Geral
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29 de janeiro de 2017
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10:41

Como um jovem trans encontrou em vídeos na internet sua identidade e uma maneira de contar sua história

Peter buscou apoio de vídeos na internet para entender o que é ser um homem trans e agora conta sua própria história na internet. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Peter buscou apoio de vídeos na internet para entender o que é ser um homem trans e agora conta sua própria história na internet. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

Todo tipo de pensamento ruim passou pela cabeça de Magda Leidens Corrêa na tarde da quinta-feira, 22 de setembro de 2016. De folga do trabalho como secretária de uma escola pública, em Porto Alegre, Magda se preparava para descansar por alguns minutos quando a filha Giuliana a chamou: “Preciso conversar contigo e com meu pai, já pedi que ele viesse aqui em casa, pode ser?”. Como acontece sempre que alguém introduz suspense em uma história, Magda só conseguia pensar no pior. Tentou pescar algo de toda maneira, mas só descobriu o que a filha precisava tanto dizer depois de dar play em um vídeo de 7 minutos e 50 segundos que ela deixou preparado para os pais no computador. Aos 18 segundos, já seguiu direto ao assunto: “Vocês sabem que eu tenho problemas para falar de assuntos sérios, mas enfim: eu sou transgênero”.

Foi assim que Peter deu a notícia aos pais de que estava pronto para começar o tratamento hormonal de transição do gênero feminino para o masculino. Há um ano e meio ele já sabia que não poderia continuar sendo “Giuliana”. Uma semana antes de conversar com os pais, depois de quase seis meses de espera por um horário, ele teve sua primeira consulta com uma médica que já havia atendido outros homens trans como ele e, aos 19 anos, já estava decidido sobre o que queria. Faltava o apoio dos pais e saber o que eles achariam de sua decisão.

Depois de falar sobre sua identidade de gênero aos pais, Peter previa que “provavelmente, enquanto eles estiverem assistindo, vou estar num quarto comendo todas as unhas e morrendo do coração”. Ao invés disso, o tempo que deu para que os pais assistissem ao vídeo, ele passou caminhando nervoso por todas as quatro praças perto de sua casa. Durante duas horas, todo tipo de coisas passou pela sua cabeça, mas especialmente o que aconteceria se os pais não o aceitassem. A sociedade já seria difícil, mas os pais…Peter não queria imaginar. Ele já havia decidido que continuaria o tratamento de qualquer maneira, mas sabia também que ia precisar da família ao lado.

Os pais, depois do susto gerado pelo mistério da notícia, resolveram brincar um pouco. Quando Peter voltou para casa, agiram como se estivessem indiferentes à notícia e sem nada para dizer. Mas logo entregaram o jogo. Em poucos minutos, os três e a namorada de Peter, Nathalia, viviam um momento histórico para a família. No mesmo dia 22 de setembro, Peter tomou sua primeira injeção de hormônios, administrada pelo próprio pai. Do momento, ele lembra apenas de ter sido difícil segurar a emoção. “Não pela injeção, mas pela aceitação que eu achei que seria mais difícil, a emoção foi mais por isso”, conta ele.

Cinco meses depois, o jovem estudante de Medicina Veterinária tem a voz mais rouca, os pêlos mais grossos e espalhados pelo corpo, espinhas que achou que tinham ido embora, voltaram, parece um pouco mais irritado – segundo a namorada – e leva na carteira o documento social com seu nome como sente que deveria ter sido desde sempre: Peter Leidens Domingues.

Magda sofreu para compreender as transformações do filho, mas agora diz que caminhada a transformou. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Peter escreveu no próprio vídeo que essa era a segunda vez que saía do armário. A primeira, diz ele, foi quando aos 14 anos teve que dizer aos pais que gostava de meninas e que era lésbica. Ao contrário da “segunda saída”, a primeira vez que se identificou como uma pessoa LGBT, Peter enfrentou problemas de aceitação consigo mesmo e de uma das pessoas que mais ama: a própria mãe.

O pai de Peter sempre achou a situação “tranquila”. Tanto ter uma filha lésbica, quanto depois ter um filho transgênero. Jorge é um seguidor da filosofia do “deixa ela viver a vida dela”. Com Magda, não foi bem assim. “Foi muito difícil para mim. Mas eu me vi homofóbica. Fiquei muito envergonhada. Eu sou espírita e comecei a repensar tudo. Como uma pessoa que se diz espiritualizada pode ter preconceito? Mas é muito fácil com o filho dos outros, quando é com o da gente é diferente”, diz ela. Até metade de 2016, Magda não aceitava 100% a orientação sexual  da filha pensando no que os outros poderiam falar delas.

Peter também precisou se aceitar e entender o que passava. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Poucos meses depois de saber que tinha uma filha lésbica, há 5 anos, Magda atendeu uma ligação do ex-marido. Do outro lado, ele perguntava se ela havia visto como estavam os braços da filha. Durante meses, Giuliana cortava os braços e ninguém em volta dela sabia. “Tu te sente impotente, se pergunta por que ele não chegou e falou. Mas não é tão simples”, analisa Magda. “Isso foi um crescimento para mim. É difícil, mas não é impossível. É um crescimento que a gente precisa dentro da gente”.

O próprio Peter também precisou passar por um processo de aceitação. “Sabia que tinha algo errado, ninguém faz o que eu fiz (a auto-mutilação) sem ter algo errado. Mas não sabia explicar o que era”, Peter conta aos pais no mesmo vídeo em que anuncia seu tratamento. Nos meses em que passou desejando que as pessoas o vissem como ele mesmo se via, Peter começou a assistir vídeos no Youtube e pesquisar a história de outros homens transexuais. Homens, como ele.

“Eu tive problemas diversos. Não me sentia bem, não me sentia bem com o meu corpo, não me adaptava. Então, eu fui tentando outras formas de tentar me sentir melhor”, conta Peter hoje. A adolescência, que nunca é fácil para ninguém, para alguém que não se sente confortável na própria pele foi ainda mais difícil. “É bem complicado. É o dobro da dificuldade. A puberdade já é difícil para todo mundo, porque está mudando a voz, está mudando o corpo. É mais complicado [para pessoas trans], tu não te sente bem com teu corpo, tu não te sente bem no lugar que tu está, sabe que não deveria estar ali. É mais difícil”.

No começo de 2016, a namorada, Nathalia, logo percebeu que algo estava estranho com Giuliana. Com menos de um ano de namoro, depois de ela sempre aparecer com vídeos e canais de homens trans para mostrar, Nathi reuniu coragem e perguntou se não era isso que a incomodava: seu gênero. Mesmo com medo de perder alguém que se apaixonou por ela como mulher, Giuliana concordou – talvez fosse mesmo o que faltava – e passou a buscar todo tipo de informação que existisse disponível.

Os vídeos de outros youtubers trans contando que também passaram pela puberdade, que também sofreram bullying e todo tipo de preconceito, foram o que ajudou Peter a entender que estava tudo bem. A maioria dos canais, no entanto, eram estrangeiros. Peter percebeu que precisava falar sobre o que é ser um homem trans para jovens brasileiros e brasileiras passando por isso. Foi assim que nasceu o canal Peter The Pan, onde duas vezes por semana – todas as quartas e sábados – ele fala sobre o seu tratamento, sobre as mudanças físicas e psicológicas que sente em si e explica mais sobre o mundo LGBT para pessoas que não o entendem. Além de ajudar outras pessoas, os vídeos são também uma forma de ele mesmo documentar sua caminhada.

“Mesmo a maioria dos meus amigos, sendo do meio LGBT, a gente não sabe como vai ser [a aceitação]. Porque no meio LGBT, gays, lésbicas, bissexuais não entendem exatamente as pessoas transexuais. Uma coisa é a sexualidade e a outra é gênero e é um pouco mais complicado. A gente não fala muito sobre isso”, explica Peter.

Com menos de um mês de seu canal em atividade, Peter já recebeu várias mensagens, pelo Youtube e por sua página no Facebook. Uma delas era de uma menina que dizia “sempre ter se sentido assim” e que “não sabia que no Brasil era possível conseguir o tratamento”. Outra foi de um menino, de Porto Alegre como ele, que quer passar pelo mesmo tratamento, mas ainda não sabia como encontrar um médico ou conversar com os pais sobre o assunto.

A namorada Nathália foi quem o ajudou a encontrar uma médica e o acompanhou na primeira consulta | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O que os últimos meses mostraram a ele mesmo e à família é que Peter sempre existiu. Ele não tirou o lugar de Giuliana. Na verdade, Giuliana foi quem tomou o lugar dele durante muito tempo. Nas fotos de criança, ainda “menina”, ele aparece sem camisa, brincando com os meninos, de brincadeiras de meninos. Era onde se sentia mais à vontade. Nas brincadeiras ou lendo livros da saga “Harry Potter”, Peter sempre se viu nos papéis masculinos. O melhor amigo da escola, que segue sendo o melhor amigo de Peter até hoje, é um jovem homossexual, que passou boa parte da infância aguentando outras crianças o chamarem de “viadinho” e ele, ao lado, sofria junto. Quando tomou a decisão de começar o tratamento definitivo, ele sabia o que estava fazendo.

Com a identidade ainda de Giuliana, ele passava pela angústia de querer correr e não saber para onde. Encontrou como escape os cortes pequenos que se fazia nos braços. Ela se auto-mutilou por vários meses, sem que ninguém percebesse. Segundo uma pesquisa da Faculdade de Psicologia Maurício de Nassau, 66,4% homens trans que afirmaram já ter pensado em suicídio. São a população mais invisibilizada dentro da sigla LGBT.

Peter já planeja participar de grupos e fóruns com foco em jovens trans | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ao mesmo tempo, a mudança, que ia deixando Giuliana para trás, foi gradual. Depois de conhecer os  vídeos de pessoas trans, Peter cortou os cabelos e passou a usar roupas mais masculinas. A namorada, Nathi, foi a primeira a tentar aos poucos ir substituindo os pronomes quando se referia a ele. Os pais e os dois irmãos – um mais velho e outro mais novo – ainda sofrem um pouco para acompanhar. “Já vieram me falar: ‘tu não acha que vai se arrepender?’, ‘tu não acha que é muito novo?’. É complicado né? Para certas coisas tu tem idade suficiente; para tu saber da tua vida, não tem”, afirma Peter.

Magda conta que não teve preocupação com o filho a partir do tratamento. Desde pequeno, Peter sempre soube o que queria e nada tirava uma ideia dele depois de já ter entrado na cabeça. “Ele não é inconsequente, é muito maduro. Se ele tinha tomado essa decisão é porque foi muito estudada, muito planejada. Não foi um ‘ah, vou virar homem e é isso’”, analisa ela. “O que mais me admira no Peter é ver a garra e a coragem que ele tem, com 19 anos, para fazer tudo isso. Desde pequeno foi assim”.

Dos tipos de tratamento disponíveis – via oral, com comprimidos, via cirúrgica, que instala uma espécie de pastilha debaixo da pele e que libera a dose de hormônios gradualmente no corpo, ou ainda por gel, que tem de ser aplicado diariamente por todo o corpo para que possa agir e a via intramuscular, com injeções mensais que vão aumentando aos poucos a quantidade de hormônios – Peter acabou escolhendo o método mais comum. Agora, uma vez por mês, toma a injeção que o ajuda a adquirir traços masculinos. Por enquanto, ele diz não ter sentido nenhum efeito colateral.

Presente de uma amiga de Peter. A meia é uma brincadeira em referência à saga de Harry Potter: quando se quer libertar um escravo, deve-se entregar uma meia | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A próxima batalha que terá de enfrentar será conseguir que a faculdade aceite seu nome social na matrícula e na lista de chamadas do semestre que se inicia em fevereiro. A lei do Rio Grande do Sul, por enquanto, só prevê obrigatoriedade de aceitação do nome social em órgãos públicos. A instituição tinha pedido a certidão de nascimento com o nome de Peter retificado – algo não tão simples e que pode levar tempo para se conseguir. “Se a faculdade não aceitar o nome, não sei se vou fazer esse semestre, porque é passar um semestre inteiro com nome e pronome errados. Vai ser complicado. Principalmente agora, que está mudando tudo. Vai fazer a chamada, ‘Giuliana’, e vou responder com uma voz grossa. Não existe mais. Quem é Giuliana?”, diz Peter.

Na próxima semana, ao lado da mãe, Peter também começará a frequentar o Protig (Programa de identidade de gênero), grupo de apoio a pessoas transexuais e seus familiares, dentro do Hospital de Clínicas, de Porto Alegre. Ele e a mãe já tem o encontro marcado na agenda. Magda espera poder ajudar outros pais, que passam pela mesma experiência que ela teve, a entender. “Foi uma caminhada que eu tive nesses cinco anos. Não é assim, ‘minha filha é gay e está tudo bem’. Chorei, me desesperei, não pode ser, não é, não vai ser, mas depois, de repente, a gente acaba aceitando. Como diz o meu outro filho: quem sou eu para aceitar? É a vida dele”, afirma.

De outras mudanças, Peter, por enquanto, só sabe que quer a mastectomia – retirar as mamas. Ele ainda não sabe se um dia irá querer passar pela cirurgia de redesignação de gênero. Como no Brasil a cirurgia para homens trans ainda é tratada como uma cirurgia experimental, ele tem dúvidas sobre até que ponto ela pode valer a pena.

Antes de riscar o “Juliana”, Peter e Nathi passaram dias escolhendo seu novo nome. Ficou em dúvida entre nomes como Max, Theo e Victor. Acabou com Peter, inspirado em Peter Pan, um de seus personagens favoritos. Sorrindo, ele explica a escolha: “Ele é o que ele é, independente do que as pessoas querem que ele seja. Não que eu queira ser criança para sempre, mas esse negócio de ele viver a vida dele do jeito que quer, não da maneira que as pessoas esperam que ele viva, eu gosto disso”.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

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