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24 de fevereiro de 2021
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20:22

Reduzir o rigor nas medidas de circulação é ‘omissão criminosa’, avalia Alcides Miranda

Por
Sul 21
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Reduzir o rigor nas medidas de circulação é ‘omissão criminosa’, avalia Alcides Miranda
Reduzir o rigor nas medidas de circulação é ‘omissão criminosa’, avalia Alcides Miranda
Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

Fernanda Nascimento

A manutenção da cogestão no Modelo de Distanciamento Controlado, definida pelo governo do Estado após pressão dos prefeitos e de setores empresariais, tem sido criticada por especialistas da área da saúde. No pior momento da pandemia de covid-19 no Rio Grande do Sul, com recordes de internações e óbitos e superlotação das unidades de atendimento, a maioria das regiões classificadas como locais de risco altíssimo de contágio decidiram adotar medidas menos rígidas e manter as atividades de comércio e serviços não-essenciais em funcionamento.

O Doutor em Saúde Coletiva e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alcides Miranda classifica a decisão como a “repetição de um erro”, que poderá ter como consequência óbitos evitáveis. Em entrevista ao Sul21, Miranda avalia que a influência do poder econômico de setores empresariais se sobrepõe aos apelos das autoridades sanitárias nas decisões políticas e projeta um cenário ainda pior nos próximos dias. O professor também defende que as medidas restritivas não sejam reduzidas ao combate às aglomerações e diz que a restrição de circulação é fundamental para evitar o colapso total do sistema de saúde no Estado.

Sul21 – Manter a cogestão no Modelo de Distanciamento Controlado e permitir que as regiões em bandeira preta possam adotar protocolos de bandeira vermelha, com comércio e serviços não essenciais em funcionamento, foi uma decisão adequada?

Alcides Miranda – Além de ser equivocada é a repetição de um erro. Esse mesmo erro foi cometido em maio, quando a gente tinha todas as evidências de que havia uma intensividade de contágio. Ou seja, havia uma subida de casos e de complicações que iam requerer atendimento. E, naquele momento, houve uma flexibilização que custou muitas vidas. Muitos óbitos poderiam ter sido evitados. Não é só uma questão de erro estratégico, de equívoco na condução dessa crise, mas a reiteração de um erro. Naquela ocasião, avisamos que não era o momento de flexibilizar. Era o momento de aumentar o rigor das medidas e houve flexibilização. E agora, de novo. Nós temos evidências do aumento do contágio, de uma intensidade que não podemos pensar em flexibilizar ou aumentar o rigor em um meio termo, como o governo está querendo fazer. Se em maio foi um erro estratégico, pra mim, hoje, é uma omissão criminosa.

Sul21 – O senhor afirmou que muitas vidas poderiam ter sido salvas. Há uma estimativa do impacto que a não adoção de medidas pode causar?

Alcides Miranda – Nós tivemos uma boa resposta do SUS (Sistema Único de Saúde). Embora tenha aumentado consideravelmente as taxas de mortalidade ao longo dos meses, as taxas de letalidade se mantiveram estáveis. Houve condições, apesar do aumento de casos, do SUS resolver. Isso significa que o SUS estava dando conta dessa demanda apesar da imprudência e da falta de providência dos governos – principalmente do governo federal. Só que isso tem um limite. Agora o que está acontecendo? Além da introdução de cepas que estão aumentando a transmissibilidade, está se repetindo o erro de se flexibilizar ou não garantir o rigor no momento correto. E isso está levando ao limiar e ao colapsamento dos serviços de saúde. O que aconteceu em Manaus aparentemente foi uma falta de logística para ter os recursos de oxigênio. Mas, na verdade, houve erro também do governo do Amazonas que flexibilizou e não teve o rigor prévio ao colapso. E isso está se repetindo aqui, está se repetindo em vários lugares do Brasil, infelizmente. Por isso estou dizendo que não se trata de um erro estratégico, se trata da repetição de um erro.

Sul 21 – Na reunião entre prefeitos e o governador, vários gestores municipais argumentaram que o principal vetor de contágio são as aglomerações e, por este motivo, a atuação do governo deveria ter como foco a coibição desses eventos, mantendo abertos o comércio e os serviços não essenciais. Como avalia essa interpretação?

Alcides Miranda – Nós temos em nossa sociedade, infelizmente, grupos de pessoas que estão se expondo de forma desnecessária e criando condições de transmissão evitáveis. Isso é fato. Mas isso não isenta o Estado de tomar uma iniciativa de intervir, não só no sentido de controlar essas aglomerações, mas de controlar, de modo geral, a circulação de pessoas. Se uma pessoa foi em uma aglomeração e contaminou alguém dentro de casa isso é uma coisa. Se ela continuar a circular com o comércio aberto ou com medidas insuficientes de contenção ela vai continuar replicando o vírus em vários locais. O que os prefeitos estão reclamando e colocando em relevo existe e isso tem que ser controlado. Mas esse fator, isoladamente, não justifica medidas que deveriam ser tomadas e não estão acontecendo. As medidas deveriam ser ampliadas dada a clara evidência do que está acontecendo nos últimos dias.

Sul21 – Há uma compreensão da gravidade do momento por parte dos gestores?

Alcides Miranda – Eu acredito que há. O que não há é uma sensibilidade à questão das pessoas que estão em risco e estão morrendo. Na verdade, há uma pressão do poder econômico. Há um domínio do poder econômico que está fazendo uma pressão para que não haja as medidas necessárias. O poder econômico tem sido muito mais influente junto a esses governantes do que autoridades sanitárias, como epidemiologistas e infectologistas. As pessoas que trabalham com pandemias não têm deixado de alertar e de propor medidas necessárias. A autoridade sanitária é colocada na vitrine para fazer de conta que está sendo ouvida mas, na verdade, quem está sendo preponderante são os empresários. E eles não estão muito preocupados com as vidas e os óbitos que poderiam estar sendo evitados. E é por isso que depois nós vamos ter que discutir quem vai ser responsabilizado, porque alguém vai ter que ser responsabilizado por esse tipo de omissão. Nós temos conhecimento suficiente, do ponto de vista clínico, epidemiológico, de estratégias governamentais e sanitárias e está havendo uma omissão para cumprir essas estratégias. Assim como houve omissão no planejamento para a vacinação. Nós poderíamos estar em um outro patamar se nós tivéssemos adiantado todo o processo, não só de preparação para receber as vacinas, mas também de quebra de patentes.

Sul21 – A ampliação dos leitos de UTI é apresentada como uma solução do governo à crise. Essas medidas podem mitigar os problemas do momento?

Alcides Miranda – Quando o governo do Estado criou esse sistema de bandeiras, ele criou exatamente para poder flexibilizar, porque na medida em que vai se abrindo leitos, vai se justificando não ter rigor nas medidas de contenção para evitar a circulação. Uma forma de evitar o maior rigor é ampliar os leitos. Só que isso não diminui a transmissibilidade do vírus, nós só vamos ter mais pessoas internadas. Se a gente tiver mais leitos, nós vamos ter cada vez mais pessoas internadas. Lá em maio, junho, isso evitou o colapsamento do sistema de saúde. Agora não sei. Agora não sei dizer porque nós temos uma parcela muito pequena da população imunizada, nós temos uma fase ascendente e o mais preocupante é que se o que está circulando agora é uma cepa, uma mutação que tem maior transmissibilidade e maior velocidade para os contágios, isso significa que os casos e as complicações vão acontecer mais rapidamente. Aí não é só uma questão de volume, é uma questão de rapidez. Se ocorrerem muitos casos ou muitas complicações ao mesmo tempo, o sistema de saúde não vai conseguir atender ao mesmo tempo. E aí vai haver um colapsamento. E aí mais óbitos vão ocorrer que poderiam ter sido evitados.

Sul21 – Na tendência atual e com as medidas adotadas nós teremos o colapsamento?

Alcides Miranda – Pontualmente nós já estamos tendo colapsos, não só aqui no Rio Grande do Sul. Estão acontecendo colapsos em serviços específicos em São Paulo, no Rio de Janeiro… Estamos tendo notícias de colapsos localizados. Mas não aconteceu um colapso da rede de serviços. Isso pode acontecer se a gente não tomar medidas nos próximos dias. Alguns governos estão fazendo isso, mas estão fazendo “meia boca”: “Ah, nós vamos fazer restrição das 22h às 6h para evitar festas e aglomerações”. Isso não é suficiente. Não é suficiente porque a circulação do vírus está acontecendo cotidianamente e não somente nessas aglomerações noturnas. E do ponto de vista econômico é uma miopia enorme eles não terem percebido que teria sido muito mais lógico a gente ter feito um lockdown no início para ter uma contenção menor. Nós ficamos olhando para os países que estão tomando essas iniciativas mais rigorosas, vendo os resultados e assistindo as pessoas morrerem aqui com condições que poderiam ter sido evitadas em razão da omissão. E é uma omissão criminosa do governo federal e, no mínimo, negligente dos governos estaduais que poderiam ter feito, pelo menos, o que fizeram em maio.

Sul21 – Outra questão apontada pelos gestores é de que a população precisa retornar ao trabalho, especialmente após o fim do auxílio emergencial. Então, se recoloca o falso embate entre saúde e economia.

Alcides Miranda – O auxílio emergencial, da maneira como ocorreu, foi uma espécie de paliativo. Faltaram medidas mais substanciais do ponto de vista macro e microeconômico para dar sustentabilidade à condução dessa crise. Não houve condução. Da parte do governo federal, claramente, o que houve foi necropolítica. Eu não acho que o governo federal tenha sido inconscientemente incompetente, foi uma negligência intencional. Eu não diria o mesmo dos governos estaduais que tentaram e estão tentando fazer alguma coisa. Mas o problema é que eles são muito suscetíveis ao poder econômico. E o poder econômico não está interessado nesses quantitativos, não está interessado nesses óbitos evitáveis, está interessado em garantir uma condição de funcionamento e não se dá conta de que isso é uma visão de curto prazo. Mas no médio e longo prazo as perdas econômicas serão maiores.

Sul21 – Que medidas deveriam ser tomadas agora?

Alcides Miranda – Quanto aos governantes, confesso que não sei mais o que fazer porque não é falta de alerta. Eu busquei o Conselho Estadual de Saúde, que acionou o governo do Estado em abril, maio, para tentar pressionar e não surtiu nenhum efeito. Eu tenho repetido isso e não tem surtido efeito. Na verdade, no comitê que está gerenciando essa crise, a autoridade sanitária não tem preponderância. Eles vão falar, vão registrar o que disseram, mas vão atender interesses econômicos. E isso aí tem um preço.


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