Educação
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13 de dezembro de 2023
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14:32

Governo Melo quer passar gestão de obras nas escolas municipais para empresas privadas

Por
Luciano Velleda
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Concessão à empresa. privada envolve serviços de cozinha, lavanderia, obras, elétrica e hidráulica. Foto: Pedro Piegas/PMPA
Concessão à empresa. privada envolve serviços de cozinha, lavanderia, obras, elétrica e hidráulica. Foto: Pedro Piegas/PMPA

Termina nesta quinta-feira (14) a consulta pública de Parceria Público-Privada (PPP) do programa Escola Bem-Cuidada, proposto pelo governo do prefeito Sebastião Melo (MDB) e que prevê obras de construção, reformas, manutenção e prestação de serviços “não pedagógicos” em unidades educacionais do município. A ressalva do trabalho ser “não pedagógico” tem sido feita pela Prefeitura e está no centro do debate que o projeto despertou entre as direções das escolas municipais, principalmente as infantis.

Os valores previstos e o tempo de contrato também têm chamado a atenção. O governo Melo pretende que a futura PPP dure 20 anos, ao custo de quase R$ 4,5 bilhões. As dúvidas acerca do programa levaram um grupo de representantes das direções de escolas infantis a pedirem ao Ministério Público de Contas (MP de Contas) que analise o edital formatado pela Prefeitura.

O projeto prevê a construção de dez novas Escolas Municipais de Ensino Infantil (Emeis), a reforma de 96 unidades da rede de ensino, além da manutenção e zeladoria de 97 escolas (as 96 escolas citadas mais a a Escola Municipal João Carlos D’Avila Paixão Côrtes – Emef Laçador, cuja manutenção é executada pela própria Prefeitura).

No documento entregue dia 6 de dezembro ao MP de Contas, o grupo de diretores e vices-diretores questionam a legalidade do processo, principalmente nos aspectos que possam interferir diretamente na gestão democrática das escolas, em assuntos pedagógicas e na organização interna de cada unidade de ensino.

Com a previsão do programa de haver uma empresa para gerenciar a manutenção de elétrica e hidráulica, lavanderia, cozinha, limpeza, compra de mobiliário e de material de higiene e limpeza, suprimentos de informática, entre outros itens, as direções das escolas lembram que as experiências com terceirização têm sido ruins na rede municipal de educação. Como exemplos, citam os problemas com a última empresa contratada para reparos e manutenção, os recorrentes problemas de atraso de salário de funcionários da cozinha e limpeza, assim como trabalhadores sem férias e a não possibilidade de contratação de serviço de portaria para as escolas em função dos problemas recorrentes do último contrato.

As direções das escolas infantis também expressam preocupação por perderem as funções em relação à manutenção e às reformas e não mais poderem gerir os gastos feitos pela empresa terceirizada. A perda de autonomia na compra de mobiliário também causa aflição nos educadores, que defendem a função pedagógica dos móveis, principalmente nas escolas infantis.

“Com estas experiências tão ruins temos receio de que, com essa proposta trazida pelo secretário (José Paulo da Rosa), possamos perder a autonomia garantida pela Lei de Gestão Democrática e as comunidades não poderem atuar em questões importantes como: escolha e qualidade do mobiliário; rapidez em pequenos e grandes consertos; decidir as reformas necessárias com a comunidade e fazê-las, poder escolher quais materiais pedagógicos serão comprados. Temos, também, muitas dúvidas como: Poderemos negar mobílias que não vão ao encontro de nossa proposta pedagógica como as péssimas estantes que recebemos? Como será a qualidade dos materiais de higiene e limpeza? Teremos direito à curadoria das mobílias e, principalmente, das reformas?”, ponderam as direções das escolas infantis no documento enviado ao Ministério Público de Contas.

A vice-diretora da EMEI Walter Silber é uma das críticas ao programa. Foto: Helena Rocha/PMPA

Representante das direções das escolas de educação infantil da zona leste de Porto Alegre, Francisca Vargas Carneiro do Prado, vice-diretora EMEI Walter Silber, avalia que o projeto surgiu abruptamente. Ao todo, cinco representantes das regiões da Capital estiveram na reunião em que o secretário de Educação, José Paulo da Rosa, apresentou a proposta há cerca de três meses, ao lado da secretária de Parcerias, Ana Pellini.

“Ficamos muito surpresas. Inicialmente a gente não tinha valores, não existia ainda um edital, mas já de partida isso nos assustou. Quando ele trouxe questões como a administração das obras nas escolas, a compra de mobiliário, manutenção de elétrica e de hidráulica, compra de materiais de higiene, que faria lavanderia, isso nos chamou atenção”, recorda.

A vice-diretora salienta que as experiências com terceirizações são muito ruins nas escolas municipais, em áreas como limpeza, cozinha e portaria (essa durou pouco tempo), com atrasos salariais e ausência de férias devido ao fato dos funcionários emendarem um contrato no outro. “O histórico não nos traz tranquilidade. Então, no momento em que o secretário trouxe a ideia do projeto, imediatamente dissemos que é perigosa a terceirização, temos experiências muito ruins. A reação que tivemos, enquanto direções, foi de ficarmos muito assustadas.”

Francisca teme quanto tempo demorará para algo ser consertado na escola se o serviço passar para o controle de uma empresa. Ela explica que as escolas municipais têm melhores condições financeiras do que as estaduais, com recursos disponíveis para consertar o mais breve possível o que for necessário. “Quando estragar um ar condicionado, quanto tempo vai demorar para arrumar? Porque eu consigo para o outro dia o conserto ou no mesmo dia. Compreendo que muitas escolas têm dificuldades para serem administradas, mas as escolas de educação infantil de Porto Alegre têm dinheiro, poderia ser maior, mas é um bom dinheiro e a gente usa com muita sabedoria”, afirma, ressaltando o receio de que o trabalho deixe de ser feito com agilidade pelas direções escolares ao passar para uma empresa terceirizada.

Além da dúvida com relação à melhoria do serviço, o conceito do que é pedagógico está em disputa. De um lado, a Prefeitura defende que a proposta visa apenas obras e não irá interferir na gestão democrática das escolas, garantida por lei; de outro lado, as direções das escolas infantis sustentam o contrário e garantem que toda decisão, inclusive financeira, tem relação com a pedagogia.

“O financeiro também é pedagógico. A Lei da Gestão Democrática dá às escolas o poder de gerir e opinar qual obra é mais importante para as comunidades”, explica a vice-diretora, acrescentando sentir pouca abertura junto à Secretaria Municipal de Educação (Smed) para tratar da questão. “Também não é só uma questão da gente poder opinar, nós queremos gerenciar as obras e as compras. Esse trabalho faz parte de quem administra as escolas, é o papel das direções com seus conselhos escolares.”

Há pontos do edital que a vice-diretora da EMEI Walter Silber tem dificuldade em compreender. A lavanderia, por exemplo. Francisca diz que tal serviço existe nas escolas de educação infantil de turno integral, o que a faz questionar por que a Prefeitura irá pagar para uma empresa privada algo que já é feito pelas escolas, com maquinário próprio. Outro ponto do edital que causou estranheza é a previsão de compra de bebedouros, equipamento que já não é mais usado nas escolas da rede municipal desde antes da pandemia de covid-19.

Francisca ainda enfatiza a transparência das direções ao lidar com o dinheiro público em cada obra, em processos documentados, e teme que a situação mude para pior ao delegar compras de materiais e orçamentos para uma empresa privada. “É um processo que já existe, que é confiável e que é legal porque está amparado na Lei da Gestão Democrática.”

A curadoria dos móveis é outro ponto sensível destacado por ela. Por se tratar de educação infantil, o mobiliário com o qual as crianças irão interagir assume maior importância. “Parece um problema bobo, mas não é”, diz, explicando que faz pouco tempo que o mobiliário passou a ser visto como um elemento importante da pedagogia. O entendimento vem de propostas italianas de pedagogias ativas que embasam o referencial curricular de Porto Alegre, construído pelo governo Melo junto com a participação dos educadores e das gestões escolares – e elogiado na rede de ensino.

“Tudo é pedagógico dentro de uma escola. Enquanto direções, nós não temos problemas em gerenciar isso, o financeiro é o ‘nosso chão’ e nós temos um sistema que funciona. Cada escola tem um assessor financeiro e a lisura é a primeira coisa em todas as compras”, reforça a vice-diretora, sem conseguir entender por que a Prefeitura quer passar para uma empresa privada a gestão de algo já feito pelas direções escolares. Para ela, encaminhar reparos elétricos, hidráulicos ou pequenas obras não é um problema enfrentado pelas escolas de educação infantil do município. “Nossa queixa nunca é de serviço para fazer. Nossa queixa sempre é (a falta de) recursos humanos.”

Mobiliário e playground são pontos questionados por educadores no edital. Foto: Alex Rocha/PMPA

A divisão do projeto de Parceria Público-Privada (PPP) do programa Escola Bem-Cuidada será feita em três blocos, de modo que cada empresa seja responsável por operar entre 30 e 40 escolas segundo cálculos da Prefeitura. O valor estimado do contrato é de R$ 1.432.466.068,00 para o bloco Norte, R$ 1.395.946.276,00 para o bloco Centro e R$ 1.646.131.120,00 para o bloco Sul. Somando os três blocos, o valor total do programa é de R$ 4.474.573.464,00, ou quase R$ 4,5 bilhões.

A secretária municipal de Parcerias, Ana Pellini, acredita que ao vincular obras, manutenção e operação no mesmo contrato, a PPP proporcionará obras de melhor qualidade e a garantia de manutenção rotineira e permanente das escolas, com maior racionalidade e previsibilidade na gestão do patrimônio público.

A ideia do governo Melo é que a qualidade dos serviços prestados seja avaliada mensalmente por indicadores de desempenho focados em resultados, os quais serão aferidos por entidade independente e pela opinião dos próprios alunos, professores e diretores das escolas, com impacto na remuneração da concessionária.

“Esta será uma importante solução para melhorar a infraestrutura das nossas escolas, ampliar o atendimento de educação infantil e qualificar a manutenção dos prédios, para que os nossos diretores tenham melhores condições de trabalho e possam focar no pedagógico, que é a prioridade”, explica o secretário municipal da Educação, José Paulo da Rosa.

A intenção de “focar no pedagógico” é recorrente no discurso oficial da Prefeitura. A presidente do Conselho Municipal de Educação, Aline Kerber, destaca que as resoluções nº 22 de 2021 e nº 15 de 2014, sobre educação infantil, colocam a questão ambiental, arquitetônica e do espaço e materiais como algo muito relevante. O uso de plástico, por exemplo, foi abolido na rede municipal de ensino da Capital e a preferência são móveis de madeira.

Aline argumenta que a Prefeitura não apresentou a metodologia do projeto na audiência pública realizada dia 27 de novembro, o que a leva a questionar como o governo formulou a proposta e como chegou no valor de quase R$ 4,5 bilhões. Segundo ela, isso é importante para o controle social.

Aline destaca que um dos membros do Conselho Municipal de Educação atua num renomado colégio particular da Capital. Ele, a título de exemplo, relata que a escola só contrata empresa para realizar obras pelo período de um ano, prazo bem diferente dos 20 anos propostos pela Prefeitura –  equivalente a cinco mandatos de prefeito. O serviço é avaliado pelos gestoras do colégio e, se não for bom, no ano seguinte é trocado.

“O que a gente estranha, realmente, é serem 20 anos e um projeto pronto da Secretaria de Parcerias”, afirma. “É uma atribuição constitucional das direções e dos conselhos escolares definir uma parte do orçamento da gestão administrativa, que é pedagógica, e eles dizem que não é pedagógica, mas é pedagógica, portanto é um assunto da escola, da comunidade escolar, das direções e das equipes diretivas e não de uma empresa de fora que vai achar que é o mesmo tipo de entendimento pra toda rede municipal. Há um enorme apelo das direções dizendo que não querem (o programa). A gestão é democrática e pela lei, elas têm essa atribuição”, defende Aline.

No mesmo dia em que encerra a consulta pública sobre o programa, o Conselho Municipal de Educação irá apreciar e votar, , nesta quinta-feira (14), uma manifestação sobre o tema, em reunião no Centro Cultural Vila Flores.


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