Geral
|
10 de maio de 2022
|
19:54

Episódio de torcedor hospitalizado reacende debate sobre câmeras em uniformes da polícia

Por
Luciano Velleda
[email protected]
Câmeras corporais  estão em testes no RS desde 2021. Foto: Divulgação/BM
Câmeras corporais estão em testes no RS desde 2021. Foto: Divulgação/BM

Em dezembro do ano passado, a Assembleia Legislativa rejeitou projeto de lei que previa a instalação de câmeras em uniformes e viaturas da Brigada Militar e da Polícia Civil no Rio Grande do Sul. Após ser aprovada por unanimidade na Comissão de Segurança Pública e ter apenas dois votos contrários na Comissão de Constituição e Justiça, a proposta foi derrotada no plenário da Casa. Inconformada com o resultado, e convicta da importância do tema, a autora do projeto, deputada Luciana Genro (PSOL), reapresentou a proposta em 2022, com algumas modificações.

Conhecedora de como as coisas funcionam na Assembleia, a deputada diz ser difícil um projeto que foi derrotado ser agora aprovado na mesma legislatura, com os mesmos deputados. Portanto, a intenção em reapresentar o projeto logo no ano seguinte, ela explica, tem a função de deixar o assunto “vivo” e manter o debate. Mesmo com poucas alterações, o Projeto de Lei (PL) 43/2022 começa do zero e passará por todo o trâmite nas comissões parlamentares tal qual seu antecessor. Luciana acredita que a proposta só será analisada na próxima legislatura.

Enquanto o uso de câmeras nos uniformes dos policiais não vira lei no RS, um grave episódio recente trouxe à tona o exemplo prático da importância do equipamento: o caso de Rai Duarte, torcedor do Brasil de Pelotas que foi retirado por policiais do Batalhão de Choque da Brigada Militar de dentro do ônibus que o levaria de volta a Pelotas, em perfeitas condições de saúde, e deixado horas depois em estado grave por uma viatura da polícia militar na emergência do Hospital Cristo Redentor. O que aconteceu com o homem, agente de saúde e servidor público, entre a saída do ônibus e a chegada ao hospital segue sem resposta.

Há relatos de outros torcedores do Brasil de Pelotas de que eles teriam sofrido violência policial, como socos, pontapés, pisoteamento e gás de pimenta. Parte da torcida do time pelotense havia entrado em confronto com torcedores do São José durante partida disputada no Estádio do Zequinha, no bairro Passo D’Areia, na Capital. Após o jogo, esses torcedores estavam sendo conduzidos pelo Batalhão de Choque da BM, quando teriam então acontecido os abusos. No caso de Rai Duarte, o relato é de que ele teria sofrido mais no espancamento. Desde então, o caso está sendo investigado pela BM e pelo Ministério Público Estadual (MPE).

Para a deputada Luciana Genro, a situação vivida pelo torcedor do Brasil de Pelotas é um exemplo prático da necessidade de câmeras nos uniformes dos policiais. “Com certeza esse fato não teria acontecido. Se ele aconteceu como aparentemente aconteceu, que é realmente um caso de violência policial, onde o rapaz foi retirado do ônibus e foi espancado, com certeza não teria acontecido se os brigadianos estivessem fardados com uma câmera, porque eles não iriam espancar um torcedor gratuitamente sendo filmado. E se não aconteceu como a gente suspeita, as coisas já estariam esclarecidas, nós teríamos a filmagem”, analisa a parlamentar.

Sem as imagens para comprovar o que houve, a deputada questiona a falta de uma versão coerente por parte da polícia. “Eles poderiam dizer qualquer coisa pra justificar o fato de que o rapaz está tão machucado, mas eles sequer têm uma versão possível”, reclama. Na última semana, a BM anunciou a verificação das imagens de câmeras que possam mostrar o momento em que o torcedor chegou na emergência do hospital, para tentar obter alguma informação. Inclusive foi colocada a hipótese de que o homem teria entrado “bem” no hospital.

“Essa história de como é que ele chegou no hospital não faz nenhum sentido”, argumenta Luciana. “Qual é a intenção do comandante em querer essas imagens? Porque se o rapaz está em estado gravíssimo, é óbvio que ele chegou lá em estado grave, não imagino que o rapaz apanhou dentro do hospital. Acho que é uma manobra diversionista pra tentar fazer o assunto morrer até que se tenha alguma resposta.”

Luciana demonstra cuidado em não generalizar e acredita que o caso específico do torcedor do Brasil de Pelotas pode ter sido uma conduta “fora da curva”. “Nesse caso, se for confirmado, o que parece ter acontecido é que o rapaz foi retirado do ônibus e foi espancado pelos brigadianos. É uma sinalização de que existem marginais fardados dentro da Brigada. Não são brigadianos de fato, são marginais que usam fardas”

O projeto apresentado pela deputada do PSOL em 2022 contém basicamente três alterações em comparação com aquele rejeitado pela Assembleia em 2021. A primeira modificação estabelece que viaturas provenientes de doação também deverão contar com o dispositivo, salvo se adquiridas por meio de processos licitatórios com editais publicados antes da entrada em vigor da lei. A segunda modificação determina que a captura de dados de áudio deverá ser acionada somente quando houver abordagens. A terceira e última alteração determina que em circunstâncias que exijam o sigilo da identidade do policial civil ou militar, a obrigação ficará dispensada. Tais contribuições são fruto do trabalho da Comissão de Segurança, Serviços Públicos e Modernização do Estado.

A deputada estadual Luciana Genro (PSOL) espera que o novo projeto seja apreciado na Assembleia na próxima legislatura. Foto: Vinicius Reis

Sociólogo e membro-fundador do Fórum Brasileiros de Segurança Pública, Marcos Rolim costuma chamar atenção para a importância das “evidências científicas” em políticas públicas. No caso do uso de câmeras por policiais, ele diz ser preciso haver um projeto piloto e o devido acompanhamento para se constatar se houve, ou não, devido impacto do equipamento na atividade de policiamento.

São várias as experiências já avaliadas de uso de câmeras em policiais mundo afora. E os estudos, ressalta Rolim, não são conclusivos. Segundo ele, a falta de consenso deve-se ao fato de haver projetos muito diferentes. “O que os estudos têm demonstrado é que depende da tecnologia empregada. A depender da forma como essas imagens são guardadas e como elas são acessadas, tudo isso pode impactar muito a essência do projeto. Então, por exemplo, projetos onde câmeras de policiamento são usadas, mas os policiais têm o controle pra ligar ou desligá-la, não funciona. Não funciona por quê? Porque, na prática, o policial não vai ligar a câmera no momento que pode haver a possibilidade de confronto”, diz o sociólogo.

Por outro lado, Rolim pondera que a tecnologia expõe o policial, o que demanda uma guarda responsável das imagens como uma questão fundamental. “Se o policial vai estar no trabalho com a câmera sempre ligada e não tem como desligar a câmera, onde fica o armazenamento dessas imagens? Elas não podem vazar, envolve a privacidade do próprio policial, é direito dele manter a privacidade das informações que não dizem respeito à atividade pública”, ressalta.

Na hipótese do projeto implementado prever o uso contínuo do equipamento, o membro-fundador do Fórum Brasileiros de Segurança Pública destaca que o policial vai ter contato com pessoas sem relação com a atividade de segurança, o que demanda cuidado. Rolim ainda alerta que as pesquisas sobre o tema têm mostrado que as tecnologias de gravação utilizadas devem impedir qualquer possibilidade de edição das imagens. “Isso também é fundamental para a segurança e eficiência do projeto”, afirma.

A Polícia Militar de São Paulo tem feito testes com câmeras nos policiais, com resultados iniciais positivos. Foto: Governo do Estado de São Paulo / Divulgação

Em território nacional, Rolim destaca os projetos piloto em curso em Santa Catarina e em São Paulo. São iniciativas ainda embrionárias que não abrangem toda a polícia, mas sim um determinado grupo de policiais, batalhões ou destacamentos que passaram a usar as câmeras. Os resultados iniciais, diz o sociólogo, têm sido positivos, especialmente na redução dos indicadores de violência, incluindo casos de letalidade policial.

“Algumas dessas experiências já realizadas no Brasil sugerem, não estou dizendo que isso é definitivo, mas sugerem que é positivo na redução dos casos de violência e letalidade policial”, avalia.

Além de proteger o cidadão de eventual má conduta do policial, o uso das câmeras também pode ter a função de proteger os próprios policiais. Isso porque há casos em que os policiais são ameaçados, agredidos ou, às vezes, recebem denúncias que não são verdadeiras. “O policial vai lá, efetua uma prisão, por exemplo, e depois o sujeito vai dizer que foi espancado. Se ele foi espancado, e é comum que muitas vezes sejam espancados no Brasil, infelizmente isso é uma prática corriqueira, mas nem sempre essas denúncias podem ser aceitas como sendo verdadeiras, é preciso que haja uma evidência e, nesse caso, a câmera protege o policial”, explica Rolim.

Para ele, não há o que temer no uso das câmeras. Pelo contrário, acredita que os bons policiais só tem a ganhar, pois estarão mais protegidos. Como curiosidade, estudos internacionais apontam que inclusive a população se comporta melhor quando sabe que o policial está gravando.

“A possibilidade virtuosa de usar esse equipamento é muito ampla e, portanto, vale a pena examinar com carinho as possibilidades de usar aqui no Brasil. Especialmente no caso brasileiro, acho que talvez elas sejam mais impactantes ainda porque a gente tem muitas limitações na área da segurança, um baixíssimo controle efetivo da atividade policial. Então, num quadro assim, talvez esse equipamento seja de fato mais importante até do que em outros países”, acredita.

Com a proximidade das eleições, Rolim demonstra preocupação com o uso do tema das câmeras no debate eleitoral. Em São Paulo, avalia que alguns candidatos ao Governo do Estado já se pronunciam contra o equipamento sem oferecer nenhum argumento com base em evidência científica.

Opiniões como: ‘Sou contra porque não funciona’, ‘Sou contra porque é ruim’, ‘Sou contra porque não quero’, incomodam o sociólogo.

“Me preocupo porque sei que essas falas são uma espécie de ‘antena’, que procura sintonizar a sua posição com alguma postura dentro das corporações. Então é possível que eles estejam traduzindo nessa negativa alguma aspiração que chegou até eles de parte de um seguimento de policiais incomodados com esse controle. E nesse sentido eu acho que isso é muito preocupante”, comenta.

No Rio Grande do Sul, os testes das chamadas “câmeras corporais” começaram em  abril de 2021. A primeira fase de testes se estendeu até novembro de 2021, quando foram testados 14 equipamentos, da marca Motorola, por efetivos das Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas (ROCAM) do 9º Batalhão de Polícia Militar (9ºBPM), na Equipe de Volantes da 1ª Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (1º DPPA) e também do Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil. Em sistema de rodízio ao longo do período, 180 policiais participaram dos testes.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP), tanto as equipes da Brigada Militar quanto da Polícia Civil, que acompanharam ocorrências, cumprimento de mandados, atendimentos a locais de crime, manifestações sociais e barreiras de trânsito utilizando os equipamentos, tiveram avaliação positiva sobre o uso das câmeras. A avaliação geral é de que o registro em vídeo das ações trouxe maior segurança aos policiais e também inibiu o comportamento dos indivíduos abordados, a partir do momento em que percebiam que estavam sendo filmados.

Em setembro do ano passado, a Brigada Militar realizou visitas técnicas em Santa Catarina e São Paulo para conhecer os modelos adotados pelas polícias militares daqueles estados, com o objetivo de obter informações para identificar a proposta mais adequada para a estratégia de policiamento ostensivo e o trabalho de rotina das forças de segurança do RS.

A segunda fase de testes começou em novembro de 2021 e se estende até o momento, com o uso de 18 equipamentos das marcas Motorola e Axon3. A SSP explica que nessa segunda etapa, o rodízio ao longo do período teve a participação de 250 policiais do 9º BPM e do 1º Batalhão de Polícia de Choque (1º BPChq) da Capital, do 8º BPM de Osório e do 2º Batalhão de Policiamento de Áreas Turísticas (2º BPAT) de Capão da Canoa.

Os equipamentos também foram utilizados em ações de reforço do policiamento nos quatro clássicos Grenal realizados durante o Campeonato Gaúcho, além da partida da final entre Grêmio e Ypiranga, em Porto Alegre.

Em abril, a BM da Capital recebeu mais oito câmeras da marca L8 (fornecedora do modelo utilizado pela Polícia Militar do Rio Janeiro), que foram utilizadas dentro do planejamento integrado de policiamento para o South Summit, feira de inovação que ocorreu em Porto Alegre no começo de maio.

O governo estadual informa que, a partir dos testes realizados e do trabalho na feira internacional de inovação, um grupo de trabalho irá avaliar os resultados para elaborar um parecer final com proposta do melhor modelo tecnológico e de contratação para se adequar às características do policiamento gaúcho. Na sequência, a expectativa do governo é elaborar um termo de referência para a abertura de licitação de contratação de 300 câmeras corporais para implantação de um projeto-piloto de utilização pela Brigada Militar e pela Polícia Civil em Porto Alegre.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora