Cultura
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17 de agosto de 2023
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18:09

Artesanato com palha de butiá é reconhecido como patrimônio imaterial do RS

Por
Luciano Velleda
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Seis gerações de artesãs mantém viva a técnica de traçado com a palha do butiá. Foto: Instituto Curicaca/Divulgação
Seis gerações de artesãs mantém viva a técnica de traçado com a palha do butiá. Foto: Instituto Curicaca/Divulgação

O modo de fazer artesanato com palha de butiá na região de Torres foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Rio Grande do Sul. A solenidade de patrimonialização ocorreu nesta quinta-feira (17), após um longo trabalho, iniciado em 2003, pelo Instituto Curicaca e as artesãs detentoras do saber, em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE).

O artesanato com palha de butiá (Butia catarinensis) tem sido transmitido de mãe para filha na região de Torres há cerca de 150 anos, chegando a seis gerações nas famílias rurais. O parecer técnico do IPHAE que concedeu o registro de patrimônio imaterial do RS destaca que o artesanato com palha de butiá tem uma rede de significados históricos, econômicos, sociais, ecológicos, estéticos e afetivos em uma territorialidade própria, o ecossistema dos butiazais. 

“Valores simbólicos como o cuidado, a criatividade, a resiliência, a autonomia das mulheres, o poder da convivência e a importância da memória, aliados a um contexto único lhe conferem singularidade e identidade cultural”, diz trecho do parecer.

A técnica passa pelas folhas secas e tratadas dos butiás, com as quais se faz a trança, o elemento central da produção de chapéus, bolsas e tapetes, com predominância da confecção de chapéus, variando conforme o número de palhas e a espessura do chapéu. Há outros produtos, mas cuja elaboração se mantém nas mãos de poucas artesãs, como bolsas coloridas, jogos americanos, carteiras, cestas e tapetes.

A pesquisa que levou ao reconhecimento como patrimônio imaterial do RS, mostra que o artesanato com palha de butiá é um fazer que perpassa a vida das mulheres na região de Torres. Na infância, quando aprenderam o ofício, o trançar era tratado como brincadeira; na adolescência, como diversão; na fase adulta, uma fonte de renda para vestuário e os livros dos filhos; e quando idosas, uma forma de terapia e de manter boas lembranças.

O documento do IPHAE ressalta que a transmissão da técnica entre gerações atualmente é frágil porque os butiazais, fonte da matéria prima, são um ecossistema em extinção. Para enfrentar essa questão, a proposta técnica de registro, elaborado pelo Instituto Curicaca, já incluiu um plano de salvaguarda com diversas ações.

As principais dificuldades que a manutenção da prática artesanal enfrenta começa pelo risco ambiental dos butiazais devido a ampliação agrícola, principalmente o cultivo de fumo, a pecuária, além do avanço da urbanização com novos loteamentos, a construção de condomínios e a expansão do mercado imobiliário. Para que o artesanato se mantenha, o acesso à folha de butiá é indispensável e, assim, a conservação do ecossistema dos butiazais.

Há também o risco geracional, considerando a idade avançada das atuais detentoras do saber, risco agravado pela baixa presença de pessoas jovens na aprendizagem e na prática do artesanato com palha de butiá. Por fim, há o risco econômico causado pelo baixo preço oferecido pelo mercado, que prioriza uma produção em quantidade em detrimento à qualidade, assim como à concorrência do artesanato de outras regiões vendido em Torres.

Há dificuldade de passar para as novas gerações a técnica do artesanato com palha de Butiá. Foto: Instituto Curicaca/Divulgação

O artesanato com palha de butiá na região de Torres é composto majoritariamente por pequenas agricultoras aposentadas que vivem em Torres, nas localidades de Campo Bonito, Águas Claras, São Brás, Faxinal, Itapeva e Vila São João. 

“Em vez da formação de um espaço que reúna contiguamente todas as artesãs, o que organiza sua distribuição espacial é o acesso aos ecossistemas de butiazais, cujos remanescentes atuais estão espalhados no município. A maioria das artesãs, por não viverem em propriedades dentro das quais haja butiazais, conseguem acessá-los por meio dos butiazais de parentes ou vizinhos, sem que se cobre por isso. Assim, embora as terras em que se encontram os butiazais não sejam públicas, as condutas de parentesco e vizinhança conferem um caráter coletivo ao usufruto das matérias existentes nesse ecossistema, dado que asseguram às artesãs o direito à presença e ao uso desses espaços”, explica o parecer do IPHAE. 

A história da relação técnica entre moradores de Torres e os butiazais remonta ao fim do século 19. Na época, a palha de butiá era trabalhada em engenhos de crina (ou “clina”), onde se produzia material de estofamento para sofás e colchões. Essa origem de economia industrial ainda hoje está presente na memória das artesãs atuais, que lembram que seus antigos parentes trabalhavam nos engenhos. Desde aquela época, o artesanato com palha de butiá já era tido como economia doméstica da comunidade, um complemento ao trabalho assalariado dos homens nos engenhos – como, de certa forma, permanece até hoje participa, embora em escala menor.

“A infância e a adolescência são narradas por elas como o início do ofício em suas vidas, quando o artesanato era tanto o modo de contribuírem para a economia doméstica quanto um objeto de brincadeiras – jogos e competições em torno da capacidade trançarem bem ou rápido – e um canal para seus propósitos, como a reserva pessoal de dinheiro para comprar vestidos ou ingredientes para bolos de aniversário. Para as mulheres, a transição para a idade adulta por meio do casamento também testemunhava a importância do artesanato, fonte do dinheiro com o qual adquiriam seus enxovais e até custeavam a festa matrimonial. Na fase adulta, além do serviço agrícola dividido com os maridos, o artesanato gerava a renda para comprar materiais escolares para os filhos e o vestuário para a família. É nessa fase que ensinam aos filhos, ou mais particularmente, às filhas as técnicas do artesanato. Quando idosas, além de uma ou outra encomenda ocasional, faziam e fazem das atividades do artesanato uma forma de lazer e terapia – nos termos das próprias artesãs”, conta o documento do IPHAE.

Pesquisa que levou ao reconhecimento da técnica como patrimônio imaterial do RS começou em 2003. Foto: Instituto Curicaca/Divulgação

O processo de reconhecer o artesanato com folhas de butiá em patrimônio imaterial do RS foi aberto no IPHAE em maio de 2020. O trabalho que deu origem ao processo, porém, começou bem antes, em 2016, por meio do projeto, “Artesanato Palha de Butiá: Registro e Geração de Renda para a Salvaguarda de um Bem Cultural de Comunidade Rurais do Litoral Norte do Rio Grande do Sul”, realizado pelo Instituto Curicaca e fonte da proposta técnica de registro do modo de fazer artesanato com palha de butiá na região de Torres.

“A situação do modo de fazer artesanato com palha de butiá na Região de Torres é um excelente exemplo da interdependência de natureza e cultura. As detentoras do saber precisam da palha pra trançar e manter todos os sentidos simbólicos que esse saber possui, mas forças externas, como as dificuldades de diálogo entre gerações, o apelo dos produtos sintéticos, a globalização e massificação cultural, fragilizam o processo”, explica o agrônomo Alexandre Krob, coordenador técnico e de políticas públicas do Instituto Curicaca.

Ele alerta que os butiazais estão ameaçados de extinção por pressões da urbanização, agricultura e pecuária. Com a interrupção da transmissão do saber entre gerações, os butiazais perdem suas principais defensoras, que vão tendo escassez de fibras.

“É uma bola de neve que nós, do Instituto Curicaca, estamos tentando segurar com ações complexas e complementares de salvaguarda cultural, proteção ambiental, socioecomia, educação ambiental e patrimonial. Na última década, perdemos 14% dos remanescentes do butia-da-praia no Rio Grande do Sul e várias detentoras idosas faleceram. Este registro, pelo qual lutamos tanto ao lado de nossas queridas artesãs, poderá ser um forte elemento de desvio de tendências até agora nada positivas”, analisa Krob.

Coube ao Instituto Curicaca fazer a solicitação de registro, apresentar a documentação sobre o bem cultural e as declarações de anuência assinadas pelas artesãs. A solicitação destaca que além das práticas e significados associados às manifestações culturais do artesanato, há o conhecimento ecológico e as habilidades técnicas das artesãs. 

As pesquisas do Instituto Curicaca, voltadas à biodiversidade e sociodiversidade da zona costeira do litoral norte do RS, começaram em 2003 com o projeto “Ação Cultural de Criação Saberes e Fazeres da Mata Atlântica”. Foi quando os pesquisadores tiveram as primeiras interações com as comunidades locais e com as artesãs. 

“A solicitação de registro é uma demanda social originada na realidade vivida pelas artesãs de Torres, dentro da qual se fazem presentes suas deliberações acerca da continuidade do artesanato, bem como as dificuldades para tanto. Intrínseca à demanda social pela manutenção do artesanato com palha de butiá está outra manutenção, aquela da matéria-prima desse ofício, qual seja, o vegetal butiazeiro da espécie Butia catarinensis e, em um escopo maior, o ecossistema dos butiazais, representante do bioma Mata Atlântica. Estão indissociáveis, portanto, demanda social e ecológica”, afirma o IPHAE, reconhecendo o protagonismo do Instituto Curicaca junto às artesãs na elaboração da proposta que, nesta quinta-feira (17), culminou no reconhecimento da técnica como patrimônio imaterial do RS. 


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