Geral
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27 de setembro de 2021
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18:16

Direção de unidade da Fase é afastada após denúncia de tortura contra adolescentes

Por
Luís Gomes
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Centro de Atendimento Socioeducativo Porto Alegre I. Foto: Reprodução
Centro de Atendimento Socioeducativo Porto Alegre I. Foto: Reprodução

A juíza Karla Aveline de Oliveira, da 3ª Vara do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, determinou na última sexta-feira (24), em caráter liminar, o afastamento da diretora e da assistente da direção do Centro de Atendimento Socioeducativo Porto Alegre I, unidade da Fase (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul) localizada no bairro Cristal.

A decisão ocorre em resposta a uma ação da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPERS), que denunciou excessos e desvios de conduta que teriam sido cometidos por parte de funcionários da unidade da Fase contra os adolescentes internos em diversas oportunidades. Elas são responsabilizadas pela adoção de práticas disciplinares atentatórias contra a dignidade dos internos da instituição e de violar direitos desses jovens.

Em um dos episódios listados na ação inicial da Defensoria, um adolescente foi punido por utilizar a máscara de proteção de forma indevida e obrigado a permanecer em seu dormitório. Uma agente socioeducadora da unidade então disse ao jovem que a restrição só seria retirada se ele se ajoelhasse e implorasse, o que foi feito pelo interno.

O defensor público Rodolfo Lorea Malhao, que assina a petição ao lado das defensoras Fabiane Lontra e Paula Simões Dutra de Oliveira, destaca que a punição de permanecer em restrição no dormitório existe no sistema socioeducativo, mas só pode ser aplicada mediante procedimento legal.

“A humilhação de fazer o adolescente se ajoelhar e pedir perdão também é muito grave. O adolescente deve ou não ficar restrito no dormitório por critérios legais. Jamais um agente pode se colocar na qualidade de exigir que um adolescente implore por seus direitos”, diz Rodolfo, acrescentando que a ação foi flagrada em vídeo ao qual a Defensoria teve acesso.

Outro caso citado pela Defensoria é um episódio em que três adolescentes foram submetidos a uma revista por volta da 1h30 da manhã. Segundo a Defensoria, na oportunidade, eles foram acordados e obrigados a ficarem nus e realizarem agachamentos.

Outro episódio relatado na ação é o caso de um jovem que teve objetos de artesanato destruídos como punição por “manifestar insurgência” à forma como ocorriam as revistas na unidade. “A par de desordenar seus pertences, em uma determinada ocasião a agente socioeducadora destruiu origamis que haviam sido confeccionados pelo jovem em uma oficina (…), com os quais pretendia presentear sua família”, diz a ação.

Para Rodolfo Malhao, os episódios podem ser considerados como casos de tortura contra os adolescentes. “A privação do sono é das piores formas de tortura. Para além de exigir o corpo nu, o que é totalmente desnecessário. Essa revista pessoal pode bem ocorrer após o final da visita, quando em tese poderia ter ingressado algum objeto, mas jamais haveria razão para que ocorresse no meio da noite”, diz.

Em sua decisão, a juíza Karla Oliveira considerou que os fatos narrados pela Defensoria “são mais do que suficientes” para a concessão do pedido liminar e “representam evidente constrangimento, humilhação e sofrimento psicológico aos adolescente que se encontram sob a custódia do Estado”.

Para a juíza, a necessidade de organização e de controle da unidade não pode servir como justificativa para a efetivação de atos truculentos e desrespeitosos que configurem maus-tratos ou tortura, seja física ou psicológica, em desfavor de socioeducandos. “Ademais, genuflexões matutinas ou revistas vespertinas (de dormitório e íntimas) jamais se enquadrarão como práticas socioeducativas por mais eufemismo que a língua portuguesa possa emprestar ao cotidiano de uma unidade de internação”, diz a decisão.

Além do afastamento provisório da diretora e da assistente da unidade, a juíza determinou à Fase a troca da direção da unidade em um prazo de três dias e deu um prazo de 10 dias para a que a instituição adote providências para investigar os abusos cometidos.

Em nota encaminhada à reportagem nesta segunda-feira (27), a Secretaria de Justiça, Sistemas Penal e Socioeducativo (SJSPS) do Estado informou que a presidência da Fase já indicou uma direção interina nos termos da decisão judicial. A secretaria diz também que solicitou apuração das denúncias e a adoção de medidas para garantir a normalidade das atividades. “Com relação ao afastamento, a decisão judicial foi cumprida, sendo oportunizada aos diretores a apresentação de defesa técnica no prazo previsto”, diz a nota.

Também em nota, o Semapi, sindicato que representa os trabalhadores da Fase, afirmou que o CASE POA I não é uma unidade com históricos de conflitos e que situações como as relatadas no processo “constituem uma raridade no histórico da casa”. O sindicato pontua ainda que, durante a pandemia, mesmo com a necessidade de suspensão de visitas de familiares, não foram registrados casos de indisciplina e revolta na instituição.

“No entendimento dos trabalhadores, a rotina vem acontecendo de forma tranquila, com cada servidor cumprindo seu papel institucional dentro dos parâmetros legais, e com respeito aos direitos humanos, algo inerente ao atendimento diário dos jovens. Ao contrário do que possa dar a entender esse processo, os tempos de motins, mortes, maus tratos institucionais, tanto a adolescentes quanto a trabalhadores, foi encerrado junto com a FEBEM. Não aceitaremos que nosso trabalho seja visto sob essa ótica, pois atuamos em total sintonia com os novos tempos, de leis e normas internas que garantem os direitos dos socioeducandos, e que são visceralmente adotados pelos trabalhadores da Fundação em sua prática diária. A situação deixou trabalhadores e trabalhadoras acuados, e a falta de uma resposta da Fundação aumenta o desconforto. Esperamos que a gestão se manifeste o mais rápido possível, e construa um relacionamento mais harmônico com o Judiciário”, diz.


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