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27 de maio de 2017
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10:30

Elvis está morto?

Por
Sul 21
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zeca azevedo

No dia 16 de maio passado, o jornal inglês The Guardian publicou em seu site um artigo cujo título é: “”Suspicious Minds”: porque a popularidade póstuma de Elvis está afundando”. O autor do texto se chama Thomas Hobbs (parece piada pronta, eu sei). O artigo diz que a popularidade de Elvis Presley está em declínio quarenta anos depois da morte dele. Sabemos que o tempo é o mais corrosivo dos elementos naturais e que a memória das pessoas é cada vez mais curta (e cada vez mais dirigida pela mídia hegemônica, que tem agenda própria). Nem mesmo o legado de um titã da cultura popular como Elvis está a salvo do esquecimento que o tempo reserva a todas as coisas. Durante sua vida atribulada, Elvis teve sua morte simbólica anunciada muitas vezes: quando deixou a gravadora independente Sun pela poderosa RCA, quando cantou “Hound Dog” para um cachorro no programa de TV de Steve Allen, quando foi para o exército, quando a mãe dele morreu, quando, nos anos sessenta, trocou as apresentações ao vivo por uma longa série de filmes de cinema anódinos, quando lançou dezenas de álbuns irregulares ou francamente ruins também nos anos sessenta, quando foi suplantado nas paradas de sucessos pelos Beatles, quando começou a cantar em Las Vegas, quando começou a usar aqueles extravagantes macacões brancos em seus shows, quando apoiou Richard Nixon, quando isolou-se em Graceland, sua mansão, e perdeu o contato com o mundo, quando cercou-se de aproveitadores, quando envelheceu e deixou de ser um galã. Depois da morte física de Elvis em agosto de 1977, a família do cantor criou uma empresa para gerir a “marca”. A imagem e a música de Elvis foram usadas não só para vender discos e filmes, mas também badulaques de todos os tipos. A “morte” de Elvis que o artigo do The Guardian comenta não é só a do mito, mas a da “marca”.

O resultado de uma pesquisa recente sobre música popular feita na Inglaterra, que ouviu dois mil e trinta e quatro adultos, é citado no artigo do The Guardian. Cerca de trinta por cento dos entrevistados cujas idades variam entre os 18 e os 24 anos nunca tinham ouvido falar em Elvis Presley. Isso tem a ver não só com a presença decrescente da música e da imagem de Elvis nos veículos de comunicação de massa, mas também com a falta de interesse das “pessoas comuns” pela história da música popular — ou pela História, com H maiúsculo, mesmo com a internet à disposição (a indiferença pela História explica a ascensão da extrema direita em todo o mundo). As pessoas mais jovens ouvidas pela enquete que disseram conhecer Elvis declararam preferir os Beatles e David Bowie a ele. Segundo a pesquisa, o apreço à figura de Elvis aumenta à medida que aumenta a idade dos entrevistados. A música popular tem, por natureza, uma ligação intrínseca com a época em que foi feita e com o público-alvo a que foi originalmente destinada. Não contesto o resultado da sondagem, mas quero observar que ele certamente seria um pouco mais favorável ao Elvis se os participantes fossem norte-americanos e não ingleses. É justo supor que o norte-americano médio tenha mais afinidade com o legado de Elvis, um filho do sul dos Estados Unidos, do que os súditos da rainha Elizabeth II. De todo modo, o envelhecimento do núcleo duro de fãs de Elvis no mundo todo pode ser comprovado empiricamente.

O artigo do The Guardian compara negativamente os trezentos e oitenta e dois milhões de acessos a gravações de Elvis pelo Spotify em 2016 com os mais de seiscentos milhões de acessos a registros de Bowie e de Michael Jackson pelo mesmo serviço (os Beatles, segundo a reportagem, superaram a casa do bilhão de streamings). A comparação negativa, ainda que factual, é injusta, pois Elvis começou a gravar em meados dos anos cinquenta e faleceu em 1977, ou seja, iniciou e terminou a carreira artística bem antes dos concorrentes citados. A morte de Michael Jackson é relativamente recente e a de Bowie é muito recente. É razoável crer que daqui a quarenta anos a fama desses dois ídolos também vai se esfarelar. Para um cantor que morreu há quarenta anos e que não está presente na mídia como no passado, os mais de trezentos milhões de acessos pelo Spotify são uma indicação sólida de que há muita gente por aí disposta a ouvir as gravações de Elvis.

Uma ofensa à memória de Elvis é o comentário de David Hesmondhalgh, professor de música da Universidade de Leeds, incluído no artigo do jornal inglês. Diz o professor: “Se você perguntar a uma criança pequena sobre Elvis, o fato de que o cantor morreu sentado no vaso sanitário por comer demais ou de que ele vestia roupas ridículas é tudo o que essa criança vai registrar. A música ficou menos importante que a caricatura. A imagem de Elvis foi rebaixada”. A fala do professor joga a responsabilidade da imagem aviltada de Elvis sobre o próprio cantor. É justo? É importante lembrar que Elvis teve muitas imagens ao longo da carreira, algumas mais elegantes que outras. Quando relembra Michael Jackson, a mídia geralmente destaca a imagem dele do final dos anos setenta e do início dos oitenta, época em que ele estava no auge da popularidade e ainda não havia desfigurado a si mesmo por meio de uma série de cirurgias plásticas. Elvis é tratado com a mesma consideração pela mídia? As pessoas que trabalham nos grandes veículos de comunicação talvez não tenham desenvolvido (por razões geracionais) uma ligação afetiva com o legado de Elvis. Uma coisa é certa: o responsável pela caricatura não é o caricaturado, é o caricaturista.

Também acho difícil de acreditar que a maioria das pessoas (ainda mais uma criança) conheça detalhes sobre a morte do Elvis, que foi trágica e não merece ser alvo de chacotas de nenhum tipo. Há na observação do professor um evidente preconceito que se disfarça como análise factual. Quando morreu aos quarenta e dois anos de idade, Elvis era um homem física e psicologicamente destruído, incapaz de dormir e de abandonar seus vícios. Elvis teve a saúde (física e mental) abalada pelas demandas da carreira. O cantor era uma máquina de fazer dinheiro para muita gente, principalmente para o empresário dele, o coronel Parker, o paradigma dos empresários vampiros que tiram tudo dos seus clientes sem olhar para as verdadeiras necessidades deles com atenção e carinho. Elvis era um homem de origem humilde que só queria ser cantor e ator e não tinha interesse em gerenciar a própria carreira. Roqueiros de gerações posteriores perceberam o mal que os processos de espoliação próprios do show business fizeram a artistas como Elvis e lutaram para conquistar independência artística e financeira. Para sair do ciclo de filmes e discos indistintos que fez nos anos sessenta e renovar sua imagem, sua música e sua carreira em 1968, Elvis teve que desafiar o coronel Parker. Foi talvez o último momento significativo de inconformidade protagonizado por um homem que, nos anos cinquenta, tornou-se um símbolo internacional de rebeldia.

O professor Hesmondhalgh observa também que “Elvis era um excelente artista de compactos. Ele emergiu antes da formação da cultura do rock como a conhecemos, por isso ele não é contemplado pela mitologia do álbum de rock. Elvis não tem nada parecido com um “Sgt. Pepper” para que pessoas jovens possam se conectar a ele”. É um bestialógico dizer que Elvis não tem um álbum digno de admiração além das coletâneas de singles. Os dois primeiros LPs do cantor, Elvis Presley e Elvis, contam com a participação do guitarrista Scotty Moore e do baixista Bill Black, companheiros de Elvis desde as primeiras gravações para o selo Sun, são basilares para a história do rock’n’roll e ainda são eletrizantes hoje, sessenta e um anos depois de terem sido publicados pela primeira vez pela RCA. O LP que Elvis lançou logo depois que saiu do exército em 1960, Elvis is Back!, também é clássico, assim como outro álbum publicado no mesmo ano, His Hand in Mine, totalmente dedicado ao repertório gospel. De 1961 a 1968, a RCA lançou em LP quatorze (!) trilhas sonoras dos filmes estrelados por Elvis, quase todas esquecíveis, algumas francamente constrangedoras, poucas com faixas redentoras. A trilha sonora que redimiu Elvis junto ao público e aos críticos foi a do especial de TV da rede NBC (que ficou conhecido como “Comeback Special”), publicada em dezembro de 1968. Em 1969, o cantor mostrou que a volta era mesmo para valer com From Elvis in Memphis, álbum produzido por Chips Moman e gravado com alguns dos melhores músicos da cidade de Memphis (as linhas de baixo desse disco são espetaculares). A calorosa sonoridade que funde soul, gospel, rock’n’roll e country e as canções de altíssimo nível fazem de From Elvis in Memphis um álbum antológico não só para fãs de Elvis, mas para todo e qualquer apreciador de música popular. É, sem exagero, uma obra-prima. Certo, o cantor não produziu nenhum álbum conceitual como fizeram os Beatles, os Beach Boys e outros nomes da cena musical popular anglo-saxã dos anos sessenta, mas quem disse que álbuns conceituais são a priori melhores do que os regulares? Se Elvis “não é contemplado pela mitologia do álbum de rock”, então é hora de rever essa mitologia.

Outro acadêmico referido pelo artigo, William Kaufman, professor de literatura e de cultura americanas na Universidade de Central Lancashire, fala de coisas mais sérias: das acusações de apropriação cultural e de racismo dirigidas a Elvis. “Você pode dizer que os Beatles roubaram a música de Chuck Berry ou que os Rolling Stones saquearam Howlin’ Wolf, mas essas alegações não são tão presentes como as que pesam contra Elvis. “Hound Dog” foi escrita por dois homens brancos, mas mesmo assim Elvis é acusado de ter “branqueado” a cultura negra.” A apropriação cultural feita pelo rock’n’roll é um fato. As primeiras gravações de rock’n’roll têm sonoridade idêntica à do rhythm & blues da época. O nome rock’n’roll teria sido inventado pelo DJ Alan Freed para reempacotar o R&B negro para o público branco. O gesto de apropriação cultural favoreceu Elvis: de todos os artistas pioneiros do rock’n’roll, o cantor foi o que ficou mais rico e mais famoso. Os afro-americanos Little Richard e Chuck Berry, dois nomes tão fundamentais para a história do rock’n’roll e do rock como Elvis, não fizeram tanto dinheiro como o cantor nascido na cidade de Tupelo, no Mississippi. Por ser branco, Elvis teve acesso a palcos e a mídias que segregavam artistas negros. Nos anos sessenta, os artistas negros da primeira geração do rock ficaram circunscritos ao circuito de shows de nostalgia nos EUA e na Europa enquanto Elvis tinha seus filmes lançados em todo o mundo.

Assim como Elvis, todos os artistas brancos de rock, ricos, famosos, fracassados ou anônimos, tiraram proveito da apropriação cultural: além dos já citados Beatles e Stones, podemos mencionar Led Zeppelin (o grupo de Page e Plant teve a capacidade de copiar canções de artistas negros de blues sem dar a eles o devido crédito de composição, um gesto francamente mesquinho, para dizer o mínimo), Eric Clapton, Rod Stewart, David Bowie (lembrem-se de Young Americans, o álbum de “plastic soul” que Bowie disse ter gravado “com os melhores artistas negros que o meu dinheiro pode comprar”) e David Byrne (que “adaptou” ritmos africanos em discos dos Talking Heads e em seus álbuns solo). Mesmo os artistas brancos que não fazem black music, como o pessoal do heavy metal e do punk, foram favorecidos pela apropriação da música negra na origem do rock’n’roll, pois não existiria “cultura do rock” sem esse roubo. O surgimento do hip hop, que é hoje o gênero musical dominante nos EUA, e a crise de criatividade do rock, que vive de revivals e de exercícios de estilo há mais de uma década, fez com que artistas negros como Kanye West, Dr. Dre e Beyoncé se tornassem multimilionários e influentes como eram/são os roqueiros mais destacados dos anos sessenta, setenta e oitenta.

Em defesa de Elvis, o “homem branco que cantava música negra de modo plausível”, Greil Marcus, crítico de rock, diz no livro Mystery Train — Images of America in Rock ‘n’ Roll Music: “O que liga a música deles [cantores brancos de blues, Elvis entre eles] ao blues é o compromisso absoluto com o material … eles foram atraídos para a cultura de outro grupo humano de um modo que não pode ser negado”. Em outras palavras, foi a paixão genuína de Elvis pela música negra que fez com ele quisesse cantá-la. Marcus afirma que, para Elvis, “o blues era um estilo de liberdade, algo que ele não podia ter em seu próprio ambiente, cheio de papéis a desempenhar e de regras a quebrar”. É a apropriação vista de dentro para fora, não a partir das consequências, mas da (possível) causa. Essa perspectiva pode ser considerada, mas o assenhoreamento da cultura de um grupo social por membros de outro grupo é condenável quando aqueles que tomam posse estão em posição privilegiada na escala social em relação aos que têm sua cultura emulada/saqueada. Sabemos bem que a cultura brasileira é fruto da subjugação cruel de índios e negros exercida por europeus e por seus descendentes brancos. Vivemos a cultura brasileira, ela nos define hoje, mas não devemos esquecer que ela tem origem na violência que submeteu e ainda submete os dominados aos caprichos dos dominadores. O mesmo ocorre com o rock’n’roll e com o rock: podemos vivê-los, mas não devemos perder de vista a apropriação cultural que deu origem a eles.

Sobre as acusações de racismo dirigidas a Elvis: elas são antigas e, claro, polêmicas. Declarações racistas atribuídas ao cantor nos anos cinquenta já foram reproduzidas e desmentidas inúmeras vezes. Em texto publicado no jornal The New York Times em agosto de 2007, Peter Guralnick, historiador e crítico de música, autor de biografias de referência sobre Elvis, fala do boato que circula há décadas pela comunidade negra norte-americana: “Elvis teria dito, em um evento em Boston ou no programa de televisão “Person to Person” de Edward R. Murrow: “A única coisa que os negros podem fazer por mim é comprar os meus discos e engraxar os meus sapatos”. O fato de que Elvis nunca apareceu em Boston [à época de tal declaração] ou no programa de Murrow não foi suficiente para abater o rumor. Em junho de 1957, Elvis falou sobre o assunto em uma entrevista para a revista semanal Jet [dirigida ao público afro-americano]… Todos que o conheciam, disse Elvis ao repórter Louie Robinson, sabiam que ele jamais poderia ter dito tais palavras”. Em outro trecho do texto, Guralnick diz que Elvis sempre reconheceu a influência que recebeu de artistas negros, em especial do cantor e compositor de blues Arthur “Big Boy” Crudup. Guralnick prossegue em sua defesa de Elvis: “”Vamos encarar os fatos”, disse Elvis sobre suas influências de rhythm & blues, “Ninguém pode cantar esse tipo de música como os negros. Eu não posso cantar como Fats Domino, eu sei disso”… Quando um repórter referiu-se a ele como “rei do rock’n’roll” em uma conferência de imprensa [em 1969], Elvis rejeitou o título, como sempre fazia, e chamou a atenção de todos para a presença na sala do seu amigo Fats Domino, “Uma das minhas primeiras influências””. Que eu saiba, não há evidência histórica de que Elvis tenha cometido ato racista ou feito declarações desse tipo. A acusação de racismo dirigida a ele tem origem na apropriação cultural e nas régias recompensas que ele recebeu por cantar música negra, acusação que pode ser estendida a todos os artistas brancos de rock (como vimos antes). Talvez a pecha de “racista” tenha grudado em Elvis com mais força do que em outros artistas porque ele encarna, de acordo com a história oficial (que precisa ser reescrita), a origem do rock’n’roll.

All things must pass“, disse o sábio George Harrison nos anos setenta. Preparando-se para encarar o próprio fim, Macbeth diz, na Cena V do Quinto Ato da peça escrita por Shakespeare: “A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco — faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz”. Mesmo que o artigo do The Guardian force a barra na descrição da queda de popularidade de Elvis Presley, o destino do legado do cantor é o mesmo de todos nós: o esquecimento. Mais cedo ou mais tarde, ele alcançará a todos. Devemos fazer o que estiver ao nosso alcance para retardar a desmemória que a tudo apaga.

Link para o artigo do The Guardian: https://www.theguardian.com/music/2017/may/16/millennials-elvis-presley-legacy

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zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.


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