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1 de junho de 2023
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08:00

‘Ele disse que eu teria uma vida de sheik’, diz jovem resgatado de tráfico internacional

Por
Duda Romagna
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Jogador de futebol foi resgatado de Dubai após meses de trabalho análogo à escravidão. Foto: Luiza Castro/Sul21
Jogador de futebol foi resgatado de Dubai após meses de trabalho análogo à escravidão. Foto: Luiza Castro/Sul21

A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (ALRS), em parceria com o Itamaraty, finalizou, na tarde da última terça-feira (30), o processo de resgate de um gaúcho de 20 anos que estava trabalhando em Dubai em condições análogas à escravidão. O jovem foi aliciado para jogar futebol no time Al Rams Club, mas, após ser dispensado, trabalhou meses na casa e na fábrica de um brasileiro, sem salário.

Moisés Santana havia conhecido quem lhe ofereceu a oportunidade de jogar no time árabe enquanto atuava por um clube de Brasília. Ele retornou para Porto Alegre e um tempo depois foi para o time Água Santa, de Diadema (SP). Lá reencontrou o conhecido. “Ele entrou em contato comigo, me falou que tinha uma oferta para ir para Dubai, que a chance era única, que eu teria casa, carro, uma vida literalmente de sheik. Que se eu desse certo, eu ia ajudar meus familiares e ajudar ele com um carro, como sinônimo de vitória”, conta Moisés.

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

O jovem conta que tentou embarcar por duas vezes antes de pegar o voo para os Emirados Árabes Unidos, sempre com a assessoria de uma empresa, que o ajudaria a jogar no time. Somente na terceira vez, quando teve que mentir dizendo que voltaria para o Brasil em uma semana, conseguiu viajar.

“Eu cheguei para fazer o check-in e eu falei que ia ficar um ano em Dubai, que foi o que me disseram, e eles me barraram, porque pra ficar um ano tem que ter visto. Aí compraram outra passagem, eu fui fazer o check-in na mesma companhia e me induziram a falar que ia ficar um mês, com visto de turismo. Chegando lá disseram que tinha que ter passagem de ida e de volta e eu não tinha passagem de volta. Na terceira tentativa, mudamos de companhia e a passagem que compraram de volta era para uma semana. Mas não era isso”, relata.

De fato, quando chegou no país foi alocado em um hotel do Al Rams. Entretanto, Moisés conta que percebeu um grande fluxo de jovens jogadores entrando e saindo do hotel. “Eles chegavam lá e ficavam dois ou três dias e iam embora. Então fui notando que era uma avaliação, não tinha contrato assinado, não tinha casa, não tinha carro, não tinha dinheiro, não tinha nada. Ele me falou que era tudo do bom e do melhor e isso não existia.”

Moisés passou um mês efetivamente jogando futebol no clube, em treinos e partidas amistosas, mas foi dispensado. Um suposto empresário brasileiro, vinculado à empresa que levou Moisés ao país, o chamou então para morar e trabalhar na sua casa, além de ser funcionário na sua fábrica de cosméticos. O salário prometido seria de 1500 Dirham, por volta de R$ 3 mil na época. “E eu pensei ‘pô, posso comprar minha passagem e posso voltar’, ele me ofereceu isso e eu acreditei nele”, relata Moisés.

O jogador conta que trabalhava das 7h da manhã até 22h ou 23h, sem receber salário. O jovem relata ainda que cobrava o prometido e que sofria represálias do patrão. “Eu perguntava ‘e aí, e a minha passagem de volta? Você prometeu isso, você prometeu aquilo’, sempre, todos os dias. E ele falando que ‘sim, eu vou comprar’, e no outro dia ‘não, não vou comprar, eu não vou tirar dinheiro da minha fábrica para pagar essa passagem, quem vai pagar tua passagem vão ser os caras que te trouxeram’, mas ele que trouxe”, explica.

Desde que chegou aos Emirados Árabes, em julho de 2022, o jovem sabia que algo estava errado, mas enquanto trabalhava para o empresário não tinha acesso a internet e até a comunicação com a família era comprometida. Ele conta que conseguiu emprestado o celular de um colega e contatou um tio, que procurou a Comissão de Direitos Humanos do parlamento gaúcho.

“A expectativa eu tinha todo dia, quando o menino tinha um tempinho que ele ia no banheiro ou alguma coisa assim, eu pegava o celular dele e falava com meu tio ‘e aí, e agora? Eles vão me buscar aqui? A polícia vai vir aqui?’, nessa expectativa enorme”, relata Moisés.

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

Em ofício ao gabinete da Secretária-Geral do Ministério das Relações Exteriores, a CCDH comunicou a situação do jovem, que procurava ajuda, pedindo a urgência do resgate. O comunicado aconteceu em 30 de março. Joel Darcie, auditor fiscal do trabalho, que acompanha o caso, relata que Moisés conseguiu fugir no dia 25 de abril e foi acomodado num albergue em Abu Dhab e, a partir disso, começaram as tratativas para a volta ao Brasil.

Como estava ilegalmente no país, para voltar para casa precisava pagar uma multa migratória de R$ 10 mil, que não podia ser paga pela União, devido a uma portaria sancionada em 2022. A multa foi paga através de um financiamento coletivo do mandato da deputada estadual Laura Sito (PT), presidente da CCDH. Para Laura, “estamos virando apenas mais uma página de um imenso capítulo sobre o tráfico para trabalho escravo, que nunca deixou de existir”.

Ao chegar no Brasil, na terça-feira, Moisés conta que “o sorriso voltou”, mas que tem medo de possíveis represálias. “Eu não sei o que esses caras são capazes de fazer. Eu acredito que coisas boas podem acontecer, mas tem que ser estudado, porque eu vou parar de acreditar nas pessoas, confiar nas pessoas. Porque eu fui de bom coração e olha no que deu, eu fui realmente de bom coração acreditando nessa proposta, nessa ilusão que ele fez para mim.”

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

Segundo a Comissão, o grupo deverá seguir trabalhando junto às instituições responsáveis pelo caso na busca de garantir que o esquema seja investigado com profundidade e, além disso, buscará a alteração da portaria que quase impediu a volta do jovem ao Brasil. De acordo com o auditor fiscal do trabalho, há casos semelhantes já registrados no Camboja e em Myanmar, de pessoas levadas para trabalhar com criptomoedas e e-commerce. “Quando chegaram lá eram utilizados para aplicar golpes pela internet”, relata.

Ele explica que qualquer pessoa que esteja vivenciando uma situação parecida, para denunciar, além do Disque 100, pode usar o Sistema Ipê, do Ministério do Trabalho. A denúncia é feita pela internet. “Para barrar casos semelhantes é necessário um trabalho conjunto do Ministério do Trabalho com a Polícia Federal e muita divulgação desse assunto, porque ele mexe muito com o sonho desses meninos que querem se tornar jogadores de futebol e das meninas também, que querem se tornar modelos”, finaliza.


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