Colunas>Flávio Fligenspan
|
23 de novembro de 2020
|
10:11

Boicote: a linguagem dura que as empresas entendem

Por
Sul 21
[email protected]
Protesto em frente ao supermercado Carrefour, em Porto Alegre, após assassinato de João Alberto Silveira Freitas por seguranças do estabelecimento. Foto: Luiza Castro/Sul21

Flavio Fligenspan (*)

O capitalismo é um sistema em que prevalece a força, seja na relação entre empresas, seja entre setores ou entre diferentes atores, como nos conflitos entre trabalhadores e empregadores ou nos que ocorrem entre governos e empresas privadas. Forças desiguais, às vezes muito desiguais, geram desequilíbrios nas relações intra sistema, prejudicando o bom funcionamento do sistema de preços e afastando o que é correntemente apregoado pelos entusiastas do capitalismo como uma de suas virtudes, o bom funcionamento dos mercados, com ampla concorrência entre diversos competidores e com equilíbrio de forças entre diferentes atores. É justamente para tentar diminuir os efeitos negativos de forças desiguais que existem controles estatais, como órgãos de regulação da concorrência, agências reguladoras, órgãos de defesa do consumidor e uma multiplicidade de mecanismos de fiscalização da legislação.

Em geral, a força das empresas é desproporcional nas suas relações com trabalhadores, por um lado, e com consumidores, por outro. Em relação aos consumidores, as empresas impõem padrões de consumo, contando com o uso às vezes até abusivo de campanhas publicitárias, e regras de relacionamento financeiro. Onde está a força dos consumidores? Principalmente, em discordar dos padrões que as empresas tentam impor à relação. Este poder dos consumidores é tanto maior, quanto mais opções de escolha eles tiverem. Em situações limite, desencadeadas por vários fatores que sempre devem ser evitados pelas empresas, a força dos consumidores se expressa no simples e temido boicote, algo pouco factível no passado, mas mais próximo da realidade em tempos de internet e de redes sociais.

Quais são as motivações das empresas no sistema capitalista? Há várias motivações, que por vezes se misturam e em alguns momentos podem até mesmo parecer contraditórias, quando observadas em diferentes intervalos de tempo. Ações que correspondem a determinado objetivo no curto prazo podem parecer opostas a outras ações que atendem a objetivos mais amplos a serem perseguidos em prazos maiores de tempo. Contudo, não nos iludamos, o objetivo maior é o lucro e a acumulação de capital, sem o que a própria sobrevivência da empresa no jogo da competição com seus rivais fica ameaçada.

As empresas respeitam sua imagem, se esforçam para afirmá-la e mantê-la junto ao público e gastam milhões com esta tarefa? Claro que sim, mas a imagem e a pregação de seus valores não é o essencial, elas apenas fazem parte do objetivo maior, que é a receita das vendas e a geração de lucros, estas sim as variáveis decisivas. Se em determinado momento, por contingências do ambiente social, cultural e político, chegarmos a uma situação de conflito entre a imagem e o lucro, não tenhamos dúvida, elas mudam a imagem. Empresas que preservaram sua imagem e seus valores acima de tudo, até mesmo com o sacrifício de seus resultados econômicos, constituem casos interessantes para compor uma lista nos livros de economia e administração, mas como registro histórico e exemplo de erros e de fracassos irreversíveis.

De tempos em tempos ocorrem situações repetidas e/ou graves em que uma empresa desrespeita seus consumidores e atropela sua tábua de valores. Isto ocorre especialmente no setor de serviços, incluindo o comércio, independentemente de a empresa ser pública ou privada. E não é por acaso, serviços são sempre o terreno mais delicado para qualquer operação, pelo simples motivo de que é muito mais difícil treinar corretamente um trabalhador para produzir um serviço de excelência do que obter um produto industrial com ótimo padrão de qualidade. Porém, esta característica não exime as empresas prestadoras de serviços de sua responsabilidade, bem pelo contrário.

Quando a sociedade se vê diante de um erro grave de uma empresa prestadora de serviços, é comum se observar reações na forma de protestos, manifestações, cartas de repúdio e até ações judiciais. A grande imprensa normalmente faz coro às queixas dos consumidores num movimento que se espraia e se amplia pela sociedade. Todas as formas de manifestação são importantes nestes momentos, porque abalam a imagem da empresa, construída ao longo de muito tempo e com o emprego de custos elevados. Por fim, os protestos, atingindo a imagem, atingem os lucros, o ponto mais sensível.

Contudo, a forma mais efetiva de protesto é o boicote. Imagine-se o impacto de uma quebra de vendas de, digamos, 50% num período de 30 dias. Isto mexe com a imagem, mas mexe especialmente com o faturamento e o lucro, constituindo-se, por si só, numa ameaça até mesmo aos resultados futuros. O abalo significativo nos resultados é única linguagem que as empresas realmente entendem, direta, sem intermediários. É possível acontecer algo assim num país como o Brasil, com baixa organização política e sem tradição de ações sociais conjuntas? Pouco provável; a desigualdade de forças entre empresas e consumidores baseia-se justamente nesta disparidade da capacidade de organização. Mas a história anda.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora