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12 de outubro de 2023
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10:28

Agência Pública: O menor quilombo do Brasil não tem apenas um habitante, como diz Censo

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Sul 21
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Dona Nini, 86 anos, liderança do Quilombo do Buri. Foto: Tacun Lecy/Agência Pública
Dona Nini, 86 anos, liderança do Quilombo do Buri. Foto: Tacun Lecy/Agência Pública

Por Texto: Juliana Dias | Edição: Mariama Correia | Fotógrafo: Tacun Lecy
Agência Pública

“Não dizem que aqui não tem quilombo, pois tome quilombo”, diz Zelzira Ferreira Lima, conhecida como Dona Nini, 86 anos, liderança do Quilombo do Buri, apontando para casas de taipa, de tijolo e ruínas de uma igreja. Em uma manhã de sábado, na segunda semana de setembro, Dona Nini recebeu a reportagem da Agência Pública no território apontado como o menor quilombo do país, com apenas um único habitante, segundo o Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em julho deste ano. Mas, somente a família dela tem nove pessoas.

O Quilombo do Buri está no estado que tem a maior população quilombola do país, a Bahia. Está localizado às margens do Rio Paraguaçu, no município de Maragogipe, na região do Recôncavo baiano, em uma área de 377 hectares. Diferentemente do que diz o Censo, ao menos 40 famílias habitam o território. “O Censo não veio aqui na minha casa e nem na casa de quem mora na comunidade. A pessoa que veio pegou um bêbado na entrada do quilombo pra responder que só tinha uma pessoa morando aqui”, afirma Dona Nini.

O dado divulgado pelo IBGE é visto pelos moradores como mais um obstáculo para o reconhecimento dos seus direitos. Certificada pela Fundação Cultural Palmares como comunidade remanescente de quilombo desde 2009, o Buri, nome de origem tupi para palma, vive uma disputa pela titulação do território, que foi barrada pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), da Presidência da República, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

“Estão desfazendo da gente ao dizer que só uma pessoa vive aqui”, diz Dona Nini, que criou os nove filhos nas terras do Buri, “se metendo na maré pra pescar ou se metendo no mato pra tirar piaçaba”, as duas atividades são principais formas de sustento da comunidade. O Quilombo de Buri não é atendido por serviços básicos, como água encanada, luz elétrica, saneamento básico, atenção à saúde. Também não tem escola.

“Esse dado do IBGE prejudica a caminhada da comunidade”, comenta Antônia Cacilda Souza, marisqueira aposentada de 63 anos, filha de Dona Nini, que mora ao lado da casa da mãe. Após oito anos da certificação da Fundação Palmares, o Quilombo do Buri teve o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no Diário Oficial da União, em 7 de novembro de 2017. A publicação dava um passo à frente para a tão sonhada regularização fundiária.

 

Antônia Cacilda Souza, marisqueira aposentada de 63 anos, filha de Dona Nini. Foto: Tacun Lecy/Agência Pública

Segundo nota enviada pela assessoria de comunicação da Superintendência do Incra na Bahia, o processo foi contestado em 2020 pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), da Presidência da República, que se manifestou contrário à regularização do território, sob a alegação de que a área é de interesse estratégico da Marinha.

Ainda de acordo com a nota, entre os anos de 2018 e 2022, o Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra na Bahia enfrentou restrições orçamentárias e financeiras, em função da gestão da política nacional relacionada ao tema. O Comando do 2º Distrito Naval – Capitania dos Portos da Bahia não respondeu aos questionamentos sobre o interesse da Marinha na região.

O entorno do Quilombo do Buri é uma região cobiçada por empreendimentos da indústria naval, devido à profundidade da água. Em 2012, foi inaugurado o Estaleiro Enseada do Paraguaçu na região, com o objetivo de ser um complexo naval, portuário e industrial, e com a promessa de gerar emprego e renda. Em menos de dois anos, o empreendimento teve as obras e a operação paralisadas pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal e está parado há nove anos.

“Sempre quiseram colocar outros empreendimentos desse porte por aqui, estava previsto para ter quatro estaleiros navais. Tinha a promessa de mudar a vida das pessoas. Mas, no final, não teve desenvolvimento nenhum, ao contrário, gerou degradação. Virou um porto sem licenciamento, com muita poluição e ainda atraiu o tráfico de drogas para a região”, conta Maria José Pacheco, secretária executiva do Regional do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP). A organização presta assistência e apoio à comunidade quilombola.

 

Empreendimentos da indústria naval no entorno do Quilombo do Buri. Foto: Tacun Lecy/Agência Pública
Empreendimentos da indústria naval no entorno do Quilombo do Buri. Foto: Tacun Lecy/Agência Pública

Esta não é a primeira vez que Marinha entra em uma disputa territorial com comunidades remanescentes de quilombo, na Bahia. O caso mais emblemático é do Quilombo Rio dos Macacos, localizado nos limites entre os municípios de Simões Filho e Salvador. O conflito fundiário é marcado por ameaças de despejo, agressões e coerção por parte dos militares, e iniciou na década de 1960 após a construção da Base Naval de Aratu.

Desde então, o local, que reúne cerca de 150 famílias em uma área de 104 hectares, é cenário do conflito que envolve pedidos de reintegração de posse, além da denúncia de violação de direitos humanos como falta de abastecimento de água, proibição de cultivo, falta de acesso direto à comunidade, o que impacta na garantia do direito de ir e vir, entre outros. Em julho de 2020, o Incra assinou a titulação das terras do Quilombo Rio dos Macacos, no entanto, a comunidade ainda hoje denuncia a violação de direitos, como a possibilidade da Marinha construir um muro que pode bloquear completamente o acesso às águas do Rio dos Macacos.

De acordo com a comunidade do Quilombo do Buri, a ausência da titularização do território representa uma série de dificuldades e de insegurança. A vulnerabilidade da comunidade aumenta com o interesse da Marinha no terreno e o resultado do Censo 2022 do IBGE, que foi visto pelos moradores como uma forma de anular a representatividade do território.

Moradores do quilombo ouvidos pela Pública disseram que responderam ao questionário do Censo quando estavam de passagem pelo distrito de São Roque do Paraguaçu, em Maragogipe, e que informaram que moravam no Quilombo do Buri. “Se pegar o espelho do que respondemos na prefeitura vai ver lá nossos nomes”, afirma Antônia Cacilda. Segundo a socióloga Nádia Barreto, os dados do Censo são fundamentais para a elaboração de políticas públicas, sobretudo para populações vulnerabilizadas, como as comunidades quilombolas.

 

A ausência da titularização do território representa uma série de dificuldades e de insegurança. Foto: Tacun Lecy/Agência Pública

“É necessário que a comunidade entre em contato com o IBGE ou com a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) para buscar esclarecer a situação e corrigir, se for o caso. O subdimensionamento da população pode gerar algum prejuízo para qualquer comunidade, até pelo simples fato de não corresponder à realidade factual”, explica.

As famílias do Buri contaram que já perderam, por exemplo, a oportunidade de serem contempladas com um fogão por conta da ausência de energia elétrica no território. A falta de infraestrutura ainda tem causado o êxodo de habitantes para a comunidade de São Roque do Paraguaçu, distrito de Maragogipe, próximo do quilombo. “Muita gente hoje não quer continuar vivendo na comunidade por causa do medo da violência. Ficam alguns dias, depois voltam para São Roque e ficam nesse vai e vem. Essa indecisão do Incra piora ainda mais nossa permanência nas nossas casas”, diz Cacilda Souza.

Não muito distante da casa de Dona Nini está a moradia de Antônio Jorge Tourinho, conhecido como “Lampião”, 70 anos, e sua esposa Ana Mariah de Souza Tourinho, conhecida como “Aninha”, 63 anos. O casal quilombola também relatou que os recenseadores do IBGE não passaram pela sua casa. “A gente soube depois que foi um rapaz bêbado que respondeu. Não acho que foi por maldade, mas o IBGE precisa rever essa situação, porque se antes já estava difícil pra gente conseguir energia, agora então”, afirma Lampião.

 

Antônio Jorge Tourinho, conhecido como “Lampião”, 70 anos, e Dona Nini. Foto: Tacun Lecy/Agência Pública

Para Aninha, o dado do IBGE pode fortalecer as pessoas que estão interessadas em possuir as terras do quilombo. “Hoje em dia a gente tem medo de ficar por aqui por muito tempo. E com essa informação, a gente fica sem proteção nenhuma”, diz.

A saída de quilombolas para outras comunidades também se tornou mais corriqueira por causa do aumento da violência na região. Em outubro de 2019, quatro homens foram mortos a tiros na fronteira entre a entrada do quilombo e o distrito de São Roque. O caso não foi relacionado com disputas de território, mas os moradores ficaram com medo.

“Depois disso, a nossa realidade mudou. Teve gente que saiu do quilombo e não voltou mais”, lamenta Bartolomeu Ferreira Siza “Memeu”, 53 anos, filho de Dona Nini. Em um ambiente onde antes os moradores dormiam de porta aberta, o episódio despertou medo e insegurança. “É o retrato do que pode acontecer com qualquer um da gente”, considera Memeu.

Ao falar da violência, a comunidade do Quilombo do Buri não deixou de fazer referência ao aumento de casos envolvendo assassinatos de lideranças quilombolas na Bahia. Em agosto, Maria Bernadete Pacífico, mais conhecida como Mãe Bernadete ialorixá, ativista e líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, foi assassinada com 12 tiros dentro da sua comunidade, no município de Simões Filho, na Bahia.

“A morte de Mãe Bernadete chegou aqui pra gente como se fosse um tiro. Não foi apenas a morte de uma pessoa, mas foi como se estivesse matando o movimento. Tínhamos ela como a líder principal. Ela tinha altura na voz. A gente acredita que quem matou quer que o movimento acabe”, comenta o quilombola Antônio Bonfim Ferreira Borges, que se refere à Mãe Bernadete como amiga de luta. “A gente anoiteceu com ela e amanheceu sem ela. Depois disso, eu emagreci muito”, lamenta.

A reportagem entrou em contato com a Prefeitura Municipal de Maragogipe para saber o posicionamento do órgão frente os dados divulgados pelo IBGE, mas não obteve resposta até a publicação. O IBGE e a GSI também não responderam nossos questionamentos.


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