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21 de dezembro de 2020
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12:41

A realidade e as contradições do discurso

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Sul 21
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A realidade e as contradições do discurso
A realidade e as contradições do discurso
Como reagirão as pessoas desamparadas pela continuidade da pandemia, sem ocupação, sem renda e sem o Auxílio Emergencial? (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Flavio Fligenspan (*)

Quem não tem linha ideológica definida, ou chega mesmo a desprezar a importância de discutir este tema, acaba tomando decisões ao sabor dos ventos, sem base sólida, privilegiando interesses imediatos com vistas a vantagens pessoais, familiares ou de pequenos grupos políticos. Um dos problemas deste tipo de decisão, normalmente com foco no curto prazo, é o risco de ter que cometer contradições explícitas logo a seguir, sempre que os interesses menores assim o exigirem. Dependendo da qualidade do público que observa a sequência desconexa de atitudes, ela pode gerar perda de confiança e de credibilidade, com reflexos negativos em vários campos, inclusive em pesquisas eleitorais.

É claro que me refiro ao Presidente Bolsonaro e seu círculo próximo de familiares e grupo político palaciano. Veja-se, por exemplo, a posição assumida com veemência na semana passada sobre a não privatização da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), em nítida contradição com vários discursos de campanha favoráveis a privatizações. Sim, o objetivo imediato era atingir seu atual grande desafeto político, o Governador de São Paulo, mas a contradição é tão grande que chega a ser vergonhosa.

Outro exemplo vem do falso dilema entre privilegiar a atividade econômica ou as condições sanitárias, que exigiam desde março a administração do distanciamento social. Desde o início da pandemia, Bolsonaro não acatou o conselho de especialistas da área da saúde sobre a necessidade do distanciamento, preferindo forjar a idéia do dilema e assumir o “lado da economia e do emprego”. Ora, na realidade nunca houve o dilema, o que ficou cada vez mais claro com a evolução da pandemia, não só no Brasil, como em todos os países do mundo. Sem o controle efetivo da disseminação da doença, a economia fatalmente iria colapsar, mais dia, menos dia. A questão que estava em jogo não era esta, mas sim uma escolha entre enfrentar o problema no início, com maturidade e com base na ciência ou negá-lo e ter que resolver mais à frente algo provavelmente mais grave. Diferentes governantes de diferentes países fizeram suas escolhas e os resultados estão aí, registrados para avaliação e julgamento histórico.

O problema do falso dilema se arrastou por todo ano de 2020, com a manutenção da posição negacionista sobre a gravidade da doença. A contradição era explícita, na medida em que o Governo aprovou o Auxílio Emergencial e diversos outros programas de apoio a empresas e aos estados e municípios, o que foi decisivo para sustentar minimamente a atividade econômica e evitar uma convulsão social. Perdendo apoio político nas camadas de renda mais alta e com maior escolaridade – aquela fração da população que consegue avaliar o zigue-zague do discurso –, o Auxílio ainda ajudou a segurar a popularidade em função das respostas da base da pirâmide.

Agora, quando vivemos uma nova onda da doença no Brasil e o mundo começa a se vacinar, momento aguardado com tamanha ansiedade por toda humanidade, o Governo nega o aumento rápido do número de casos graves e negligencia a organização célere de um plano amplo de vacinação, recuperando o falso dilema. Como se vivesse num universo paralelo, o Presidente reafirma diariamente que a economia está em plena retomada e que a pandemia está no fim, o que não é verdade. Para confirmar sua posição, anuncia a retirada dos estímulos na virada do ano, como se a pandemia respeitasse a troca do calendário.

Contudo, a contradição logo se recoloca, tanto pela posição do Ministro da Economia, que afirma a necessidade de rever a retirada dos apoios, se a pandemia continuar a mostrar força, como pela do Presidente do Banco Central, que faz um raciocínio óbvio e claro, é mais barato vacinar do que parar a economia. A contradição fica ainda mais explícita quando o Governo acaba de liberar R$ 20 bilhões para um plano de vacinação, ainda que vago neste momento. Não é necessária uma elaboração muito profunda para chegar-se à conclusão de que, a despeito das contradições do discurso populista e sem compromisso, haverá vacinação em massa no Brasil nos próximos meses.

O que impressiona é a manutenção de percentuais de aprovação do Governo diante de posições públicas de tamanho descaso com a vida das pessoas. As constantes trocas de posição e as enormes contradições ainda não foram capazes de abalar a avaliação de camadas não desprezíveis de cidadãos brasileiros. Contudo, há um teste logo à frente. Mesmo que a vacinação comece, digamos ainda em janeiro, seus efeitos sobre a atividade econômica não serão imediatos; pelo contrário, levarão vários meses para aparecer em termos de retomada. Neste caso, fica a pergunta: como reagirão as pessoas desamparadas pela continuidade da pandemia, sem ocupação, sem renda e sem o Auxílio Emergencial? Difícil imaginar que o Governo esteja disposto a pagar para ver.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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