Colunas
|
22 de agosto de 2012
|
20:13

Dia do Folclore: lembrando o Movimento Folclórico Brasileiro

Por
Sul 21
[email protected]

A ideia do que seja folclore é bastante tranquila para a maioria das pessoas. A definição, a qual aprendemos na escola, fala do arcabouço de lendas, tradições, festas populares e crenças das mais diversas que, passadas de pais para filhos, compõem o âmago mais profundo de um povo.

Contudo, qualquer mínima escavação nesse conceito e encontramos um sem número de controvérsias de estudiosos a cerca que é folclore e sobre o que se poderia encontrar sob esta denominação. No passado, um dos consensos sobre o termo era de que ele se referia a uma cultura de raiz rural e que o mundo urbano seria a sua morte. Hoje, uma série de outras variáveis são aí adicionadas pelos antropólogos, dificultando as generalizações. Pela compreensão antiga, se justificou a existência do Movimento Folclórico Nacional, que teve sua época áurea entre 1948 e 1964, e cujo objetivo era colher o maior número de referências dessa cultura como forma de salvá-la, antes que as cidades apagassem seus traços de riqueza e originalidade.

Clique para ampliar

Nos meios acadêmicos, não faltaram críticas à forma como estes estudos folclóricos foram feitos. Há um bom panorama disso no livro Românticos e Folcloristas, de Renato Ortiz (1992). Pouco se pode acrescentar a elas, porém é possível relativizá-las e não colocar os folcloristas numa categoria única, como se fosse possível passar sobre suas divergências teóricas (que existiram) e as diferentes épocas e interesses que marcaram a escrita de seus trabalhos. Nesse sentido, acho importante sugerir a leitura do brilhante trabalho de Luis Rodolfo Vilhena, Projeto e Missão: o Movimento Folclórico Brasileiro, 1948-1964 (1997). De acordo com este autor, apesar de nunca ter conseguido fugir do diletantismo e do amadorismo – em função de sua missão salvacionista – o movimento fez o imenso esforço de sistematizar, através do recolhimento mais amplo possível, as linhas mestras das crenças do Brasil rural, apesar de suas diferenças regionais. Justamente por conta disso é que a utilização das informações coletadas pelos folcloristas deste período, seja em trabalhos de história, seja pelos estudos antropológicos, comporta problemas até hoje.

Não tenho aqui a pretensão de reproduzir a complexidade da obra de Vilhena, que identifica o surgimento do interesse pelos assuntos folclóricos desde fins do século XVIII, até a convocação do inglês William Von Thoms para o uso da palavra folk lore. No Brasil, o autor acompanha os antecedentes do Movimento desde Silvio Romero passando por Amadeu Amaral e Mario de Andrade. Além do histórico, Vilhena também aborda as principais divergências teóricas do grupo, como a dificuldade de se relacionar tanto com os folcloristas estrangeiros quanto com o maior nome do folclore nacional da época, Luiz da Câmara Cascudo, ou os debates com Roger Bastide e a intensa polêmica com Florestan Fernandes. As conclusões do autor encaminham, com muita propriedade, para o reconhecimento dos estudos folclóricos como uma parte importante da construção das ciências sociais no Brasil, identificando no processo até mesmo as razões do ostracismo a que a disciplina foi relegada. Entretanto, eu creio ser de particular interesse a noção de tradição assumida por este grupo e as implicações disso para se pensar a cultura brasileira.

Para a maioria dos folcloristas europeus do mesmo período, a tradição aparecia como um saber imemorial (ideia defendida no Brasil por Bastide), algo situado entre o mito e a história, próprio de um universo com características de imutabilidade. Já, para boa parte dos folcloristas brasileiros – inspirados no antropólogo e folclorista Arnold Van Genep – a ideia de tradição tinha outros significados e estes reivindicavam, assim, uma peculiaridade para o folclore brasileiro: a continuidade em transformação. Para os membros da Comissão Nacional do Folclore, o fato folclórico (noção depreendida de Durkheim) aceitava, além dos elementos sobreviventes de instituições antigas, “fatos nascentes”. Tal ideia justificava satisfatoriamente a inexistência de uma “idade de ouro coesa” (como na noção europeia), onde o folclore teria sido gestado, e que era difícil de ser assimilado ao Brasil em razão de sua diversidade cultural e populacional. Assim, os elementos do folclore brasileiro ainda estavam em conformação, para este grupo, e sua unidade ainda estaria por vir, caso este não fosse solapado antes pela cultura urbana. Ora, guardadas as devidas proporções, essa compreensão da tradição está muito mais próxima dos modernos conceitos utilizados pela história cultural do que dos “tradicionais conceitos de tradição”, nas palavras de Peter Burke.

Ora, quando se pensa em termos de Rio Grande do Sul, percebe-se que os estudos folclóricos tiveram e ainda têm um peso importante na construção da identidade regional. Embora existam nomes que tenham trabalhado em prol da construção de uma identidade nacional, como por exemplo, Dante de Laytano, o gaúcho de maior expressão no Movimento Folclórico Nacional, a maior parte dos estudos desenvolvidos na área optou e tem optado por um regionalismo diferenciador do resto do país. Ao mesmo tempo, é nos trabalhos mais recentes que se encontra a ideia de uma tradição cristalizada, a qual se quer imutável e que define um grupo de ideais coesos e inclusivistas, na medida em que mesmo aqueles que têm origem diversa da do “gaúcho” (“mestiço de português e índio, forjado nas lides do campo e nas guerras de fronteira”), como os “negros”, os alemães ou os italianos se “aculturam” e passam a cultivar as tradições que identificam a região.

Neste sentido, que não se subestime a força que tais ideias têm na sociedade moderna: comer muita carne e tomar chimarrão podem não ter mais o mesmo apelo que no passado tiveram para a manutenção da saúde, mas ainda identificam e separam os gaúchos dos que não o são. Logo, pensar sobre folclore não é pensar sobre coisas do passado, mas sobre a identidade de todos nós. Não é pensar sobre as festas dos populares (dos que dizem isso se afastando e não se incluindo), mas sobre o porquê de nos integrarmos ou não a elas. E, como tudo, o folclore tem história, como conceito, como percepção, como estudo. Conhecer essa história é um bom começo para compreendê-la.

Nikelen Witter é historiadora, professora e escritora.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora