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18 de dezembro de 2020
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21:10

O ‘chamado selvagem’ de Bolsonaro: a vida é aprender a matar

Por
Sul 21
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O ‘chamado selvagem’ de Bolsonaro: a vida é aprender a matar
O ‘chamado selvagem’ de Bolsonaro: a vida é aprender a matar
Jair Bolsonaro. Foto: Reprodução/Instagram

Tarso Genro (*)

Reli esta semana o glorioso final de “O chamado da Selva” de Jack London, edição bilíngue com a preciosa tradução de Gentil Saraiva Jr., que me enviou o livro com uma simples e comovente dedicatória: “Para Tarso Genro, defensor dos trabalhadores, um forte abraço de Gentil Saraiva Jr.” Montaigne compreendeu por inteiro a sentença de Cícero de que filosofar é aprender a morrer, mas Bolsonaro assimilou a lição com outra versão: viver é, a partir da naturalização do delito, aprender a matar.

Receber uma dedicatória como essa em tempos de naturalização de políticas necrófilas, de ódio remunerado fluindo pelas redes – tempos em que a República não mais consegue conter os demônios em obscuros inconscientes – é um sopro do repto moral que funda, hoje, a ideia de que “ninguém larga (ou deve largar) a mão de ninguém”.

Confesso que busquei na leitura de London uma reciclagem no meu primitivo inglês, ossificado para sempre pela falta de exercício. Não cumpri o meu intento, mas encontrei, todavia, o caminho para este texto semanal que revive o essencial nos debates sobre cultura e política, que travei ao longo da vida: não haverá civilidade democrática sem Estado Social, não funcionará o Estado Social (seja ele de que tipo for) sem que este  – dentro ou fora do sistema do capital – dê respostas fundadas às necessidades concretas das classes trabalhadoras, com ideias que partam das experiências e da produção ideológica dos socialistas de todos os tempos.

Na sua novela, London “entra” na cabeça do cão-lobo, Buck, com a subjetividade do seu personagem central (Thornton) e faz – a partir do relacionamento entre a comunidade garimpeira dos confins do Alaska e a vida selvagem – uma cogitação sobre a razão humana. Assim, Buck-Thornton, retratam as necessidades naturais do instinto animal como linha de sobrevivência e – igualmente – tomam-na uma “ética da naturalidade”, superior àquela construída pela cultura da “ética de responsabilidade”.

Neste olhar sobre a disputa pela vida num mundo distante do nosso, a observação da vida e das suas necessidades – observa Thornton – está muito próxima da sua verdade no “laissez faire” do capitalismo americano, ali na sua fase ascendente. Neste, os homens disputavam, com as técnicas de subjugação da natureza, o poder sobre a naturalidade e também, de forma ainda mais intensa e violenta, o poder sobre os próprios homens para explorar a natureza de forma mais eficiente.

Vejamos o magnífico texto de London que mudou o sentido da minha releitura e gerou este artigo: Jack London relata que, quando o cão-lobo se encontra com a sua origem selvagem, ele volta à natureza com aquela “paciência da selva-obstinada incansável, persistente como a própria vida – que mantém imóvel por horas sem fim – a aranha em sua teia, a cobra em seu enrosco, a pantera em sua emboscada; esta paciência pertence peculiarmente à vida quando ela caça seu elemento vivo…”.

O instinto não tem ética, mas o Homem -como ser ético- pode substituir suas categorias morais pelo instinto e pela força, quando precisa dominar os outros seres humanos fora das regras que ele mesmo criou. Nesta hipótese ele usa a seleção natural comandada pela força , ao mesmo tempo que transforma as leis biológicas que regem o instinto em normas supostamente éticas, cuja legitimação se dá não por argumentos verificáveis, mas pelo próprio movimento forçado.

O que impressiona no texto de London é que ele reproduz a partir da vida animal,  alianças de sobrevivência política que ocorrem “naturalmente” entre os humanos, nos períodos de relações instáveis entre eles, sem perder o rumo da sua novela, na qual as leis naturais – parece dizer London – são
superiores à razão universal, quando os humanos são colocados nos seus limites para adquirir poder e dinheiro.

O dogma kantiano de não fazer do “outro” mero instrumento para satisfazer desejos ou necessidades perde o sentido, quando a necessidade a ser satisfeita só pode ser resolvida pela violência.

Negar-se à vacinação e também promover o negacionismo, por exemplo, é pura animalidade instintiva, que não preserva nenhuma racionalidade moral, construída na história imemorial da comunidade humana, porque extingue – sem mediações – a necessidade de conviver e respeitar o “próximo”!

Quando Buck vai assumir a liderança da matilha de lobos, o “líder” que vai ser deslocado – sentindo-se inferior na luta física que vai ter que travar – vê que não há nenhuma “intenção” danosa em Buck. Em seguida eles se tornam amistosos e brincam “de maneira raivosa e meio esquiva, com a qual as feras bravias ocultam a sua selvageria. Após algum tempo no impasse, o lobo começou a trotar levemente, de uma maneira que claramente mostrava que ele estava indo a algum lugar.”

A teleologia (finalidade) desta composição entre os animais é dada pelo instinto, transmitido por cadeias biológicas de adaptação do grupo, que não tem consciência das suas finalidades. Entre os humanos, nos processos políticos este instinto animal do grupo é transformado em consciência para sobreviver, quando entre a comunidade política é usado o instinto de sobrevivência como elemento vital do controle de um grupo sobre outro.

Bolsonaro, que naturalizou o crime no poder, com o negacionismo manipula o instinto de sobrevivência dos ignorantes;  com a promessa das reformas, que não tem interesse em fazer, domina as hostes reformistas que as saúdam no seu inconsciente como uma espécie de eugenia social entre os pobres; com o culto da morte e das armas, como políticas de Estado, Bolsonaro frequenta o inconsciente selvagem -de vida-ou-morte- das pugnas sem leis na sociedade primitiva. Com o chamamento que “todo o mundo vai morrer” Bolsonaro faz o culto dos sacrifícios tribais nas sociedade arcaicas, nas quais seus Sumos Sacerdotes penhoravam vidas humanas para aplacar a natureza em fúria. Chegamos ao nosso destino?

Que nossos próximos passos na vida não sejam ver os nossos filhos e netos aprenderem a matar!

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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