Educação
|
3 de fevereiro de 2024
|
09:34

O negacionismo da pandemia aproximou terraplanistas e bolsonaristas, diz antropólogo

Por
Luís Gomes
[email protected]
FlatCon. Foto: Jorge Garcia de Holanda/Arquivo pessoal
FlatCon. Foto: Jorge Garcia de Holanda/Arquivo pessoal

Como chegou ao Brasil o movimento de pessoas que, ao contrário do que diz a ciência, acreditam que o planeta Terra não é esférico, mas plano, com bordas? Como as pessoas chegam a conteúdos publicados sobre o tema e o que as mantêm dentro dessa comunidade? Essas são algumas das perguntas respondidas pelo antropólogo Jorge Garcia de Holanda em sua tese de doutorado “Estéticas de um mundo plano e estacionário: ciência, religião e conspiracionismo no ecossistema digital terraplanista”, defendida no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2023. Nesta semana, Jorge conversou com a reportagem do Sul21 e compartilhou algumas das descobertas da pesquisa.

O antropólogo explica que o primeiro contato que teve com o tema do terraplanismo ocorreu no final de 2018, quando um vídeo sobre o assunto apareceu como recomendação em seu Youtube. Por curiosidade, clicou no link e assistiu ao vídeo. Logo, percebeu que havia uma extensa produção de vídeos negando a ciência oficial e defendendo um modelo alternativo para o formato do planeta.

“Essa experiência de entrar numa recomendação de um vídeo no YouTube é muito comum e marcante para muitos terraplanistas. Muitas pessoas que viraram terraplanistas se tornaram sem saber o que era terraplanismo. Através de um recomendação inesperada do YouTube, caíram nesse tema e aí seguiram. No meu caso, eu fui fazer uma pesquisa com isso”, afirma.

Ele explica que o início da pesquisa, em 2019, coincidiu com um “boom” da produção de conteúdos por terraplanistas e também de reportagens da imprensa tradicional sobre o tema. Em novembro daquele ano, foi realizada em São Paulo a primeira Convenção Nacional da Terra Plana, a FlatCon, que seria o objeto inicial da pesquisa de Jorge. Contudo, os planos mudariam a partir da eclosão da pandemia de covid-19 em 2020.

 

“Inicialmente, a minha pesquisa foi por esse caminho para tentar entender mais ou menos como é que essas pessoas estavam se organizando para produzir um evento para falar que a Terra é plana. Mas, em 2020, a partir da pandemia, com uma certa impossibilidade de produzir eventos presenciais, eu acabei redesenhando a minha pesquisa e ficando mais atento ao que havia sido produzido desde 2015 por terraplanistas na internet. O objetivo passou a ser compreender como é que os terraplanistas materializavam digitalmente uma produção crescente de conteúdo da Terra plana. Na verdade, o que eu experimentei ali em 2019 foi um evento extraordinário na breve história do terraplanismo, um evento presencial. O que vinha acontecendo desde 2015 era uma presença digital, como é uma característica marcante desses grupos. Então, a pesquisa se desenhou por aí e o meu foco, no final das contas, acabou sendo a produção de vídeos terraplanistas, uma análise sobre como se produzem estéticamente modulações de sentidos, de práticas, ideias e discursos que produzem subjetividades terraplanistas e públicos terraplanistas”, explica o pesquisador.

Jorge Garcia de Holanda é autor da tese de doutorado “Estéticas de um mundo plano e estacionário: ciência, religião e conspiracionismo no ecossistema digital terraplanista” | Foto: Arquivo Pessoal

A pesquisa teve o objetivo de analisar como o terraplanismo se produz como fenômeno de formação estética. Jorge pontua que os terraplanistas, enquanto grupo, são um movimento aberto, difuso e cheio de contradições, mas que compartilham de processos de materialização dessa crença por meio de vídeos e imagens que são tratados como evidências da planicidade da Terra.

“A tese passa muito por entender como é que os terraplanistas se aproximam, por exemplo, do campo da ciência, obviamente num viés não científico, do que eles chamam de ‘ciência de verdade’. Como eles se aproximam de um universo religioso e produzem interpretações bíblicas, como eles se aproximam de um discurso conspiratório. Essas três esferas temáticas — religião, ciência e conspiração — são elementos centrais que compõem discursos e práticas terraplanistas”, explica.

Ele acrescenta ainda que um ponto importante de estudo da tese é o papel da arquitetura das plataformas digitais, com seus processos de recomendação via algoritmo, para a formação do terraplanismo como um sistema contemporâneo a partir de meados da década de 2010.

Jorge avalia que existem diversos caminhos que levam as pessoas ao terraplanismo, mas pontua que existem origens comuns aos membros da comunidade que observou em seu trabalho. “Uma coisa que era muito comum, que se relatava muito, era de pessoas que já tinham algum interesse em teorias da conspiração, duvidavam que o homem foi a lua. Outros caíam por interesse religioso, liam a Bíblia e viam ali certas descrições que não levavam tão ao pé da letra de que talvez a Terra seria estacionária. Determinados modos de interpretação bíblica vão dizer que existe a descrição de uma Terra plana, isso é o que os terraplanistas defendem. Alguns iam por esse caminho, por um interesse de aprofundar o seu literalismo bíblico, de tornar mais literal ainda certas interpretações que até então não tinham considerado. Tem muitos percursos possíveis”, afirma.

Ele destaca que nem todas as pessoas que fazem parte da comunidade terraplanista acreditam que o planeta seja, de fato, plano, mas pontua que há em comum um ceticismo, que as leva a proferir frases como: “Eu tenho dúvidas, não tenho certeza”. Contudo, mesmo quem se diz cético duvidaria da esfericidade da Terra. “Tem gradações, mas o que eu vi ali foi um núcleo que realmente leva ao pé da letra tudo isso”, afirma.

Outro fator identificado como importante para a aproximação com o terraplanismo é o sentimento de pertencimento a um grupo social. “Grande parte do que alimentava essa identidade terraplanista era uma relação de oposição a grupos considerados inimigos, isso evidentemente reforça um sentido de grupo. Tinha muita gente ali que estava assumindo uma retórica e se reaproximando do que eles entendiam como ‘uma ciência de verdade’”, diz.

 

Foto: Jorge Garcia de Holanda/Arquivo pessoal

Um elemento marcante dessa identidade terraplanista seria a crença de que a ciência é aquilo que pode ser verificado por cada pessoa, independente do nível de conhecimento sobre o assunto. “Tem uma coisa de autoconstrução da experiência, numa validação individual da experiência como uma régua, que mede a capacidade de compreensão do mundo. Tem uma valorização subjetiva de se sentir alguém que busca por conta própria uma verdade, ainda que essa pessoa que diga que está buscando por conta própria também esteja se alimentando de um conteúdo já produzido que diz que a verdade é que a Terra é plana. E isso também criou laços, essas pessoas encontraram grupos com os quais elas compartilhavam a noção de que eles eram uma minoria que tinha acessado a verdade, bem como a sensação de estar em guerra com diversas esferas, a ciência oficial, o jornalismo profissional, instituições religiosas, inclusive”, explica.

O antropólogo conta que, além de impedir a realização de novos eventos nos anos seguintes, a pandemia também provocou uma mudança no comportamento das redes terraplanistas, como a aproximação com conteúdos de extrema-direita. Ele pontua que a identificação entre os grupos já existia, mas que isso ficou mais evidenciado pelo que tinham em comum, o negacionismo pandêmico.

Foto: Jorge Garcia de Holanda/Arquivo pessoal

“A grande maioria das pessoas que eu acompanhei estariam localizadas na extrema-direita ou na direita. Até 2019, mais ou menos, isso era meio implícito, alguns desses grandes youtubers já tinham declarado apoio Jair Bolsonaro e tal. Em 2020, com o início da pandemia, aí foi uma convergência muito explícita. O tema da Terra plana, inclusive, foi temporariamente deixado de lado, porque a fala central era o negacionismo pandêmico para essas pessoas, e aí a convergência foi ficando cada vez mais forte”, diz.

O pesquisador afirma que alguns produtores de conteúdo terraplanista acabaram, inclusive, trocando o foco de suas produções, se tornando canais de difusão de discursos de extrema-direita. “Já estava implícito, em alguns casos explicitamente, até 2019, mas a Terra plana era algo que parecia ser colocado como algo à parte”, complementa.

A tese está disponível aqui.

Contudo, ele ressalva que, mesmo em seus primeiros contatos com o tema, em 2019, portanto antes da pandemia, identificou que um dos fatores que levou muitas pessoas a conhecerem o terraplanismo foi o guru bolsonarista Olavo de Carvalho, que divulgou conteúdos destes grupos em suas redes. “Ele dizia: ‘Eu não sou terraplanista, mas eles levantam dúvidas’. Ou seja, havia ali uma certa estratégia de aproximação com terraplanistas e os terraplanistas também se beneficiaram disso. Alguns dizem que a audiência de seus canais aumentou enormemente depois do Olavo de Carvalho demonstrar publicamente esse apoio. Então, essas coisas sempre estiveram juntas”, destaca.

Jorge concluiu a etapa de pesquisa da sua tese em meados de 2022, portanto não chegou a acompanhar de forma aprofundada os impactos da derrota eleitoral de Bolsonaro e mesmo dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Contudo, diz que, pelo que seguiu acompanhando, há terraplanistas que deixaram o movimento, inclusive passando a negar o negacionismo. No entanto, ressalta que se trata de uma percepção e não de pesquisa.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora