Opinião
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9 de maio de 2024
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08:43

Amanhã vai ser outro dia (por Roger Flores Ceccon)

Resgate dos moradores dos bairros Humaitá e Sarandi no Viaduto José Eduardo Utzig, zona norte de Porto Alegre. Foto: Giulian Serafim/PMPA
Resgate dos moradores dos bairros Humaitá e Sarandi no Viaduto José Eduardo Utzig, zona norte de Porto Alegre. Foto: Giulian Serafim/PMPA

Roger Flores Ceccon (*)

Escrevo tomado de tristeza. A aflição é abissal diante da tragédia que açoita o Rio Grande do Sul e atinge cidades do interior, do planalto médio às missões, e a capital Porto Alegre. São mais de 400 municípios atingidos. Tudo absolutamente violento: a força das chuvas, os alagamentos, as perdas, os perigos, os desaparecidos, os choros, as mortes. Tudo é trágico.

As narrativas contadas por aqueles que sofrem apontam um apocalipse e retratam os detalhes de uma das maiores catástrofes brasileiras. Cidades inteiras foram dizimadas. Vivemos a fase apocalíptica do capitalismo, como profetizou Rita Segato [1]. As histórias são marcadas por enredos cruéis: corpos de pessoas mortas boiando nas ruas; familiares que morreram afogados encurralados em casa; falta de comida e de água; animais com olhares tristes ilhados no meio do nada; escuridão; pessoas presas nos telhados das casas; devastação; rio subindo e subindo. Narrativas semelhantes aos enredos criativos de García Márquez, ou do Cortázar, ou do Borges. Realismo mágico, fantasia, ficção, literatura. Mas não. É vida real, nua.

Histórias, também, de solidariedade. Inúmeras, incontáveis. De gente de todos os lados: em barcos, botes, pranchas, navios, helicópteros e caminhões. Organizando doações, distribuindo comidas, roupas, águas, colchões, barracas, absorventes e fraldas. Atendendo, acolhendo, conversando. A coletividade na mais alta potência. Redes de afeto.

O prefeito ordena que a população evacue a cidade. O muro da Mauá não suportou. O dique da Zona Norte rompeu. A leptospirose. Economizem água. Faltam colchões. Vai ter um novo temporal. O alojamento está lotado. A dengue. O governador trocou a foto do facebook. A Madona canta em Copacabana. 

Muitas perguntas vêm à tona: por que não foi feito nada preventivamente? Houve alertas meteorológicos? Estes alertas não foram respeitados? Onde estava o poder público? Quanto foi investido? De quem é a responsabilidade? 

Parece inconcebível essa tragédia, pela proporção, cujo fenômeno atingiu profundamente a subjetividade, a renda, o emprego, os direitos humanos, a segurança, a saúde e a vida de milhões de pessoas, deixando 163 mil desabrigados e 64 mil desalojados até o momento, centenas de mortos e enlutados, especialmente pessoas negras e pobres, consequência do racismo ambiental que historicamente estrutura a sociedade que vivemos. Estes, provavelmente, terão mais dificuldades para se reerguer. São pessoas sem casa, comida, dignidade. E mais, é inconcebível o Estado não ter planos de ação em desastres ou estratégias diante de uma catástrofe que já era anunciada. Tudo isso em pleno século XXI, o tempo das tecnologias. 

Ou melhor, é concebível. Nos últimos anos, elegemos governantes em todas as esferas do poder político que menosprezam o meio ambiente, minimizam o problema da emissão de gás carbônico, da seca, do efeito estufa, das queimadas, da poluição, das enchentes, da produção e coleta de lixos, do saneamento básico, do desmatamento. Uma política pautada pelo discurso ideológico do “Estado mínimo”, que na prática se mostra inoperante, ineficaz, permeado pelo negacionismo ambiental, que refuta a vida humana, animal e vegetal. Um negacionismo ao planeta. O capitalismo nos faz acreditar que somos donos dos recursos naturais, da terra e do céu, da água e do ar, e que podemos usurpa-los, destruí-los, compra-los, vende-los. O lucro. Sempre o lucro. A conta da extração desenfreada de recursos naturais chegou. E ela é caríssima.

Ailton Krenak e Davi Kopenawa, filósofos indígenas brasileiros, avisaram: ou a humanidade muda radicalmente, ou acaba. Rompemos com a forma espoliativa de nos relacionarmos com a Terra, permeada pelo capitalismo e pelo neoliberalismo predatório, ou será extinta a espécie homo sapiens. Será como um estalar dos dedos. 

Vivemos o antropoceno, período histórico caracterizado por atividades humanas que impactam globalmente o clima da Terra e o funcionamento dos ecossistemas. Também estamos inseridos no capitaloceno, marcado pelo capitalismo devastador, voraz, genocida. É mais fácil imaginarmos o fim da humanidade do que o fim do capitalismo. Novamente Krenak. 

Os asfaltos e os prédios arranha-céus tomam conta das grandes cidades, e no interior a paisagem é dominada pelo agronegócio, que há anos desmata para prover milhares de hectares de plantação de soja e de trigo, cuja terra é tomada por venenos e defensivos agrícolas. Muito disso (R$ 22 bilhões) vai pra China, exportado, e poucas pessoas enchem a conta bancária com milhões e milhões de dólares.

Para reerguer-se da tragédia que nos foi imposta, é necessário reconstituir refúgios e tornar possível uma robusta recuperação e recomposição biológica-cultural-política-material, que deve incluir o luto pelas perdas irreversíveis, como aponta Donna Haraway [2]. Apesar da tragédia, o Rio Grande do Sul se reerguerá, porque é preciso segurar o céu que está caindo. Com dores e traumas, memórias permeadas pelas perdas, lutas e lutos, mas na esperança de dias melhores. Acredito na resistência e na potência criativa da solidariedade. Do afeto. Amanhã vai ser outro dia. 

Referências

  1. Segato, R. L. Las estructuras elementales de la violencia: Ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes/ Prometeo, 2003.
  2. Haraway, D. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cultura Científica – pesquisa, jornalismo e arte, n. 5, p: 139-146, 2016.

(*) Professor da Universidade Federal de Santa Catarina

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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