Internacional
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5 de março de 2022
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09:55

‘Estamos vendo um show de discursos que é puro racismo na cobertura da guerra’

Por
Luís Gomes
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Diferença de tratamento a refugiados africanos é um dos temas que alimenta a discussão sobre racismo | Foto: Reprodução/Twitter/Alexander Somto (Nze) Orah
Diferença de tratamento a refugiados africanos é um dos temas que alimenta a discussão sobre racismo | Foto: Reprodução/Twitter/Alexander Somto (Nze) Orah

A comunidade internacional assiste há mais de uma semana transmissões quase 24 horas por dia da guerra entre Rússia e Ucrânia. Para além das imagens de destruição e devastação da Ucrânia, a cobertura da guerra tem evidenciado uma diferença de tratamento dada a populações europeias e de outras localidades vítimas de conflitos armados e mesmo uma diferença de tratamento às vítimas brancas e não brancas em território ucraniano.

Para a professora dos programas de pós-graduação em Direito e em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Karine de Souza Silva, a cobertura tem evidenciado discursos que são claramente racistas.

“O que nós vimos agora é um show de discursividades viajando por todo o mundo, completamente acessível para as pessoas, que são racistas. É racismo puro, que nós negros, negras e indígenas já conhecemos há muitos anos. A diferença é que passa agora na TV e a gente começa a ver tão claro como esse discurso opera em vários ângulos. Não é somente no âmbito dos refugiados, não é somente no âmbito de guerra, mas, quando se está falando em racismo estrutural global, significa que o racismo atravessa todas as nossas relações”, diz. “Esses processos sempre existiram, mas agora as máscaras estão caindo, estão sendo televisionados”.

Um dos elementos desse racismo é a diferença de tratamento dada a refugiados africanos e a ucranianos de origem africana que tentam deixar o país em comparação com os migrantes brancos. Uma postagem do estudante nigeriano Alexander Somto Orah em que ele relata a diferença de tratamento dada a brancos e não brancos na fronteira da Ucrânia com a Polônia recebeu mais de 20 mil compartilhamentos no Twitter.

Na postagem, feita no dia 27 de fevereiro, ele relata que estava há dois dias no local sem que conseguisse cruzar a fronteira e que foi ameaçado de ser baleado.

Em outro relato, ele aponta que foi retirado de um trem pela polícia ucraniana com a justificativa de que o transporte seria apenas para ucranianos. Eventualmente, Orah conseguiu cruzar a fronteira, mas a discussão sobre a diferença de tratamentos cresceu ao ponto de mobilizar autoridades africanas e levar a Ucrânia a reconhecer o problema e criar mecanismos para solucioná-lo. No dia 2 de março, o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, divulgou a criação de uma linha de telefone emergencial voltada para informar estudantes africanos, asiáticos e de outras nacionalidades que buscavam deixar o país.

Outro elemento de racismo que veio à tona em meio ao conflito foi o contraste entre o choque da guerra em território europeu com a naturalização de conflitos que ocorreram e seguem ocorrendo pelo mundo nos continentes africano e asiático. Um dos exemplos que mais circularam nas redes sociais foi a fala de Charlie D’Agata, do canal norte-americano CBS News, de que o conflito ocorria em uma cidade “relativamente civilizada”. “Esse não é um lugar, com todo respeito, como Iraque, ou Afeganistão, que tem visto conflitos por décadas. Essa é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia”, disse D’Agata, no dia 25 de fevereiro.

Outro exemplo é o artigo do jornalista Daniel Hannan, do jornal britânico The Telegraph, dizendo que a guerra era chocante porque as vítimas eram pessoas “como a gente”. “Eles se parecem tanto com a gente. Isso é o que faz ser tão chocante. A Ucrânia é um país europeu. Sua população assiste Netflix e tem contas no Instagram, votam em eleições livres e leem jornais não censurados. A guerra não é mais uma coisa que atinge populações empobrecidas e remotas. Pode acontecer com qualquer um”.

A professora Karine destaca que, quando se critica a solidariedade seletiva com relação a refugiados, não está se minimizando a necessidade de apoio e acolhimento aos ucranianos fugidos da guerra, mas justamente apontando a diferença de tratamento com relação a outros povos migrantes.

“Tem outra questão fundamental em relação à solidariedade seletiva que é que outros migrantes forçados e vítimas de guerra, vítimas dos mesmos processos violentos de guerras, não recebem o mesmo tratamento. As pessoas da Ucrânia merecem todo o acolhimento, mas a gente precisa dizer que há uma hierarquização social e que é baseada na raça”, diz. “Quem fala que não é momento de falar isso agora são pessoas que estão em lugares de privilégio, tem muito a ver com a posição de poder que a branquitude assume. Ou você é antirracista o tempo todo ou não é, não existe meio termo. Quando a humanidade das pessoas está sendo ferida, é obrigação de todo mundo se levantar para denunciar, independente de lugar ou circunstância. Não dá para ser à la carte”, complementa.

Ela pontua que a hierarquização de povos e sociedades pela raça está na gênese do racismo, destacando que é preciso compreender que o racismo é um fenômeno de natureza internacional.

“O que acontece ali é um processo de solidariedade seletiva com identificação, o sujeito identificando-se com o outro. Mas também é interessante relembrar que o racismo é a ideia da superioridade intelectual, estética e física das pessoas brancas. Então, essa ideia, que depois entra para dentro das universidades e era chamado de racismo científico, e depois todas essas teses foram derrubadas, nasce na Europa. São os próprios europeus que criam o racismo, essa ideia de raça, a classificação social baseada nessa ideia de raça. Esse processo, além de internacional, é antigo, com pelo menos 500 anos. Quando os europeus saem para a colonização, começam também os processos de internacionalização do capitalismo. Então, o capitalismo está completamente associado às teses racistas. O que acontece é que o padrão de poder mundial, como vai dizer o Anibal Quijano e vários outros autores, é baseado nessa classificação racial e na exploração do corpo e do trabalho. Ou seja, era necessário classificar as pessoas como ‘outros’ para explorar o trabalho. Sem isso, o capitalismo não tem essa dimensão que tem hoje. É importante demonstrar que, quando a gente fala que o racismo está relacionada a privilégios, esses privilégios estão completamente vinculados ao acesso a recursos e a poderes”, diz.

Karine de Souza Silva é professora de Direito Internacional e Relações Internacionais | Foto: Arquivo Pessoal

A professora destaca que a diferença de tratamento dada a refugiados de diferentes etnias não é um fenômeno recente. “Se você for observar, fazendo uma análise mais histórica, quando os europeus estiveram em guerra, na 1ª e 2ª guerras mundiais, e vêm para o Brasil. O Brasil vai oferecer várias vantagens e vários privilégios para essa população. Se for observar a legislação brasileira a partir do início da República, os europeus egressos da guerra recebem muitos privilégios”, diz.

Karine diz que, também internacionalmente, esses privilégios foram sendo materializados ao longo da história. Ela destaca, por exemplo, que o Estatuto dos Refugiados, formulado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1951, surge justamente para dar conta da situação de refugiados na Europa após a Segunda Guerra Mundial.

“Então, institucionalmente há toda uma proteção. Depois, quando outras populações passaram por situações parecidas, se vê que o tratamento não é o mesmo. A gente está vendo agora, no caso dos ucranianos, um tratamento muito parecido com os europeus que tiveram que sair da Europa para outros lugares do mundo, com possibilidades de emprego, facilitação de documentação e tudo isso. O próprio Brasil já publicou um decreto colocando a possibilidade de visto humanitário para ucranianos, mas esse tratamento não é o mesmo dado aos africanos. Mesmo com a nova lei de imigração, a gente vê que há uma quantidade gigante de pessoas do que a gente chama de sul global e muitas delas ficam sem documentação porque as facilidades não são as mesmas com relação às pessoas de outras nacionalidades. Eu faço estudos sobre migrações e a gente tem visto como determinadas nacionalistas não só têm dificuldades de regularização migratória, mas também de acesso a direitos.”

Ela destaca que, quando da guerra da Síria, que gerou uma grande onda de refugiados para a Europa, alguns países adotaram uma postura de acolher refugiados, enquanto outros fecharam as portas e mesmo tornaram as políticas anti-refugiados como parte vital da política nacional, como é o caso da Polônia, país que hoje é o principal destino dos ucranianos que fogem da guerra.

“Na guerra da Síria, a Alemanha abriu as portas para uma quantidade relevante, um milhão de pessoas, mas não foi o que aconteceu no restante dos países. Eu estava morando na Bélgica em 2015, quando ocorreu o pico da chamada crise dos refugiados, e a gente via discursos xenófobos e racistas”, diz. “Essas catástrofes que muitas vezes são geradas pelos países do norte, mas a receptividade não é a mesma”.

Ao longo dos últimos dias, vem sendo repetido na imprensa global e por líderes europeus e dos EUA o discurso de que um dos elementos em jogo na guerra é a ameaça ao modelo de democracia europeia, um discurso que coloca a Ucrânia como representante dessa democracia europeia e a Rússia como inimiga desse modelo. Contudo, a próprio aceitação da Ucrânia como uma democracia europeia é um fenômeno recente. Independente apenas de 1991, com o colapso da União Soviética, a Ucrânia se viu ao longo das últimas décadas em uma espécie de pêndulo entre momentos de aproximação e afastamento com a Rússia e com a União Europeia. Em 2014, um dos elementos vitais para a revolução no país foi justamente o ingresso na União Europeia, o que não aconteceu nos anos seguintes, mesmo com um governo pró-europeu.

Karine concorda com a visão de que a valorização do caráter ocidental da Ucrânia, neste momento, faz parte de um discurso europeu e norte-americano de que os amigos são ocidentais e os inimigos orientais. “Está sendo instrumentalizado, sim, até porque essas categorias de oriente e ocidente foram fabricadas a partir de uma geopolítica, que está relacionada a uma economia”, diz.

Ela destaca, contudo, que mesmo entre as nações de maioria branca sempre houve uma hierarquização, haja vista o tom pejorativo do termo “polaco”, usado não apenas para cidadãos da Polônia, como de outros países do leste europeu. Essa hierarquização que também aparece na fala do jornalista Charlie D’Agata ao dizer que a Ucrânia era relativamente civilizada e europeia.

“A gente sabe que nesse panorama dos brancos, o alemão seria o branco ‘puríssimo’, o italiano está abaixo do alemão e o ‘polaco’ vem lá embaixo. Isso tudo tem a ver com a geopolítica da guerra, mas tem a ver com diferenças entre os europeus. Mas, o que a gente nota, hoje, é que, quando é necessário se opor ao outro, a identificação aparece ainda. Essa dicotomia é instrumentalizado por uma política, mas o [Edward] Said [autor do livro Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente] vai mostrar como essas questões raciais são completamente relacionadas a essa fabricação de diferenças. Quando a gente trata de racismo, é importante entender que o racismo é discursivo, é um discurso de poder. Porque entre você e o inimigo, não existe nada comprovado biologicamente que mostre que você é superior a mim, então é discurso de poder. Assim como o machismo também é discurso de poder. E o cenário internacional se faz a partir dos discursos. Por isso que é importante voltar à colonização para entender que quando um povo quer dominar o outro, e isso não é só com os europeus, ele vai performar esse outro, vai justificar essa dominação, essa invasão. ‘Esse outro é inferior, esse outro não defende os direitos humanos e eu preciso levar o ideal de civilização, preciso levar o ideal de democracia’. Então, essas narrativas são construídas e instrumentalizadas para servir a esse capitalismo, esses interesses dos países hegemônicos em relação a petróleo, etc., que estão nesses lugares onde as pessoas foram colonizadas. Mas, internamente essas disputas existem. Na Europa, sempre existiram disputas entre povos e etnias, depois que vai haver uma mudança relacionada à nacionalidade. Tanto é que, quando alguém fala ‘polaco’, está relacionando a uma nacionalidade (polonesa), não a uma etnia. Então, a Europa começa a usar outra categoria para determinar quem está em determinado lugar”, afirma.

A professora frisa que essa hierarquização entre o ocidental e o oriental também é vista com relação a países aliados, como a Turquia, que é o país que há mais tempo se coloca como candidato para ingressar na União Europeia sem ser aceito. “Por mais que tenha tentado se ocidentalizar e se aproximar da Europa, a Turquia nunca vai ser um igual. Inclusive, todos os documentos que estão relacionados ao ingresso à UE dizem que a Turquia não entra porque não cumpre determinados requisitos. Mas nós já fizemos um estudo em que mostramos que outros estados apresentaram requisitos exatamente como a Turquia e ingressaram na UE”, diz.

Karine afirma que, em suas aulas, sempre defendeu que o Direito Internacional e as Relações Internacionais são atravessadas por questões raciais. “Para mim, agora está sendo comprovado”, diz.


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