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24 de junho de 2017
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10:00

Canções de compromisso: Aventureiro

Por
Sul 21
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Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)

Tem certas poesias e canções cujos textos nos dão um tal encantamento que temos vontade de tê-las feito, tipo “tu não me sais da lembrança, meu coração não se cansa de sempre, sempre te amar” (As pastorinhas, de Noel Rosa e Braguinha).

Este mesmo encantamento tinha me ocorrido quando, em Buenos Aires, li de uma sentada a antologia de Raul González Tuñón, naqueles livrinhos baratos de papel pardo da Editorial Eudeba. Como sobravam algumas páginas ao final do livro, fui anotando as maravilhas que pipocavam à minha vista, a poesia, a doçura, o frescor que tem aquele Tuñón – “a saludar la cofradía / trota calle y trotamundos / todo nos pasa en el mundo / todo menos la alegría”. Ele tem ali poemas escritos em Santos, onde andou vagabundeando na juventude, amando as meninas do cais, ouvindo o samba dos estivadores, tomando todas e fumando alguns, como aconteceu também aos espertos Pablo Neruda, futuro diplomata namorador na Birmânia, e Ho-Chi-Min, marinheiro ali mesmo em Santos. Se vê que o ar marinho faz bem aos poetas e sonhadores em geral.

Afanadas por mim as palavras, foi-se armando a letra de Aventureiro, onde identifico um certo retrato de meu irmão Roberto, sempre às voltas com barcos, mariscos, viagens, sonhos, amores e perdas.  Gosto de “coração lenha seca de soluços”, “aos suspiros e aos pedaços pelas docas”, “tripulantes d’aguardente da aventura”, “dedos lavradores de horizontes”, “migrante de um outubro liberado”, “punhal da solidão nos tocaiando”.  Cacilda! Gracias, Don Raul Gonzalez!

Na repetição do refrão,  se faz uma troca até uma oitava mais aguda, como para poder gritar a palavra “aventureiro”. A parte B tem um começo melódico e harmônico algo vacilante, reiterativo sobre quatro longos versos, para então engrenar numa cadência modulante cheia de dinamismo que leva dois versos finais quase como exclamações de medo e desejo, como o punhal tocaiando e o eterno singrar do mar infinito.

Tuñón, que combateu pela Espanha republicana e foi tribuno de eventos internacionais da cultura, poeta cuja fina alegria destoava da mufa porteña, talvez devido a seus precoces bordejos tropicais, decerto também ficará feliz lá nas altas paragens onde repousa, ao ter sido “garfado” por uma boa causa.

Passando a régua: mas que baita quantidade de porto, fuga, perda, cais, ida, nave, asa, vento, vela, horizonte! “Quem sabe o que isto quer dizer, eu não sei, mas foi comigo” (Dobrada à moda do Porto, Fernando Pessoa). Perguntarei aos dois Abraões, meus amigos “psicões”.

Aventureiro

Raul Ellwanger

Aventureiro, cabelos largos ao vento
Aventureiro, cabelos largos ao vento

Sempre que viajo levo nos olhos
Pecados, silêncios, despedidas
Zarpar campereando a liberdade
Coração lenha seca de soluços
Aos suspiros e aos pedaços pelas docas
Entre amigos exilados e drogados
Tripulantes d’aguardente d’aventura

É o punhal da solidão nos tocaiando
É o punhal da solidão nos tocaiando

Aventureiro, cabelos largos ao vento
Aventureiro, cabelos largos ao vento

Dedos lavradores d’horizontes
Carinhos e agrados na chegança
Que me importa quem me chora na distância
Se amanhã me deito com Valparaíso
Migrante de um Outubro liberado
Passageiro cantador que Deus me ajude
Delirando no olhar da juventude

Singrar, singrar, singrar até sempre mais
Singrar, singrar, até sempre mais.


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