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9 de maio de 2020
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13:20

Já não somos uma democracia

Por
Sul 21
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Já não somos uma democracia
Já não somos uma democracia
O desrespeito do executivo com o judiciário pôde ser visto na última quinta feira quando Bolsonaro praticamente invadiu o STF para fazer uma “live”. (Reprodução)

Céli Pinto (*)

O Brasil está literalmente sem governo, não existe poder executivo de fato neste momento. Entretanto, isto não quer dizer que os interesses incrustrados no Planalto não estejam verdejando. Há uma gravíssima crise sanitária no país e inexiste qualquer manifestação do governo e seus ministros sobre ela. O Presidente da República insufla a população contra as medidas de isolamento social, tomadas por governos estaduais e municipais. Quando fala de mortes, é com um desprezo total, muitas vezes em tom de blague.

Na verdade, Bolsonaro não se importa com as mortes de milhares de brasileiros. No seu projeto, o importante é encontrar uma causa para estas mortes passarem longe dele, seja pela negação pura e simples da pandemia, seja pela justificativa da inexorabilidade das mortes. Bolsonaro não está inaugurando nada novo. A história está cheia de ditadores de todas as cores políticas que sacrificaram até milhões de seus compatriotas para realizarem seus projetos de poder.

Mas um projeto de poder ditatorial, quer esteja empelicado por instituições democráticas, quer se realize em um regime autoritário claramente estabelecido, nunca é um projeto unicamente pessoal, é sempre um projeto coletivo. Pode ser representado por um triângulo em que cada vértice se situa um grupo: em um deles está o que podemos chamar de núcleo duro; em outro, um grande grupo que percebe o que está acontecendo, mas se omite por interesses, por não dar importância à democracia ou por achar que pode sustar o processo; e o terceiro é composto por uma parcela fanatizada da população.

No caso brasileiro, estes grupos podem ser identificados com facilidade. O primeiro é formado pelo poder executivo. Não se pode simplificar e pensá-lo como um grupo coeso, há interesses diversos e mesmo conflitantes que se expressam em sucessivas crises. Mas é necessário pontuar que todos estão imbuídos da construção de um Estado policialesco, de extrema-direita, religioso-fundamentalista e economicamente neoliberal, submetido aos interesses do capital. Por um lado, é antiglobalista, porque precisa construir um discurso patriótico, mas por outro se submete às ordens dos Estados Unidos de uma forma que beira à caricatura.

Esse grupo é liderado por um presidente tosco, que encanta seu público com sua total falta de compostura e de entendimento das responsabilidades do cargo que ocupa. Soma-se ao líder a existência de 3 filhos também políticos e todos – pai e filhos -, com proximidades não esclarecidas com a contravenção no estado do Rio de Janeiro. O governo é sustentado por um grupo de generais, que lhes servem de ministros, e por mais de 1000 cargos de confiança dados a militares das mais diversas patentes.

No dia 8 de maio, em reportagem da Folha de São Paulo, funcionários do Ministério da Saúde expressam pânico frente ao desmonte que Bolsonaro está fazendo no staf que tratava da pandemia, demitindo técnicos e colocando no lugar militares sem nenhum conhecimento do ministério, da pandemia, do SUS. Francisco Bern, funcionário do Ministério da Saúde desde 1985, afirmou à Folha:

“Os militares que chegam não têm absolutamente nenhuma experiência histórica na Saúde. O próprio Teich não tem experiência em gestão pública”. E conclui: ”Como vão administrar a engrenagem dos repasses para os estados e municípios? Como vão lidar com o planejamento das compras chegando agora? (FSP, p. A4). Nada disso importa para Bolsonaro, salvar vidas não está em seu projeto.

Os ministros civis têm diferentes papéis a desempenhar: alguns têm a missão explícita de alimentar os fanáticos seguidores com carradas de manifestações de ignorância, incultura, superstições e preconceitos, como Damares, Ernesto Araujo, Weintraub. Outros usam o governo pensando em vantagens próprias ou para os seus, como foi o caso de Moro e tem sido o de Paulo Guedes, do novo ministro da saúde e até do desprestigiado Onix Lorenzoni.

O projeto deste grupo como um todo é antidemocrático, pois necessita da redução de direitos civis, políticos e sociais para se reproduzirem no poder. Há dois perigos para este projeto, vindo de suas mais íntimas hostes, duas possíveis traições, dos militares e do capital (aqui representado por Paulo Guedes). Estes dois grupos não têm sempre as mesmas ideias sobre a economia. Se Bolsonaro perder qualquer um deles, seu governo se auto destrói. Os demais ministros podem ser substituídos sem nenhum trauma, como já aconteceu antes.

O segundo vértice do triângulo que dá forma ao projeto ditatorial é grande e difuso, composto de famosas instituições que garantem a democracia. dos grupos mediáticos, o empresariado e os apoiadores da alta classe média, que foram muito importantes na vitória de Bolsonaro.

Entre as instituições, o Congresso Nacional é o mais importante, porque tem muito poder de decisão em relação ao executivo e, na ponta da caneta, a decisão de dar guarida a um processo de impeachment. As maiorias, nas duas casas do Congresso, têm um acerto muito claro com o governo, calcado nas reformas neoliberais de Paulo Guedes. Todas as outras questões que deveriam passar pela casa são vistas apenas como obstáculos a serem ultrapassados para que se chegue às famosas reformas. Inclusive a seríssima crise sanitária provocada pela Covid-19. Aqui estão representados os interesses do capital financeiro e do empresariado da Avenida Paulista. Quem conhece os dados da Operação Bandeirantes, durante a ditadura militar, sabe o apreço que eles têm pela democracia.

Apesar de tensões ocasionais entre os presidentes das duas casas legislativas e o Presidente da República, e mais raramente com o ministro da economia, suas manifestações sobre o descalabro da política na área de saúde e sobre as manifestações golpistas promovidas pelo Presidente da República são pífias, para não dizer inexistentes. Não esqueçamos que ambos são do DEM, partido de direita, e que foram lá colocados durante eleições comandadas pelo Planalto.

O Executivo tem como líder do governo um deputado sem nenhuma expressão, um tal Major Vitor Hugo, que ridiculamente vai à tribuna defender emendas ao projeto de ajuda aos estados e municípios e, um dia depois, o presidente declara que irá vetar exatamente estas emendas porque Paulo Guedes mandou.

O desrespeito do executivo com o judiciário pôde ser visto na última quinta feira, 7 de maio, quando, em uma bravata digna de republiqueta de bananas, o Presidente da República saiu do Palácio a pé, acompanhado de industriais, e praticamente invadiu o Supremo Tribunal Federal para fazer uma live para seus apoiadores, sem que o Presidente da Corte tivesse sido avisado, que pedia o fim do isolamento social no país. Os próprios empresários, em entrevista também à FSP, afirmaram que não foram pedir o fim do isolamento social ou a abertura do comércio, e ficaram surpresos com o convite de Bolsonaro para irem ao STF encontrar, segundo um deles, quem lá estivesse de plantão. (FSP, 8 de maio A13)

Mas tanto as duas casas do Congresso Nacional como o STF preferem fazer que não veem os desmandos irresponsáveis do governo. A Suprema Corte nada disse sobre as manifestações inconstitucionais do último domingo. O Ministro Barroso, em entrevista à Globonews no mesmo dia, as interpretou como resultado da liberdade de expressão em uma democracia.

As reações institucionais de Davi Alcolumbre, Rodrigo Maia e Dias Toffoli a todos os desmandos que estão acontecendo no Brasil são pífias, para não dizer risíveis. Talvez os três presidentes acreditem que as instituições estão funcionando perfeitamente.

O que poderíamos esperar das famosas instituições, se elas deram guarida a um impeachment completamente ilegítimo que depôs a Presidenta Dilma Rousseff e festejaram as peripécias jurídicas de um juiz fantasiado de xerife que trocou a toga por um cargo de ministro e foi desmoralizado pelo Intercept? Gostando ou não do governo Dilma, aceitando ou não a tese da inocência de Lula, todas as autoridades que preenchem as cadeiras das instituições sabiam tão bem quando os minerais, como diria Mino Carta, que o que estava acontecendo era uma farsa. Portanto a democracia já estava minada por cupins, por isso tem sido mais fácil sua derrocada.

Junta-se às instituições em “pleno funcionamento” a mídia, que é muito menos oposição ao governo do que tenta parecer no momento. Bolsonaro, neste sentido, é um bálsamo, dá motivos diariamente para que grandes redes de comunicação e jornais apareçam como os defensores da democracia. Esta é uma defesa fácil, pois estão apostando na permanência de Guedes e na aprovação pelo Congresso Nacional das “reformas necessárias”, cuja necessidade nunca é explicada: são as reformas que diminuem o direto do trabalho e protegem o capital; as que promovem a legalização das terras de grileiros na Amazônia e na Mata Atlântica; as que acabam com os serviços públicos, entregando-os ao capital privado; as que fazem as universidades federais e as ciências definharem; as que acabam com as atividades culturais e artísticas. Ou alguém já viu um debate sério sobre estes temas na televisão, com especialistas que sejam de oposição ao governo e às forças conservadoras em geral? Todo debate ocorre entre parceiros do mesmo lado com nuances difíceis de perceber.

Neste grande grupo, não podemos esquecer da alta classe média, na sua grande maioria com nível de educação formal superior, que sabia exatamente quem era Bolsonaro, mas que se vendeu por 30 dinheiros. Tinham medo de perder privilégios, ver negros e pobres nas universidades públicas, empregadas domésticas com direitos trabalhistas, viajando em férias de avião. Cada eleitor e cada eleitora de Bolsonaro desta classe são política, moral e pessoalmente responsáveis pela catástrofe que está acontecendo no país. São responsáveis, totalmente responsáveis pela desgraça que poderá se tornar a vida de seus filhos e netos.

Finalmente temos o terceiro vértice do triângulo, os fanáticos. Eles também não são uma originalidade do projeto de desmonte da democracia que está sendo levado a efeito. O grupo tem características locais, mas aparece em todos os regimes totalitários, em diferentes espectros ideológicos. O fanático é antes de tudo um ser que precisa de verdades absolutas, que se entrega, por interesse, medo ou crença a um líder, na maioria das vezes com pés de barro, que lhes garante a verdade. Isso tem sido historicamente o grande trunfo das religiões. Crer em um ser superior, que tudo sabe e para tudo tem caminhos, mesmo os mais tortuosos, tem dado grande conforto à humanidade através de sua história. Isto é absolutamente razoável enquanto ficar no nível das necessidades pessoais, mas há momentos em que estas certezas   extravasam para o político de várias formas, pela verdade construída por pastores mais preocupados com suas contas bancárias do que com a paz de seu rebanho; pela perseguição à ciência , à cultura , às artes , à liberdade de pensar; pelo culto à pátria, ao líder, aos hinos, à disciplina.

O fenômeno de grupos fanatizados não acontece cotidianamente na vida dos humanos. Ocorre em momentos de guerras, de desemprego, de crise econômica e encontra nas camadas mais pobres e excluídas da vida social um viveiro importante. Estas pessoas, ao contrário da cínica classe média cultivada, realmente creem no ídolo, transferem a ele um fervor religioso.

Talvez quem melhor representa dentro do Estado esse grupo é a atual Secretária da Cultura. Durante uma entrevista à CNN, a atual Secretaria de Cultura e atriz de novelas Regina Duarte cantou a música símbolo da ditadura militar e, quando o jornalista falou que na ditadura houve torturas, ela alardeou, aos gritos e risadas debochadas, que tortura sempre houve, usando como exemplos as torturas nos governos de Stalin e Hitler. Parece que só aficcionados machistas pretensamente de esquerda no FB se preocuparam com a fala da secretária e não perderam a oportunidade de chamá-la de mulher histérica. Mas o que aconteceu foi uma manifestação inconstitucional de uma autoridade da República

Combina-se ao cenário descrito acima uma gravíssima crise sanitária, com potencialidade para matar um número bélico de brasileiros, tanto pela gravidade do vírus, mas principalmente porque o país não tem governo, está em período de transição de uma democracia frágil para uma ditadura. Se esta transição realmente se efetuará, é impossível afirmar, mas há muitas condições para isso. Entretanto, para qualquer observador medianamente atento, já não somos uma democracia.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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