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25 de setembro de 2017
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17:43

Regimes Alimentares: guerra assimétrica contra a comida de verdade

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Sul 21
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Na imagem, agricultora do Programa de Aquisição da Produção da Agricultura no Distrito Federal. |Foto: Pedro Ventura/ Agência Brasília

Por Marcelo Leal e Raul Krauser, da Via Campesina

Entre a chef de cozinha Roberta Sudbrack que teve mais de uma centena de quilos de alimentos artesanais apreendidos pela Anvisa e as camponesas do Brasil que levam seus queijos escondidos em bolsas para vender na cidade há mais coisas que nossa vã filosofia possa imaginar.

A ação dos fiscais da Anvisa causou grande indignação e repercutiu instantaneamente nos meios de comunicação e mídias sociais. Igual indignação para nós, entretanto, não nos causou espanto. Operações como esta, e em sua maioria carregada de força policial junto às famílias, pequenas agroindústrias, feiras e mercados populares de alimentos fazem parte do cotidiano do campesinato brasileiro.

O que existe é uma violência estrutural contra o campesinato, contra a produção artesanal oriundas destes. É o campesinato que produz em diversidade e qualidade a comida boa que vai à mesa do povo brasileiro.

Sob o pretexto de segurança sanitária, o que existe é o velamento de verdadeira guerra assimétrica entre dois regimes alimentares: a indústria de alimentos ultraprocessados contra os alimentos de tipo camponês, artesanal ou minimante agroindustrializados, dinamizador de economias locais e com fortes vínculos com a cultura nacional.

Na medida em que o alimento foi definitivamente incorporado no circuito de valorização do capital, e a indústria do alimento ultrapassou a do petróleo no que tange a produção de riqueza os estratagemas para eliminar a produção camponesa de alimentos ampliou-se e se sofisticou.

Sumariamente operam em vários níveis:

Um primeiro é o clássico impedimento do acesso à terra, aos recursos naturais, e à política agrícola – infraestruturas de produção, processamento, armazenagem e comercialização – pelas famílias camponesas.

Um segundo é o bloqueio dos mercados – de venda direta ou institucionais dirigidos pelo Estado – às economias camponesas, sejam elas familiares ou associativas e cooperativadas.

Em terceiro é o domínio das políticas de Estado no que tange o complexo agricultura-alimentação-saúde: atuam em múltiplas variáveis, desde a política agrícola às leis e marcos regulatórios. Este complexo financia campanhas políticas, indica e destitui ministros e como demonstra os últimos escândalos operam com alto grau de corrupção.

Por último, a bioprogramação da população, principalmente das crianças: é o nível mais sofisticado, atua substituindo a alimentação da população através de alimentos que constituem a base da dieta alimentar nacional, como arroz, feijão, carne, salada entre outros, pelos industriais e ultraprocessados. Esta substituição impacta diretamente na memória alimentar e na alteração metabólica dos indivíduos. A propaganda dos fast food e junk food, a estruturação de redes de comercialização e venda de porta em porta nos rincões do Brasil são aspectos desta forma de ação.

A memória alimentar é decisiva nas escolhas alimentares. Os alimentos naturais que remetiam ao aconchego da mãe e da casa vovó vão perdendo espaço para o McDonald´s e os açucarados produtos da Nestle.

É uma estratégia centrada no lucro, seus objetivos são destruir a produção camponesa para fazer reserva de mercado para as grandes agroindústrias; destruir a base social da produção diversificada e permitir a produção artesanal para nichos de mercados, com elevadíssimo preço, ou seja, para uma pequena elite poder saborear a comida de qualidade; e transformar as próprias famílias camponesas em consumidoras dos alimentos da indústria alimentar.

É quase utópico, diante do quadro político nacional, falar de um novo marco regulatório para a produção camponesa. Uma política com foco na qualidade do produto e não na infraestrutura – prédios, máquinas e caminhões –.

A legislação sanitária, é ela própria, um mecanismo espoliador da produção camponesa e impõe o modelo industrial na alimentação.

A produção camponesa de que se fala é o mesmo alimento que essas famílias consomem. É uma forma de produção secular no Brasil, muitas receitas, inclusive, são milenares oriundas da culinária indígena, africana e europeia. A indústria de alimentos é nova, e carrega consigo inúmeros escândalos, desde campanhas de substituição de leite materno pelo leite em pó até os recentes escândalos envolvendo água oxigenada/soda/álcool no leite e carne adulterada.

A predileção por estes alimentos por parte de renomados chefs de cozinha de todo o Brasil não é apenas uma tendência, mas um atestado da qualidade dos produtos. Motivo de orgulho para os camponeses que labutam remando contra a maré.

A indústria alimentar padroniza alimentação e empobrece a experiência culinária, porém mais que isso, ameaça diretamente a Soberania Alimentar do país. Produz numa face a fome e na outra a obesidade e a subnutrição.

O campesinato e suas expressões organizativas, estes teimosos que defendem a Agroecologia, a Soberania Alimentar e a comida de verdade podem fazer pouco, além de resistir, sem o apoio da sociedade urbana.

É uma guerra assimétrica entre os regimes alimentares: um tem riqueza e poder e o outro não. A junção de chefs de cozinha com movimentos sociais ligados à agricultura-alimentação-saúde representa uma possibilidade de fortalecer a luta para reverter o quadro.

A oportunidade existe e a convocação está feita.

***

Marcelo Leal e Raul Krauser são Militantes do Movimento dos Pequenos Agricultores/Via Campesina.


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