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30 de dezembro de 2020
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00:24

2021 e a solução única

Por
Sul 21
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2021 e a solução única
2021 e a solução única
Ato contra o fascismo e o racismo e em defesa da democracia,  junho de 2020, Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

Céli Pinto (*)

Tenho sempre sido muito cautelosa em relação a medidas radicais e milagrosas quando analiso política. Mas, depois de dois anos de governo Bolsonaro, um deles em plena pandemia mundial de Covid-19, estou convencida de que há apenas um caminho a trilhar, se o Brasil tem a pretensão de se viabilizar como um país razoável para 210 milhões de pessoas viverem na próxima década: o impeachment de Jair Messias Bolsonaro. No entanto, vejo muito pouca possibilidade de isso se realizar.

O impeachment é um instrumento de exceção, não obstante sempre rolarem, nas mesas legislativas nos países presidencialistas, muitos projetos com o objetivo de tirar o presidente de ocasião. Isto não tem, na maioria das vezes, qualquer importância. Ao findar o ano de 2020, há 51 pedidos de impeachment de Bolsonaro na mesa do Presidente da Câmara dos Deputados. Mas o fato em si não faz diferença. [1]

Mesmo tendo como retaguarda legal a manutenção do estado democrático de direito e tudo que isto envolve, impeachment, em todas as experiências conhecidas, é sempre um ato político. Ninguém, em sã consciência, acredita que deputados e senadores desta triste república aprovaram os impeachments de Collor de Mello e Dilma Rousseff porque estavam preocupados com o bem estar do povo e com a saúde da democracia.

Portanto, quando defendo o impeachment de Jair Messias Bolsonaro, estou defendendo um ato político, uma tomada de posição política. Por quê? Porque estou convencida de que a eleição deste indivíduo para a presidência da república e seu governo foi um acidente provocado pela disruptura intencional do sistema político brasileiro a partir de 2014. O mais sério nem é isto, o mais sério é que este indivíduo, seu clã, seus ministros e seu aparato militar não têm a menor ideia do que é governar e nenhuma responsabilidade com a república. Vivemos dois anos de total caos, onde a pandemia foi o melhor palco para que a sandice instalada no Planalto se revelasse em toda a sua crueldade, em toda a sua arrogante ignorância.

O desgoverno é total. Às vezes parece que o ex-capitão fantasiado de presidente, que faz piada com a morte das pessoas por Covid-19, que sai às ruas buscando formar aglomerações, que ridiculariza a própria doença e a vacina, assim o faz porque é um mentecapto e não lhe ocorre governar, não tem vontade política, não tem equilíbrio mental, nem condições intelectuais para entender sua posição: é um parvo. Um tipo que, saído dos porões do baixo clero, sempre foi considerado um ser menor por seus colegas deputados: uma coisa exótica, mal-educada, grosseira, machista, homofóbica, que ficava gritando palavrões nas salas das comissões e no plenário. Este tipo põe a cabeça no travesseiro à noite e diz: sou o presidente da república, posso fazer o que eu quiser. E o que ele quer é se manter nesta posição, para salvar o clã, para mandar no Exército que o expulsou, como seu comandante em chefe, e nos deputados, que lhe davam as costas envergonhados de tê-lo como colega. Cercou-se do pior e apostou, acho que acreditou, que Paulo Guedes governaria e ele teria os louros. Mas Paulo Guedes não era o Posto Ipiranga, era o matuto do comercial de TV, que não sabia de nada. Até neste detalhe o ex-militar errou.

Mas o impeachment, sendo um ato político, acontece quando há o encontro de condições que provocam o Congresso Nacional no sentido da ação. Não tenho a pretensão de apontar todas as condições que poderiam levar a um impeachment, mas indico três: a construção de uma opinião pública via mídia; uma oposição robusta no mundo político que se reflita na Câmara de Deputados (o Senado vai a reboque nestes momentos); uma grande onda de protestos populares.

Neste momento, não temos nenhuma destas três condições. A grande mídia de oposição ao governo Bolsonaro é representada basicamente pelo conglomerado Globo e o jornal Folha de São Paulo. Fazem críticas fortes e elas recaem no abandono das políticas de proteção ao meio ambiente e na forma de enfrentar a Covid-19. Em relação ao primeiro, até Gabeira virou crítico, pois é um tema fácil e todos sabem que nada será feito. As críticas da mídia só favorecem a própria mídia, que sai como um ator responsável. O mesmo acontece com as infindáveis reportagens sobre a Covid-19 com seu séquito de especialistas, todos dizendo a mesma coisa. Mas ninguém, nem os jornalistas de TV (os ridiculamente chamados de analistas) nem os editoriais de jornal, nem os doutores especialistas, celebridades de ocasião, foram capazes, até agora, de responsabilizar de dedo em riste o governo brasileiro pelo descalabro. Ninguém se organizou para dizer um basta a este arremedo de ministro da saúde. Mesmo agora, não estão cobrando respostas sobre a vacinação do General gordinho.

Entretanto, após meia hora de jornal televisivo, ou ao ler as páginas de dentro dos jornais impressos, há uma mudança completa de postura quando o tema é economia. Quando tratam de privatizações, reformas “necessárias”, cortes de gastos, diminuição da máquina pública, o tom é outro: é de esperança no governo Bolsonaro, de esperança nas reformas que levarão o Brasil a uma redenção, à satisfação do mercado. São os mesmos jornalistas, as mesmas empresas de comunicação. Portanto, nunca ninguém pedirá a saída do ex-capitão. Nunca a palavra impeachment será pronunciada, já que seu governo tem a missão de fazer as reformas.

A mesma coisa acontece com a oposição de centro direita a Bolsonaro. Esta tem uma posição ainda mais cômoda. Bolsonaro arrasando país, matando gente a rodo com sua não política em relação à pandemia, é um bálsamo aos ouvidos de gente como João Doria e Rodrigo Maia. Quanto mais desgraça acontecer e puder ser atribuída ao desgoverno Bolsonaro, mais eles se constroem como alternativas democráticas e conservadoras para 2022. Por que, então, tirá-lo? Que se danem os infectados aos milhões, que se dane a miséria que se anuncia, é preciso que fique, e que faça passar no Congresso Nacional as famosas reformas. Ele, que é sujo, fará o trabalho sujo para que a direita possa se qualificar como democrática.

Exemplo cabal disto é a declaração de Rodrigo Maia em entrevista à Folha no dia 29/12: “Não estamos em oposição a ninguém, estamos a favor da democracia, da liberdade, do meio ambiente. O nosso campo vota majoritariamente a favor da agenda econômica do governo” (p.A4)

Não partirá daí uma ação organizada para acabar com o absurdo que estamos vivendo.

Resta uma saída, apenas uma chance de ver Bolsonaro fora do governo: o povo na rua. Sonia Alvarez, em magnifica palestra durante o Encontro da ANPOCS 2020[2], afirma que “o protesto é, sem dúvida, a linguagem predominante da participação popular nas duas primeiras décadas do século XXI”. Mas, para haver protestos, tem de haver povo. E onde está o povo brasileiro?

Povo se forma, povo se constrói, e muito rapidamente. Tem muita gente organizada, os movimentos feministas, antirracistas, LGBTQI+, trabalhadores sem teto, trabalhadores sem terra, partidos políticos, jovens que chegam à vida pública com novas ideias e desafiando velhas formas partidárias. Também a massa de deserdados, de desempregados, de desassistidos.

Enquanto o governo estiver fazendo as reformas “necessárias”, em 2021, não estará preocupado com o desemprego ou com auxílios emergenciais. As grandes manifestações populares têm sido, nos últimos anos, a nova força política, diferente, surpreendente, nem sempre revolucionária ou de esquerda, mas capaz de trazer às ruas multidões com diferentes demandas e lutas. Fora Bolsonaro pode ser a próxima.

2021, de qualquer forma, será um ano difícil. Muito difícil. A pandemia continua sua escalada, o Brasil está à deriva, sem governo. Não acredito que cheguemos a 2022 da mesma forma que saímos de 2020. Bolsonaro provavelmente não terá cacife para ganhar as próximas eleições presidenciais, nem aparecerá outro tresloucado. Entretanto, ele dará tempo para a direita dita democrática se realinhar e fará o trabalho sujo, para que os dórias e os rodrigos maias da vida coloquem em prática, mais adiante, o decadente neoliberalismo à brasileira.

De forma otimista, é possível pensar, quase como um whishful thinking, como diriam os anglo-saxões, que depois de tantas mortes, de tanto desgoverno, de tanta violência, de tantos desmandos, de tantos escrachos, os protestos tomem as ruas, como nos fala Alvarez, e seja dado um basta neste pesadelo que se transformou a terra brasilis. Feliz 2021.

Notas

[1] Bolsonaro fecha 2020 com mais pedidos de impeachment recebidos por um presidente em um ano

[2] Disponível no you tube: ANPOCS 2020 Encontro

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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