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26 de setembro de 2011
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09:44

Atílio Borón: crise diminui interferência dos Estados Unidos no mundo

Por
Sul 21
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Cientista político e sociólogo argentino Atílio Borón passou por Porto Alegre e concedeu entrevista ao Sul21 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Igor Natusch

Doutor em Ciência Política pela Universidade de Harvard e professor da Universidade de Buenos Aires, o sociólogo e cientista político argentino Atilio Borón passou rapidamente pelo Rio Grande do Sul há dez dias. Ele proferiu a aula inaugural do programa de pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) no último dia 15, que teve como tema “a crise mundial e a emergência da democracia no Oriente Médio”.

Borón, tem se dedicado a analisar a crise financeira mundial e as transformações na hegemonia entre os países, bem como a refletir sobre a situação da América Latina. Solícito, ele conversou com o Sul21 no aeroporto Salgado Filho, enquanto aguardava seu voo de volta para a Argentina.

Na entrevista, Atillio Borón analisa a crise econômica enfrentada pelos Estados Unidos, “um centro imperial que pela primeira vez se converte em devedor de suas colônias” e vê grandes perspectivas para a América do Sul. “Mas para isso é fundamental que os países atuem em conjunto”, alerta.

Na conversa com o Sul21, o argentino também fala de Hugo Chávez, Cuba, Cristina Kirchner e Brasil. “O Brasil tem que se dar conta de que a liderança tem um custo, onde um país não pode ser líder se não estiver disposto a fazer concessões”, defende.

"É evidente que nos encontramos com um centro imperial que pela primeira vez se converte em devedor de suas colônias ou periferias do império" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Vamos começar falando sobre os Estados Unidos, que vivem uma situação econômica bastante grave. Gostaria que o senhor explicasse o que levou os Estados Unidos a ficarem nessa situação e que impactos isso tem para o modelo capitalista.

Atílio Borón – Os Estados Unidos vêm em um declínio econômico há muito tempo.  Muitos autores marcaram esse descenso da produtividade e da competitividade da economia estadunidense e, fundamentalmente, a dificuldade que os EUA têm para manter o equilíbrio comercial, sendo um país que importa muito mais do que exporta, a dificuldade para manter um equilíbrio fiscal, sendo um país que gasta muito mais do que pode arrecadar. Há uma economia montada em cima do consumo doméstico, portanto, está muito afetada pela crise, agora com o alto nível de desemprego, a contração dos salários reais e a situação fiscal deficitária. Os EUA vêm há muito tempo se envolvendo em guerras muito importantes, sem aumentar os impostos. Então, quando se tem uma conjunção de fatores como estes, evidentemente o poderio econômico global dos EUA acaba sentindo. Os EUA se envolveram na guerra do Iraque, depois na guerra do Afeganistão, que foram caras. Adotaram uma política de expansão de gasto militar, ao ponto que esse valor superou a casa de um trilhão de dólares. Reduziram os impostos dos proprietários de grandes valores, do capital especulativo, diminuíram os impostos das grandes corporações. Países assumem parte da dívida pública dos EUA. De fato, se supõe que a América Latina tenha reservas em dólares do Tesouro estadunidense beirando os dois trilhões de dólares. Uma loucura. Esses países estão financiando um padrão de consumo que é insustentável. Por isso, Obama teve que entrar nessa grande briga para conseguir que lhe aumentassem o limite dos investimentos públicos. É evidente que nos encontramos com um centro imperial que pela primeira vez se converte em devedor de suas colônias ou periferias do império. Quando toda a história dos impérios anteriores, desde Roma até hoje, era que o centro do poder imperial era fornecedor financeiro. Hoje não é mais. Os Estados Unidos são os maiores devedores do planeta. A dúvida pública dos EUA equivale a 50% de toda a dívida pública mundial. Eles vivem uma situação dificilmente sustentável para o país que é.

"A crise econômica financeira nos EUA é muito séria. E isso faz com que esse declínio econômico modifique substancialmente a capacidade dos EUA para interferir na área internacional" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Podemos dizer que o governo dos EUA compreendeu a dimensão da crise? Enquanto se discutiam as alternativas, muitos políticos da direita estadunidense diziam que tinha que cortar a verba da educação, dos serviços básicos e manter, se não ampliar, os gastos militares.

Atílio Borón – Há uma parte muito importante dos Estados Unidos, uma população que vive aterrorizada, que está disposta a tolerar um gerenciamento nos gastos militares absolutamente exorbitante, mesmo que o aumento  signifique cortar a verba em outras áreas como saúde, educação e seguridade social. O que acontece é que se trata de uma sociedade que vive no império do terror. Um terrorismo de que pode acontecer algo e por isso estão dispostos a financiar o armamento militar. A situação hoje nos EUA é tão ridícula, que um dos supermilionários, Warren Buffett, disse: “é um absurdo que eu, que sou um dos maiores milionários dos EUA, pague menos impostos que a senhora que faz a limpeza na minha casa”. Ou seja, é um Estado totalmente a serviço de uma oligarquia financeira. Isso acaba revelando para sociedade que os ricos não pagam impostos, quem paga é a grande massa de assalariados. O problema que esses assalariados estão cada vez com menos recursos. Além disso, cresce o número de desempregados. A crise econômica financeira nos EUA é muito séria. E isso faz com que esse declínio econômico modifique substancialmente a capacidade dos EUA para interferir na área internacional.

Sul21 – Como esse processo se manifesta?

Atílio Borón – Os Estados Unidos têm quatro atributos, que no passado lhes permitiam ser uma grande hegemonia mundial. O poderio econômico/financeiro, o poderio político, o poderio militar e o poderio cultural. Desses quatro, hoje sobraram dois. O poderio econômico/financeiro vem se despedaçando. Em poucos anos, a China será a maior economia mundial. A China pode se endividar-se muito ainda, enquanto os Estados Unidos estão no topo do endividamento. Eles não têm mais o poderio econômico e também não têm mais o poderio político. No passado, os EUA podiam organizar o sistema internacional de acordo com os seus interesses. Eles podiam, por exemplo, regular a situação do Oriente Médio, porque tinham aliados que obedeciam totalmente. Mas agora não têm lá a capacidade política que tinham há 30 anos. Assim como não têm mais na América Latina. Não conseguiram aprovar a ALCA, que era o grande projeto deles para o século 21. Graças aos governos de esquerda daqui, a ALCA não saiu do papel. Os EUA não podem, nem se quisessem, nomear o secretário geral da Organização dos Estados Americanos (OEA). Eles não podem impedir que a armada russa venha fazer operações no mar do Caribe, com a armada venezuelana. Isso se trata de uma situação até há pouco tempo atrás imaginável.

Sul21 – De certo modo, politicamente só restou a bravata para os EUA.

Atílio Borón – É claro. E os EUA não puderam fazer com que as tentativas de golpes militar contra o Evo Morales, contra Hugo Chávez e contra Rafael Correa fossem exitosas. Ganharam em Honduras, na América Central. Mas na América do Sul não. Não conseguiram impedir que em um país pequeno e pobre como o Equador desalojasse as bases militares norte-americanas. O país segue tendo uma grande hegemonia, mas agora sem o poderio econômico, quer dizer, não como antes, e sem o poderio político. O que lhes resta? O poderio da sua supremacia militar. Os gastos militares dos EUA são superiores à soma de todos os países do planeta juntos. E isso não era assim. Resta também o grande controle da circulação da produção audiovisual. Calcula-se que 75% das produções audiovisuais que circulam no planeta são produzidas nos EUA. Então, isso lhes dá um poderio fenomenal – eles universalizaram um padrão de consumo que é praticamente insustentável. O padrão de consumo dos EUA só pode sobreviver na condição de que 80% da população mundial jamais tenha esse padrão de consumo. É uma contradição absurda.

"O padrão de consumo dos EUA só pode sobreviver na condição de que 80% da população mundial jamais tenha esse padrão de consumo. É uma contradição absurda" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Estávamos falando a respeito da diminuição do controle dos EUA sobre a América do Sul. Qual foi o peso que os oito anos de governo Lula no Brasil, no sentido de fortalecer essa questão?

Atílio Borón – Colaboraram nesse processo de “independência” da América Latina dois países chave. O primeiro foi Cuba, que resistiu 52 anos de bloqueio econômico e que, apesar de todos os problemas, escolheu seguir com um experimento que ostenta grandes índices de desenvolvimento social superiores a de qualquer país da América Latina e inclusive da Europa. E depois de Cuba, o segundo fator fundamental para esta derrocada foi Hugo Chávez. Ele foi o homem que a partir do inicio do século conseguiu reinstalar na América Latina uma política antiimperialista. E reinstala, não agitando os textos clássicos da teoria antiimperialista, e aqui estou falando de Lênin, etc, mas reinstala através de uma reinterpretação do legado de Simón Bolívar. E é visível que a política antiimperialista bolivariana foi mais aceita pelos governos moderados da América Latina. Então Chávez na Venezuela e Cuba foram fundamentais para isso. E acompanharam muito bem Lula. Quer dizer, Venezuela e Cuba, sem o apoio e acompanhamento de Lula no Brasil, não teriam conseguido barrar a ALCA. Lula teve uma tarefa de negociação com os demais países que merece ser aplaudia. E essa negociação foi auxiliada por Fidel e Chávez. E a América Latina agora consegue avançar no processo de unificação, em especial da América do Sul. Este continente é uma região riquíssima em recursos naturais, rico em petróleo, em minerais estratégicos, em gás, em lítio, que é fundamental para a indústria moderna, temos água, temos alimentos, temos de tudo. Basta somar a riqueza petrolífera da Venezuela, o poderio industrial e energético do Brasil, a capacidade alimentícia da Argentina, junto com o seu poder em matéria de energia nuclear, a potência mineira em países como Peru e Chile. A América do Sul é uma superpotência, é destinada a ser um grande empório das próximas décadas. Mas para isso é fundamental que os países atuem em conjunto. E a estratégia imperialista, qual era? Antes do avanço da Unasul, tratar de criar outras instâncias como a Aliança do Pacífico, para formar uma barreira contra o desenvolvimento da Unasul, que é o projeto mais importante que se tem hoje na América Latina. Entre outras coisas, porque a Unasul criou o conselho sul-americano de defesa, sem a presença dos EUA.

"As pessoas perguntam: 'Por que Chávez não propõe outros?' Uma coisa é propor e outra é criar uma liderança efetiva" | Foto: Prensa Miraflores

Sul21 – No caso da Venezuela, não há um risco de que a “revolução bolivariana” fique demasiado presa à figura de Chávez?

Atílio Borón – É um risco muito sério e preocupante, ainda mais do ponto de vista da saúde de Chávez. Mas o que acontece é que os processos de mudanças são assim. Quer dizer, por mais que tu queiras montar uma direção colegiada, nem sempre isso é bem sucedido. Em alguns casos, tem que haver uma liderança muito forte. As pessoas perguntam: “Por que Chávez não propõe outros?” Uma coisa é propor e outra é criar uma liderança efetiva. Peguemos o exemplo do Brasil. Lula é um grande líder popular que saiu do governo com mais de 80% de popularidade. E Dilma não ganhou no primeiro turno, não conseguiu 50% dos votos da população, por mais que Lula tenha a indicado. As questões políticas não funcionam assim. Não basta um grande líder querer colocar outro em seu lugar dizendo “esse é meu sucessor”, mas para as pessoas isso não basta. E em todos os processos de mudança isso foi assim. Todos os processos revolucionários sempre tiveram uma personalidade que sintetizasse o momento. A revolução russa girou em torno de Lênin, a chinesa em torno do Mao. Apesar de que Mao conseguiu fazer de Zhou Enlai seu sucessor, porém, foi de uma maneira muito difícil. Na Venezuela, ainda não se pode dizer quem será o sucessor de Chávez, em Cuba estamos vendo Raúl Castro, mas ainda não sabemos qual será o resultado.

Argentina: "Estamos falando de um governo de centro-esquerda muito moderada, com uma retórica em alguns momentos, muito forte, com políticas antiimperialistas, bem de esquerda, e com políticas sociais e econômicas mais voltadas ao centro" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Cuba recentemente adotou algumas medidas no sentido de abrir um pouco a economia, de permitir venda de propriedade e investimentos. Qual é o futuro de Cuba?

Atílio Borón – Faz 52 anos que Cuba vive de forma precária e instável. Porque nenhuma revolução é fácil. E uma revolução socialista no continente americano é ainda mais difícil. Os cubanos têm um talento muito especial, são pessoas que conseguiram coisas que em outros lugares do mundo não conseguiram alcançar. Agora vem a etapa mais difícil. É pensar em como irão avançar as reformas econômicas sem abandonar o projeto socialista, que não irão abandonar, mas terão que redefini-lo. Vão ter de dar fim ao que eu chamo de uma excessiva generosidade que teve a revolução cubana. Cuba é o único país no mundo que fez uma revolução e que, devido a essa generosidade exagerada, retribuía igualmente ao trabalhador honesto que produzia e trabalhava e ao outro que não trabalhava e não fazia nada. Ou seja, a revolução cubana levou o igualitarismo a um extremo sem precedentes em toda a história. E esse igualitarismo extremo significou um desincentivo para trabalhar honestamente. O país tem que pensar um novo plano, onde aquele que trabalha mais, tem que ser melhor remunerado, e o que trabalha menos tem que ser penalizado. Eles têm que aceitar o capital estrangeiro porque não têm capital, mobilizar a economia cubana, sobretudo no setor agrário.

Sul21 – Em relação a seu país, a Argentina. Cristina Kirchner, pelo jeito, deve se reeleger. Como o senhor avalia o governo argentino?

Atílio Borón – O governo dela é centrista, ou centro-esquerda bem moderada, que tem algumas políticas muito avançadas de direitos humanos, por exemplo, onde estão fazendo agora os julgamentos dos militares da ditadura. E isso está tendo reconhecimento no mundo inteiro e servindo de exemplo. Inegavelmente, não podemos deixar de reconhecer os méritos dos Kirchner. Recentemente ela fez algumas políticas sociais bem oportunas, que têm semelhança com o Bolsa Família do Brasil, ampliou as coberturas de aposentadoria. Em matéria econômica, a grande inovação do kirchnerismo foi o pagamento da dívida externa, demonstrando que a divida externa havia sido uma operação fraudulenta e que era legítimo fazer o seu pagamento, e a partir disso, o país vive uma grande onda de crescimento econômico extraordinário. Agora, tem muitas coisas pendentes. Primeiro, um grande equívoco de Néstor Kirchner foi quando renovou as licenças dos grandes oligopólios midiáticos, que se colocaram contra ele. Isso foi corrigido através da Ley de Médios. Para o professor Dennis de Moraes, da Universidade Federal Fluminense, é a lei mais democrática e avançada que existe em toda a América Latina e uma das mais avançadas do mundo. E isso também é mérito do governo de Kirchner. A Argentina segue tendo um esquema econômico que privilegia muito o capital financeiro, a tal ponto que o capital financeiro está isento de pagar os impostos referentes ao que ganham. E esta isenção é totalmente inadmissível, enquanto que os assalariados como eu tenham que pagar esses impostos. Estamos falando de um governo de centro-esquerda muito moderada, com uma retórica em alguns momentos, muito forte, com políticas antiimperialistas, bem de esquerda, e com políticas sociais e econômicas mais voltadas ao centro.

"Queremos que Dilma aprofunde a integração sul-americana e que Brasil assuma a posição de liderança. O Brasil tem que se dar conta de que a liderança tem um custo, onde um país não pode ser líder se não estiver disposto a fazer concessões" | Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Sul21 – Uma última pergunta. O que o senhor espera do governo de Dilma Rousseff no Brasil?

Atílio Borón – O que se espera dela é que mantenha e aprofunde a linha latinoamericanista que Lula perseguiu com bastante êxito. Para a gente, seria uma tragédia uma Dilma que de alguma maneira se desvinculasse dos processos políticos em curso na América Latina. Eu acredito que o Brasil enfrentar a crise sozinho é uma idéia que não tem fundamento. Reconheço a potência do Brasil, mas não posso deixar de reconhecer também as muitas pendências o Brasil tem em matéria social como também em matéria econômica. O Brasil vem se desindustrializando. Queremos um Brasil que seja uma grande potência industrial, mas nos últimos 30 anos o Brasil seguindo sendo um grande exportador de commodity primaria, sem elaboração, do que um grande exportador industrial. Esse é um problema. Queremos que Dilma aprofunde a integração sul-americana e que Brasil assuma a posição de liderança. O Brasil tem que se dar conta de que a liderança tem um custo, onde um país não pode ser líder se não estiver disposto a fazer concessões. Por exemplo, é um absurdo que um país como o Brasil imponha limites na exportação de arroz feita pelo Uruguai. Quanto arroz pode exportar o Uruguai? Não atinge a população de Porto Alegre. Então, essa é uma atitude estúpida, limitando relações com um país vizinho, criando um ressentimento. O semelhante acontece com o Paraguai, um país muito pobre. E eu acho que hoje já se tenha um pensamento de liderança objetivo, onde sabe-se que para exercer essa liderança deve-se colocar os interesses continentais acima dos interesses particulares brasileiros.


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