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1 de janeiro de 2024
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11:05

Os sinais da paz (por Luiz Marques)

Foto: Reprodução/Mídias Sociais
Foto: Reprodução/Mídias Sociais

Luiz Marques (*)

No século XIX, muitos físicos acharam que a Física estava chegando ao fim. Mas a natureza continuou a surpreender os cientistas. No século XX, os liberais acreditaram que a história estava chegando ao fim, depois da Queda do Muro de Berlim, com a vitória da democracia representativa e a economia de mercado. Mas a sociedade conseguiu se reinventar – para melhor, com a consciência ecossocialista; para pior, com a tríplice ascensão do neoliberalismo econômico, o fundamentalismo religioso e a extrema direita que se espalhou qual uma tempestade pelos hemisférios Norte e Sul.

Já no século XXI, os sionistas creram na possibilidade beligerante de um genocídio para dar um fim ao povo palestino, não-eleito. Mas os israelenses no penúltimo dia do ano de 2023, em atos de rua com milhares de manifestantes nas cidades de Tel Aviv e Cesareia, onde o primeiro-ministro tem uma residência, gritaram “Não” e exigiram “novas eleições”. O jornal The Times of Israel divulgou que as manifestações ocorreram “de forma sóbria e solene”. Claro. Um eufemismo para dizer que os acontecimentos reuniram setores importantes na balança da opinião pública local – pela paz.

Parcela dos israelenses, do centro político, conclui que Benjamin Netanyahu, após o fracasso em libertar o restante dos reféns do Hamas, coloca Israel (ela sim) em risco de chegar a um fim com os bombardeios sobre a Faixa de Gaza (ela não). A prática genocida do governo em curso recende os algozes nazistas no Holocausto. O risco das vítimas de outrora é trocar de posição com os carrascos. Felizmente a voz do mundo ecoa intrafronteiras do Estado chancelado pela ONU, no Pós-Guerra.

O Estado de Israel provocou o deslocamento de hum milhão e meio de pessoas de suas casas. Em compensação, acrescentou tijolos morais para a reconstrução da Palestina, com a solidariedade da maioria das nações no mapa-múndi, salvo exceções cada vez mais reticentes perante os ataques. A exemplo dos Acordos de Paris, em 27 de janeiro de 1973, que acabou com a invasão dos Estados Unidos no Vietnã graças às mobilizações massivas dos jovens estadunidenses, – o brado dramático das mães israelenses (“Tirem nossos soldados de Gaza; Israel não sobreviverá; Acordo diplomático já; Abaixo Netanyahu”) indica que o discurso sionista de tergiversação das responsabilidades começa a perder a credibilidade, em suas próprias hostes. Essa é a grande notícia da virada de ano.

É possível a coexistência na região, sem que o Estado de Israel se sinta ameaçado pelo Estado da Palestina. Na verdade, é o segundo que terá ainda motivos para ter medo do primeiro. Afinal, no levantamento do Censo de 2021, Israel possui 9.364 milhões de habitantes. Na Faixa de Gaza moram (ou moravam) 2.300 milhões. O maior, em regra, leva vantagem nas relações internacionais.

A diferença populacional importa entre os países, para não mencionar o poderio militar bélico. Entre 1815 e 1914, confiou-se no equilíbrio entre as grandes potências europeias (Alemanha, França, Reino Unido), na defesa da propriedade privada, do padrão ouro e da dominação colonial. Fatores julgados suficientes para garantir a acumulação do capital e a prosperidade do continente. Só não calcularam as desigualdades sociais internas como um elemento desestabilizador.

As alianças entre Reino Unido e França, em 1904, para dividirem o Egito e o Marrocos, e com a Rússia em 1906 para dividir a Pérsia, ao mesmo tempo que a Alemanha consolidava laços com a Áustria e a Hungria romperam o equilíbrio que, durante séculos, assegurou a paz. Enquanto os países isoladamente tinham uma grandeza equivalente, a concorrência para evitar os desequilíbrios entre os séculos XV e XVIII ajudou a impor o respeito mútuo. O tamanho servia à equanimidade.

Em 1800, a população da França (30 milhões de habitantes) era 50% maior do que a população da Alemanha, que até então não passara pela unificação. Tal, de certo modo, explica a extraordinária hegemonia militar e cultural francesa na Europa e os planos imperiais de Napoleão Bonaparte.
Com a estagnação do crescimento da França, por um século e meio, a coisa muda por completo de figura. Em 1910, é a Alemanha que com 60 milhões de habitantes se torna 50% maior que a França.

A geopolítica líquida do alvorecer do século passado acentua erros herdados do conflito de 1870-71, que trouxeram penas econômicas draconianas para a França, impostas pela Alemanha. A França fez a revanche com o término da I Guerra, impedindo com juros altos (ah os juros) a recuperação da Alemanha. Era o prenúncio da história da II Guerra, com os seus 20 milhões de russos mortos, 8 milhões de alemães, 6 milhões de judeus e 500 mil de norte-americanos. Convém memorizar os números. Como diz Thomas Piketty, se a questão demográfica não esgota os motivos dos conflitos, suscita ideias de poder. Quiçá banhos de sangue tenham ensinado prudência às ambições políticas.

O fato de vários países disporem de bombas atômicas, hoje, não diminui a insensatez humana. Aumenta a responsabilidade de seus governantes diante da possibilidade concreta de uma nova guerra, de proporções e consequências inimagináveis pelos critérios do bom senso. Selado o acordo diplomático para a criação do Estado da Palestina, dada a disparidade de forças militares e de equipamentos de alta letalidade, a apólice de seguro dos palestinos nas próximas décadas será a capacidade de o mundo resgatar os valores do iluminismo, para “ousar conhecer” para além dos freios encarnados nos preconceitos e também “ousar conviver” sob um regramento universal.

Para instaurar e manter uma paz duradoura, o mundo depende cada vez mais da tolerância, e menos da idiossincrasia das grandes potências da atualidade. Nesse sentido, líderes de um país com longa tradição diplomática de concertação (o Brasil) e um presidente com respeitabilidade e influência no tabuleiro mundial (Lula da Silva) têm um papel a desempenhar. Há que respaldar o povo israelense contra o pensamento único do sionismo, de extrema direita, cujo expoente-monstro é Netanyahu.

Os sinais se espargem em Israel, com os ventos da luta pela paz, vindos do mundo inteiro. Que 2024 seja o ano da reconciliação no Brasil, e da fundação do Estado da Palestina. Brindemos.

(*) Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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