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29 de novembro de 2023
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18:02

Rede de Mulheres Filósofas lança Protocolo de Enfrentamento de Violência de Gênero

Rede Filósofas/Reprodução
Rede Filósofas/Reprodução

A Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, articulação criada há quatro anos, acaba de lançar um Protocolo de Enfrentamento de Violência de Gênero. Elaborado por um coletivo de mulheres filósofas, o Protocolo pretende enfrentar o problema da violência de gênero, “um dos fatores relacionados à persistente desigualdade de gênero nos cursos e departamentos de filosofia do país”.

A iniciativa quer lançar luz e funcionar como mais um instrumento para combater, no ambiente acadêmico, “práticas de vilipêndio intelectual, desrespeito profissional, deslegitimação de discurso, agressão psicológica e de cunho sexual, motivadas por discriminação de gênero”.  “A desigualdade de gênero na filosofia brasileira é injustificável. Este protocolo visa torná-la um fato do passado”, aponta ainda o Protocolo, que deverá ser distribuído por todos os departamentos de Filosofia do país. Segue abaixo a íntegra do documento:

Protocolo de Enfrentamento de Violência de Gênero

A violência de gênero é um dos fatores relacionados à persistente desigualdade de gênero nos cursos e departamentos de filosofia do país. Em seu compromisso de lutar contra o preconceito acadêmico, a Rede Brasileira de Mulheres Filósofas apresenta à comunidade filosófica brasileira este protocolo de enfrentamento da violência de gênero.

Violência de gênero designa uma ou várias condutas que incorrem em injustiça no tratamento de pessoas em função do gênero. Esta injustiça não se define apenas no âmbito do direito positivo em vigor no país, mas também na dimensão moral e afetiva das relações profissionais dentro das instituições, entre agentes adultos e responsáveis. Trata-se, no ambiente acadêmico, de práticas de vilipêndio intelectual, desrespeito profissional, deslegitimação de discurso, agressão psicológica e de cunho sexual, motivadas por discriminação de gênero.

 Dada essa definição, os fins deste protocolo se tornam claros. Trata-se de recomendar práticas consistentes com um compromisso de correção de rumos nos cursos, departamentos e ambientes filosóficos no Brasil, para mitigar, dissuadir e interromper a reprodução da violência de gênero na comunidade de praticantes da filosofia acadêmica nacional. Essas recomendações não visam a imputar, nem contêm intenção repressora ou punitiva; visam a, antes, comunicar o reconhecimento, pela comunidade, da assimetria moral (e racional) entre boas práticas e más práticas, nos ambientes filosóficos, em relação à violência de gênero. A assimetria entre tais práticas informa o que é recomendável, em contraposição ao que não o é. 

 “Boas práticas” designa, aqui, um conjunto de condutas eticamente recomendáveis no exercício profissional do ensino e pesquisa em filosofia, em quaisquer dimensões institucionais. Por “ambientes filosóficos” queremos dizer: salas de aula, congressos, workshops, seminários, cursos, debates, orientação e supervisão, reuniões, atividades administrativas, relações entre pares, emissão de pareceres, condutas nos processos de avaliação, de ensino e atividades de extensão etc.

 Cultivar e recomendar boas práticas não é incorrer em uma recomendação moral apartada do necessário cultivo da excelência e do profissionalismo acadêmico. De fato, o que os estudos e os números das pesquisas não param de atestar é que a excelência profissional anda junto, e jamais apartada, da excelência acadêmica e institucional. Boas práticas são fator de excelência na pesquisa, e não um suplemento ou uma ociosidade. A violência de gênero, em contraposição, prejudica o desenvolvimento, o florescimento das capacidades, a independência e a inovação nos ambientes filosóficos brasileiros. Ter em mente, sempre, que as estudantes e colegas mulheres enfrentam, na sociedade brasileira, uma série de dificuldades e de violências que precedem e ultrapassam a sua vivência nos cursos de filosofia, e levar isso em conta na preparação e emissão dos próprios juízos, não é um preceito penal nem uma imputação antecipada, mas um imperativo educacional que, esperamos, seja considerado filosófico em acepção estrita, a fim de reformarmos o ambiente de trabalho e formação da filosofia brasileira. 

 Considera-se boa prática aquela consistente com: 

 1 – Tratamento igualitário de estudantes e colegas, independentemente de gênero, sem considerações verbalizadas e gestuais sobre os seus corpos, aparência física e comportamento. Considerar esse tratamento não como um fator repressivo, mas consistente com o imperativo da igualdade em um contexto social, extra filosófico, de desigualdade e violência de gênero, como é o brasileiro. 

 2 – Conceder igual atenção a estudantes e a colegas sem discriminação de gênero. Buscar, nas relações de ensino, orientação, supervisão e correlatos, cultivar a equidade no compromisso pedagógico com a transmissão do conhecimento e do cultivo da atividade filosófica. A título de exemplo, mas não se resumindo apenas a isso, é importante incentivar as estudantes e os estudantes de forma igualitária a participar e falar em sala, e ter atenção especial para gerir possíveis interrupções que as estudantes possam sofrer em suas falas, garantindo-lhes a palavra. É vital  se esforçar ativamente para garantir um ambiente confortável, respeitoso e livre de constrangimentos nas atividades acadêmicas de ensino e orientação, sem que haja menção à aparência de estudantes, sem desdenhar de suas ideias e sem comunicação agressiva. Igualmente, é preciso atentar para o estímulo e apoio a pessoas que possam estar com dificuldades de se expressar e participar do debate devido a questões de gênero

 3 – Buscar parceria, orientação e atividades de supervisão que contemplem a correção de curso nos ambientes filosóficos, a fim de mitigar a desigualdade de gênero. Engajar-se na correção da desigualdade como tarefa profissional, seja na diversidade de gênero entre as pessoas orientadas, entre as pessoas convidadas para coletâneas, para palestras, seminários e nas demais atividades do que consideramos como ambiente filosófico.

 4 – Dedicar-se à formação das estudantes de maneira igual em relação à formação dos estudantes, participando e incentivando a participação de eventos organizados por elas. Outrossim, ter atenção para desafiá-las academicamente na mesma medida em que normalmente se desafia os estudantes, nem menos ou mais, incentivando o desenvolvimento dos seus argumentos, analisando-os e discutindo melhorias em igual medida, garantindo assim que elas desfrutem de um treinamento argumentativo e filosófico equânime aos de seus pares. 

 5 – Respeitar, escutar e encaminhar as queixas e denúncias de violência de gênero, sempre que elas ocorrerem, vindas de onde vierem, nos ambientes filosóficos. Ter em mente que nem todas as queixas e nem toda identificação de uma conduta violenta caem sob uma tipificação penal e, sobretudo, que sua realidade não depende dessa tipificação. Trata-se de cultivar um ambiente de boas práticas no encaminhamento profissional e institucional, mesmo que as denúncias venham a se comprovar infundadas depois de tal encaminhamento. 

 6 – Comprometer-se ativamente com a preservação da responsabilidade moral e profissional, nos ambientes filosóficos no que concerne à interrupção, direta ou indireta, das práticas de violência de gênero, incluindo aqui falas agressivas, desdenhosas e com conotação sexual. Evitar que atividades um a um, como orientação e resposta a dúvidas, ocorram em ambientes com portas fechadas.

 7 – Assegurar a diversidade e o respeito à diversidade de gênero em todas e quaisquer atividades e iniciativas acadêmicas. 

 8 – Informar às estudantes e às demais profissionais dos ambientes filosóficos sobre as iniciativas voltadas à correção de rumos, à reforma no ambiente acadêmico, bem como aos instrumentos de enfrentamento da violência de gênero que estejam disponíveis nas unidades de ensino e pesquisa. Essa informação pode incluir a publicação deste protocolo nas páginas institucionais de Associações Profissionais, Escolas, Instituições de Ensino, Programas de Pós-Graduação e Departamentos de Filosofia no país. 

 9 – Separar as atividades acadêmicas e profissionais, nos ambientes filosóficos, dos envolvimentos afetivos e sexuais, sobretudo onde há uma relação previamente instituída de assimetria funcional e profissional, em vigor antes e durante o envolvimento em questão. 

 10 – Buscar incorporar nas súmulas e planos de ensino, em projetos de pesquisa e em atividades de extensão, filósofas e figuras não-canônicas e que abordem os temas em questão a partir de perspectivas que não sejam as hegemônicas, buscando caracterizar a prática filosófica como propriamente dialógica e incompatível com o silenciamento. 

 11 – Incorporar leitura crítica dos autores canônicos e trabalhar suas falhas no que diz      respeito a posicionamentos que hoje poderiam ser considerados misóginos ou racistas, encarando essas falhas com o rigor do pensamento filosófico, da mesma forma como são apontadas falhas metodológicas ou teóricas. Relembrar que nem todo apontamento crítico ou contrário recai sob a justificativa de anacronismo. 

Consideram-se más práticas aquelas que recaem sob a negação, no nível das ações e das práticas, do que acima foi enumerado. O compromisso com o fim da violência de gênero é e precisa ser cotidiano, prático, ininterrupto, até que os números sobre a desigualdade denotem uma mudança no quadro. Para assegurar-se de que este é o caminho que está sendo tomado pela instituição, sugerimos uma lista de questões a serem respondidas pelos indivíduos detentores de posições de poder e liderança no meio acadêmico acerca das interações de gênero sob sua supervisão.

São questões a serem respondidas por indivíduos em posições de poder:

  1. Todas as pessoas estão sendo tratadas por seu nome social, ainda que distinto daquele constante do registro civil, bem como por seus pronomes de escolha?

  2. Alguma das pessoas presentes em aulas, provas, eventos etc. é gestante ou, sendo mãe, é lactante ou tem filhos pequenos? O tratamento que recebem é compatível com a execução das tarefas envolvidas nessas circunstâncias?

  3. Alguma das pessoas tem algum tipo de vulnerabilidade física, econômica ou social que se intersecciona com o gênero, ou viveu alguma experiência vinculada ao gênero que possa tornar uma aula, um debate ou uma conversa desconfortável para ela (fazendo-a, por exemplo, revisitar situações traumáticas)?

  4. Perguntas, argumentos e falas estão reproduzindo estereótipos de gênero?

  5. Perguntas, argumentos e falas estão desqualificando a posição da aluna, da professora ou da pesquisadora com base no seu gênero?

  6. O ambiente proporciona algum impedimento para que a aluna, professora ou pesquisadora se manifeste sem constrangimentos e em situação de conforto? 

  7. Qual o tom das “piadas” e “brincadeiras” que acontecem no ambiente? Elas versam sobre questões de gênero ou étnico-raciais?

  8. Há mulheres participando ativamente dos espaços de tomada de decisão?

  9. A pessoa do gênero feminino que fala está sofrendo algum tipo de interrupção ou pressão que a impeça de desenvolver seu raciocínio, prática conhecida como “manterrupting”?

  10. Estão sendo feitas explicações desnecessárias como se as mulheres presentes não fossem capazes de compreender, prática conhecida como “mansplaining”?

  11. Algum homem está fazendo apropriações de ideias de mulheres sem lhes dar o devido crédito, prática conhecida como “bropriating”?

  12. A moral, o comportamento e a imagem de mulheres está sendo aberta ou veladamente colocada em julgamento por colegas homens, prática conhecida como “slut shaming”?

  13. Alguém está operando a desqualificação da sanidade mental de uma mulher, por exemplo descrevendo-a como “histérica”, “desequilibrada” ou “paranoica”, ou manipulando os fatos para colocar em dúvida as suas queixas, prática conhecida como “gaslighting”?

  14. As experiências pessoais podem estar influenciando a apreciação da produção intelectual de uma mulher?

  15. A interpretação de conceitos está sendo restrita a percepções subjetivas do mundo, fazendo com que fenômenos que não são vivenciados por certos agentes, como por exemplo a violência doméstica, sejam considerados irrelevantes? 

  16. Posso estar ignorando como as dinâmicas de desigualdades estruturais, como a etária ou geracional; por deficiência; étnico-racial; por diversidade sexual etc., interferem na vida de uma pessoa?

  17. Posso estar ignorando a dupla jornada feminina, ou seja, como as horas do trabalho remunerado, formal ou informal, somam-se às horas de trabalho não remunerado doméstico, de cuidado ou reprodutivo?

  18. Em processos seletivos, os critérios adotados estão a inviabilizar a aprovação de um determinado perfil de pessoa? Há discussões em andamento sobre como vieses implícitos podem levar ao favorecimento de pessoas de determinado perfil, por exemplo, a pressuposição de que falar alto ou de maneira assertiva mostra domínio do assunto?

  19. Nos processos seletivos, qual é o gênero preponderante das pessoas aprovadas? Mesmo que, no geral, o programa ou curso tenha participação de mulheres, há áreas da filosofia ou grupos em que elas estejam ausentes? Se sim, por qual motivo essa ausência está acontecendo? O departamento ou programa tem alguma diretriz e/ou cuidado com políticas de mitigação de assimetrias de gênero no quadro discente? E no quadro docente? 

  20. Os critérios de seleção adotados habitualmente levam a resultados discriminatórios ainda que não tenha havido intenção de discriminar?

  21. Alguma aluna, professora ou pesquisadora está sendo criticada de forma injusta, hostil ou exagerada?

  22. Alguma aluna, professora ou pesquisadora está sendo colocada sob supervisão excessiva ou injustificada?

  23. Alguma aluna, professora ou pesquisadora está sendo constantemente submetida à execução de tarefas imprevistas e/ou urgentes?

  24. Alguma aluna, professora ou pesquisadora está sendo ignorada e/ou isolada, por exemplo, deixando de receber informações importantes, de maneira deliberada?

  25. A alguma aluna, professora ou pesquisadora foram atribuídos apelidos pejorativos ou tarefas humilhantes?

  26. Alguma aluna, professora ou pesquisadora teve o trabalho desmerecido e desqualificado diante de colegas?

  27. Alguma aluna, professora ou pesquisadora teve desconsiderados os seus problemas de saúde e/ou recomendações médicas?

  28. Há limitação do número de idas ao banheiro e monitoramento do tempo de permanência no local?

  29. Há alguém que pareça estar se aproveitando de sua posição de poder para adotar comportamentos ou gestos que demonstrem desprezo em relação a mulheres, por exemplo suspiros, olhares, risos?

  30. Há alguém que pareça estar se aproveitando de sua posição de poder para debochar de, ironizar, zombar, gritar com, ofender, agredir verbalmente ou ameaçar mulheres?

  31. Há alguém que pareça estar se aproveitando de sua posição de poder para constranger mulheres sexualmente?

  32. O silenciamento de vozes dentro da instituição está levando a situações em que violências reiteradas fazem com que as vítimas se sintam impotentes para reagir ou procurar algum tipo de ajuda?

  33. A instituição consegue evitar a exposição excessiva da vítima de assédio e de violência, bem como a sua revitimização?

  34. Já foram eficazmente implementados mecanismos reparadores para a prevenção do assédio sexual e moral, a responsabilização efetiva, acolhimento e restabelecimento de uma vida livre de violência para as vítimas?

  35. Está sendo efetivamente disponibilizado um atendimento multidisciplinar às vítimas diretas e indiretas da violência de gênero ocorrida dentro e fora da instituição?

  36. Já foram instituídas Ouvidorias para atuação nessa frente?

 A desigualdade de gênero na filosofia brasileira é injustificável. Este protocolo visa torná-la um fato do passado.


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