação e mitigação. Não tem mais como a gente desviar da mudança do clima, não tem mais como a gente diminuir esses eventos extremos, a gente precisa agora é saber como melhor trabalhar na crise”, afirma Aquino.

Se tudo correr como a Prefeitura prevê, o governo Melo apresentará, em julho de 2024, o plano de ação climática da Capital, quando então os porto-alegrenses poderão saber até que ponto uma gestão criticada por suas ações ambientais planejou o futuro de Porto Alegre para enfrentar a maior emergência da atualidade.


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