Colunas>Raul Ellwanger
|
7 de julho de 2017
|
10:00

Canções de compromisso: Quero te ver, liberdade

Por
Sul 21
[email protected]
Canções de compromisso: Quero te ver, liberdade
Canções de compromisso: Quero te ver, liberdade

Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)

Após retornar do exílio, fiz umas apresentações sem muita repercussão em festivais nativistas do Rio Grande do Sul. Ouvi então falar do Musicanto Latinoamericano. Seria ainda no sistema de que não gostava, a competição, mas com estilo livre, com temática aberta e sem patrulhas ideológicas como a maioria dos demais festivais, o que se manifestava também na grade de xous.

Mandei para a cidade missioneira de Santa Rosa uma milonga bem estilizada, dentro do que se costuma chamar projeção folclórica, cujos versos tocavam vários temas a partir de uma ótica popular e nacional. Com Chico Alves, Clemar Guglielmi, Chaloy Jara e Canela fizemos uma apresentação muito convincente e ficamos entre as doze canções incluídas no disco finalista. Nos corredores, ouvi algumas provocações e bobagens, incluída uma espécie de cerco físico em que alguns músicos (!) me apertaram contra um automóvel (o prêmio maior), em pleno saguão do evento. O motivo? Sim, o motivo era a letra da milonga. Ou o olho esticado para o automóvel…

Considerando que estávamos em ditadura, a letra teve seu atrevimento. Querer a liberdade como senhora do país, dizer que ela é um perigo, pois brilha no escuro e é um sinuelo, falar de fábricas e favelas, da imolação do presidente Allende, com certeza fugia do conteúdo corriqueiro daquelas competições.

Também a cadência progressiva que ordena a segunda parte, em harmonias de tonalidades em saltos de quartas, foi um aporte bonito; assim também o preparo das progressões com acordes de quinta diminuída no baixo. Para completar, um dos violões na parte B tem levada de bossa nova!

Algumas outras canções também se aventuraram na direção do que na Argentina se chama proyección folclórica, o que deu ao Musicanto um belo perfil de atualidade e americanismo. O tema vencedor, Da terra nada guarani, de Nelson Coelho de Castro, marcou uma nova fase na música regional (MPG), seja pela letra ou pela música, seja pelo uso do bombo leguero nas mãos de De Santana, seja pela interpretação personalíssima de Berê. Assim, o cobiçado carro ficou em boas mãos… ou em boas mesas de bar!

Pessoalmente, pude conhecer muitos músicos de diversas latitudes, fazer novos amigos como os Casagrande e os Brunelli, pude descobrir Santa Rosa e pude conhecer familiares queridos, como os Moura Franco, de Cruzeiro, ou os Ellwanger, da sede municipal. Alguns anos depois, fui convidado para fazer o xou de encerramento de um Musicanto e foi um momento memorável para mim, para os músicos e para o público.

Quero te ver, liberdade

Raul Ellwanger

Quero te ver, liberdade
Cantar na minha janela
Depois varar a cancela
Espalhar pela pampa tua manta de cores
Quero te ver liberdade
Senhora deste país
Com teu império de flores
Teu leito de amores, teu jeito feliz

Te desfrutar liberdade
No prato de cada dia
Feito piá e guria
No calor do pelego um pealo de amor
Quero guardar-te no abrigo
Das fábricas e favelas
Que a liberdade é um perigo
É a luz de uma vela no escuro a brilhar

Tomar do seio mulato
Da cuia do chimarrão
Num ato livre e eterno
Que o tempo moderno não trocou de mão
No pala dos teus cabelos
Na pele de cada bicho
No palácio e no hospício
Na prisão e no bolicho
Onde um borracho emborcou.

Largo poncho americano
Que incendeia o horizonte
No céu mais claro dos Andes
Que o sangue de Allende santificou
Milonga pega parelho
Pra eu não ficar escoteiro
Que a liberdade é um sinuelo
É a luz que o luzeiro em mim falquejou.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora