Entrevistas
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19 de março de 2024
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17:09

Privatizações no RS: ‘O discurso de que haverá ampla concorrência é uma falácia’

Por
Luciano Velleda
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Leilão da CEEE-D foi vencido por lance único de R$ 100 mil pela Equatorial. Foto: Felipe Dalla Valle / Palácio Piratini
Leilão da CEEE-D foi vencido por lance único de R$ 100 mil pela Equatorial. Foto: Felipe Dalla Valle / Palácio Piratini

No final de fevereiro deste ano, o governador Eduardo Leite (PSDB) enalteceu o papel do Rio Grande do Sul como um dos principais estados do Brasil na realização de privatizações, concessões e Parcerias Público Privada (PPP). A cena ocorreu na conferência P3C, na sede da B3, em São Paulo. Na ocasião, Leite destacou que o governo gaúcho alcançou a posição de líder em privatizações no País com as vendas de CEEE-G, CEEE-T, CEEE-D, Sulgás e Corsan. O RS também foi considerado “top três” em concessões de serviços públicos à iniciativa privada, com as operações da RSC-287, o Bloco 3 de Rodovias do Vale do Caí e da Serra Gaúcha, os Parques Tainhas, Caracol e do Turvo, além do Presídio de Erechim. 

“Temos a satisfação de sermos reconhecidos como uma das principais carteiras de parcerias público-privadas (PPPs) pela B3 e de estarmos aqui no P3C e destacar para os investidores todo o potencial de nossa agenda. O Rio Grande do Sul aposta nesse caminho, fortalecendo parcerias com o setor privado para viabilizar a melhoria da qualidade de vida da população”, afirmou o governador no evento.

Apesar da exaltação com a agenda de privatizações, algumas dessas vendas de patrimônio público chamam a atenção pela ausência de concorrência, com vencedores tendo feito uma oferta única, situação bem diferente da propalada disputa do livre mercado. Foi o caso, por exemplo, da Companhia de Gás do Estado do Rio Grande do Sul (Sulgás), vendida em outubro de 2021 para a Compass, do grupo Cosan, única empresa a participar do leilão.

No mesmo ano, com uma proposta de R$ 100 mil, o Grupo Equatorial Energia venceu o leilão de privatização da Companhia Estadual de Distribuição de Energia Elétrica (CEEE-D). Não houve disputa, pois a Equatorial foi a única empresa participante. 

A mesma situação se repetiu na venda da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) em dezembro de 2022. O processo foi vencido por um consórcio formado pelas empresas Aegea, Perfin e Kinea, com lance único de R$ 4,15 bilhões. A proposta vencedora foi a única apresentada no certame. Três anos antes, o Consórcio Aegea também havia vencido a licitação para a parceria público-privada com a Corsan para saneamento na Região Metropolitana de Porto Alegre.

Das cinco privatizações celebradas por Leite na Bolsa de Valores de São Paulo, três foram vencidas sem concorrência. A questão se repetiu em concessões e parcerias público privadas.

Em agosto de 2022, a empresa Três Fronteiras Navegação e Turismo, do grupo paranaense Macuco Safari, venceu a concorrência do Parque Estadual do Turvo, localizado no noroeste do Estado. O certame foi vencido pelo grupo com a oferta única de R$ 125 mil, que representou um ágio de 74,77% sobre a outorga mínima exigida no edital de licitação. Desfecho semelhante ocorreu em outubro do ano passado, quando a única proposta da empresa Soluções Serviços Terceirizados arrematou a Parceria Público-Privada (PPP) para o novo Presídio de Erechim. O projeto é a primeira PPP do Estado na área de segurança pública e prevê a construção, manutenção e apoio à operação do estabelecimento prisional no município.

O mais recente exemplo é o Cais Mauá, com a concorrência vencida pela proposta única do consórcio Pulsa RS, que vai administrar o cais pelo período de 30 anos, com investimentos previstos de R$ 353,3 milhões para a ampla revitalização e qualificação do local.

“Em alguns setores, tu não tens uma ampla concorrência. Quando uma empresa começa a ganhar aqui e ali, como a Equatorial, não se pode falar tecnicamente em monopólio, mas se pode falar de oligopólio. Há poucas empresas privadas no Brasil capazes de assumir essa prestação de serviço. E se há poucas empresas, então temos um mercado viciado que nunca vai ser de ampla concorrência efetivamente. O discurso de que haverá ampla concorrência e o poder público poderá escolher a melhor proposta é uma falácia, é falso”, afirma Aragon Erico Dasso Junior, professor da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em administração pública.

Nesta entrevista ao Sul21, o professor analisa a agenda de privatizações do governo Leite e o que pode estar acontecendo para que apenas uma única empresa se interesse pelo patrimônio público posto à venda pelo Estado do Rio Grande do Sul.

“No caso do Cais Mauá, o consórcio que estava concorrendo não precisou nem fazer esforço para dar um lance mais atraente porque o que definiria o processo de escolha seria exatamente haver um lance. Ele já sabia que estava concorrendo sozinho e isso é muito preocupante”, pondera Aragon Junior.

Críticas ao serviço da CEEE Equatorial aumentaram após vários dias sem luz devido ao temporal do dia 16 de janeiro. Foto: Luiza Castro/Sul21

Leia os principais trechos da entrevista:

Sul21: Privatização, concessão e desestatização são termos usados pelos governantes no que se refere a passar um serviço público para a gestão privada, mas qual a diferença entre eles?

Aragon Junior: O processo que genericamente a população entende como privatização, do ponto de vista jurídico, não se vai encontrar na lei a expressão ‘privatização’. O próprio BNDES, que historicamente é quem mais financiou privatizações no Brasil desde o governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), denominava as privatizações em três tipos: a venda de uma empresa estatal, seja ela de economia pública ou sociedade de economia mista; as concessões federais e as concessões estaduais. E as concessões são uma transferência temporária da prestação do serviço público. 

As concessões sempre foram vistas como uma espécie de privatização, assim como a venda do patrimônio público. Uma é definitiva, a outra temporária. Na época do governo Fernando Henrique, o ministro Bresser Pereira cunhou a expressão “desestatização”, que é um eufemismo, uma figura de linguagem. “Privatização” o cidadão comum entende, já “desestatização” não é um conceito tão fluido. Eu poderia enumerar um lote de eufemismos cunhados nessa área com o objetivo, às vezes, de mascarar um processo que era muito polêmico. Então tínhamos a Lei das Concessões (Lei 8987/1995) e a venda de patrimônio através de leilão. No caso da concessão não se faz um leilão, se faz uma concorrência.

Sul21: A lei das Parcerias Público Privadas acrescentou mais uma possibilidade nesse modelo.

Aragon Junior: A partir de 2004 isso mudou quando se criou um tipo de concessão especial, as chamadas Parcerias Público Privadas (PPP). A Lei 11.079/2004 mudou o modelo de concessão porque nas concessões comuns, o concessionário, em tese, ele tem risco no negócio. Na prática, o que mudou é que no caso da Parceria Público Privada tem um tempo mínimo e um valor mínimo para a concessão. Fundamentalmente, a grande diferença é que no caso de uma PPP tem que ter dois objetos na concessão. Por exemplo, tu vais construir o presídio e vais fazer a conservação e manutenção do presídio. São dois objetos. Só que a PPP surge com duas nomenclaturas diferentes: a concessão administrativa e a concessão patrocinada. 

No caso da patrocinada é bem simples, é quase como se estivesse pensando no capitalismo sem risco. A empresa administra uma rodovia, se remunera através de tarifa, então é o cidadão quem paga, e ela tem uma expectativa de lucro. Caso esse valor não seja atingido, o poder público é obrigado a complementar. Então existe a certeza do lucro ‘x’, porque se houver um lucro maior, não é obrigado a devolver para a administração pública. Mas tem situações, como um presídio, que não tem como cobrar tarifa do apenado, então quem paga é o próprio poder público, que paga um valor determinado pela construção e pela manutenção e conservação do presídio. É a concessão administrativa, em que se paga um valor fixo. 

Como pesquisador e professor de administração pública, para me relacionar com o cidadão comum, a única forma é dizer que tudo isso é um guarda-chuva das privatizações. 

Sul21: No emaranhado de conceitos sob o guarda-chuva da privatização, como o senhor analisa a agenda do governador Eduardo Leite?

Aragon Junior: A agenda atual do governador Eduardo Leite é a agenda inconclusa dos anos de 1990. O que o Leite está fazendo é tentando concluir uma agenda aberta pelo governador Antônio Britto em 1995 e que ele não conseguiu dar continuidade porque não se reelegeu em 1998. Ao não se reeleger, aquele processo iniciado por ele de privatizações, seja com a CRT, seja parcialmente com a CEEE, ficou estancado. 

Após esse período, houve uma sucessão de governos nunca reeleitos e de facetas ideológicas distintas, com menos ou mais apreço pelas privatizações. Mas mesmo aqueles que tinham apreço pelas privatizações, como a governadora Yeda Crusius, ela não teve força política para conseguir avançar nisso. 

Sul21: E por que não teve força política?

Aragon Junior: Porque a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul tinha o artigo 22 que era uma exigência de plebiscito para que pudesse ser vendido esse patrimônio. E o plebiscito só foi superado no governo Eduardo Leite. Quando ele vence a eleição e começa a governar em 2019, a primeira agenda do Eduardo Leite não é privatizar nada, é alterar a Constituição Estadual. Porque no momento em que ele retira a exigência do plebiscito, e tem maioria na Assembleia Legislativa para retirar a exigência, a partir desse momento então ele começa a discussão sobre a privatização. Porque aí ele precisa só de maioria simples para qualquer privatização.

Então ele conclui a privatização da CEEE, privatiza a Corsan, e o Banrisul só não está na agenda imediata em função de uma promessa de campanha que ele teve que ceder no segundo turno das eleições. Essa agenda inconclusa dos anos 1990 avançou em vários estados brasileiros e no Rio Grande do Sul não. E muito se deve à cláusula do plebiscito. Hoje é com orgulho que ele fala das privatizações porque é a agenda central do governo Eduardo Leite. 

Sergio Stein (centro), do consórcio Pulsa RS, bate o martelo no leilão do Cais Mauá ao lado do governador Leite e do prefeito Melo. Fotos: Mateus Raugust/PMPA

Sul21: O que acontece com essa agenda, que de certa forma é de sucesso porque ele tem conseguido fazer as privatizações, mas que a cada nova privatização tem apenas um único interessado?

Aragon Junior: Como pesquisador na área da administração pública, vejo com preocupação. Quando alguém vai lançar um edital para um modelo de privatização, seja qual for, ele tem que ser muito bom tecnicamente. A secretaria que vai lançar o edital tem que ter uma estrutura técnica muito boa para fazer isso, sob pena de acontecer o que está acontecendo agora. 

Não vou entrar na discussão se há um mercado pré-definido, só uma investigação policial ou jornalística poderia apontar, eu não tenho condições de dizer se foi uma licitação viciada na origem, se já havia um cartel pré-determinado ou empresas acordadas. Mas tenho condições de fazer uma observação em que, à medida que há uma constância de um único concorrente, significa dizer que o edital está mal elaborado. 

Sul21: Por que é um edital pouco atraente para o mercado?

Aragon Junior: É evidente. Parece que a gente tem um mercado viciado no caso brasileiro. Em alguns desses editais, o vencedor da concessão, no caso da concorrência, já é gestor de outras concessões no Brasil. É o caso da Equatorial, é o caso do grupo Aegea com a Corsan, que inclusive tem outras concessões questionadas, tem problema em Manaus gravíssimo, em Campo Grande. Os casos variam pouco. Há um mercado que, aparentemente, ou ele é viciado ou não é atraente o suficiente para que haja uma disputa. 

Quando essa disputa não se dá, o caso do Cais Mauá, por exemplo, muitas vezes a contrapartida que o poder público oferece, a empresa ou o consórcio olha e diz: “Vou concorrer sozinho, então não preciso nem dar um lance importante, vou trabalhar com o valor já estabelecido no teto do próprio edital pelo poder público”. 

No caso do Cais Mauá, o consórcio que estava concorrendo não precisou nem fazer esforço para dar um lance mais atraente porque o que definiria o processo de escolha seria exatamente haver um lance. Ele já sabia que estava concorrendo sozinho e isso é muito preocupante. Qual o cenário, os editais estão mal formulados? Me parece que isso é evidente. O Cais Mauá é o melhor exemplo, o edital foi e voltou, foi e voltou, então há um problema técnico na formulação. 

Sul21: O problema na elaboração do edital então prejudica a livre concorrência.

Aragon Junior: Em alguns setores, tu não tens uma ampla concorrência. Quando uma empresa começa a ganhar aqui e ali, como a Equatorial, não se pode falar tecnicamente em monopólio, mas se pode falar de oligopólio. Há poucas empresas privadas no Brasil capazes de assumir essa prestação de serviço. E se há poucas empresas, então temos um mercado viciado que nunca vai ser de ampla concorrência efetivamente. O discurso de que haverá ampla concorrência e o poder público poderá escolher a melhor proposta é uma falácia, é falso.

Acho que não dá para generalizar, tem que olhar caso a caso, há diferença se é uma venda de patrimônio ou concorrência, mas nos dois modelos, seja um leilão, seja uma concorrência, o que se espera é que haja vários candidatos. Então me chama muita atenção que o governador destaque a “liderança” do Rio Grande do Sul nas privatizações num cenário onde a gente está refém dessas empresas. 

Sul21: Como fica a agência reguladora, a Agergs, no meio disso tudo?

Aragon Junior: Quem nomeia os conselheiros da Agergs é o governador. A Agergs está sucateada, não tem servidores, não é nada efetiva. Nós não temos regulação. O cidadão está completamente abandonado nessa relação. O Rio Grande do Sul tenta cumprir uma agenda fracassada em vários lugares do mundo nos anos 1990. 

Esse é o modelo de desenvolvimento do Rio Grande do Sul, vender patrimônio. E no momento que esse patrimônio for vendido, o modelo de desenvolvimento é não gerir? Eu ganho uma eleição para não ser gestor? Ou então ganhei a eleição para ser regulador do serviço privado. O privado vai fazer o serviço porque acredito que ele é mais eficiente do que o público, o governador já disse isso muitas vezes. Então ele tem que ser um bom regulador. E como vai ser um bom regulador se a agência que regula o serviço no Rio Grande do Sul está sucateada? 

Por que o Rio Grande do Sul avança rapidamente numa modelagem onde a cidadania está sendo prejudicada? Porque o vencedor único num leilão não é a melhor alternativa, o que se espera é livre concorrência. Aliás, sempre se disse que o mercado era atraente, interessante, então ou não há mercado suficiente ou, numa outra possibilidade que não é excludente, não estamos sabendo fazer editais, estamos fazendo editais que se aproximam de monopólios.


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