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1 de outubro de 2012
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08:45

Realidade atropela o Judiciário, diz especialista em Direito LGBT

Por
Sul 21
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Maria Berenice Dias: "Temos que aprender a nos colocar no lugar do outro. Se eu tenho meus direitos preservados, os outros também têm que ter, independentemente de sua identidade sexual" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Samir Oliveira

A ex-desembargadora Maria Berenice Dias, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), coordenou a redação do Estatuto da Diversidade Sexual, que está em fase de recolhimento de assinaturas para ser protocolado no Congresso Nacional. À semelhança dos estatutos da Igualdade Racial e do Idoso, o projeto pretende estabelecer uma ampla gama de direitos à população LGBT do Brasil.

A proposta será protocolada na Câmara de Deputados na forma de um projeto de lei de iniciativa popular, assim como ocorreu com a Lei da Ficha Limpa, que foi aprovada. Para isso, são necessárias assinaturas de 1% do eleitorado brasileiro – ou seja, cerca de 1,4 milhão de apoios.

Nesta entrevista ao Sul21, Maria Berenice Dias fala sobre a importância do estatuto, que criminaliza a homofobia, garante o direito ao casamento civil e à adoção e propõe políticas públicas de proteção aos homossexuais no país. Além disso, ela comenta também o modo como o Poder Judiciário vem tratando as demandas da população LGBT por direitos que existem apenas para os heterossexuais.

“Os fatos atropelam os juízes, batem na cara deles. O fato de não existir uma legislação específica não desobriga o juiz de julgar. Mas claro que a tendência foi sempre não enxergar a realidade, dizer que um casal homossexual não é uma família. Mas essa realidade vem arrombando o Poder Judiciário”, avalia.

Entretanto, a advogada considera que a garantia de direitos pela via jurídica se torna “um calvário” na vida das pessoas – pelo fluxo moroso e incerto das decisões – e acredita que somente com uma legislação consolidada a população LGBT estará amparada no Brasil.

“O estatuto da diversidade sexual não deixa brechas e atende a todos os segmentos, é algo que não existe em lugar nenhum do mundo”

Sul21 – Como surgiu a ideia de redigir o estatuto da diversidade sexual?
Maria Berenice Dias – Não existe no Brasil nenhuma legislação que reconheça qualquer direito a população LGBT. Isso condena essa população a uma invisibilidade muito perversa, como se quem não estivesse dentro do sistema jurídico não fosse cidadão. Com a omissão total do legislador – que é medroso, preconceituoso e tem medo de perder eleições -, as leis não avançam. Os avanços foram conseguidos na Justiça, com decisões que começaram a deferir uma série de direitos em todo o país. Mas somente essas decisões não são suficientes para assegurar direitos. Mesmo com uma sentença de efeito vinculante do STJ reconhecendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, um juiz de primeira instância indefere um pedido, sabe-se lá por quais dificuldades de ordem preconceituosa ou religiosa. Isso acaba gerando um verdadeiro calvário para as pessoas. Se tivermos uma legislação, os caminhos são encurtados.

"Mesmo com uma sentença de efeito vinculante do STJ reconhecendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, um juiz de primeira instância indefere um pedido, sabe-se lá por quais dificuldades de ordem preconceituosa ou religiosa" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Quando o estatuto começou a ser pensado?
Maria Berenice – A ideia surgiu quando me aposentei e comecei comissão de diversidade sexual da OAB, há quatro anos. A proposta era capacitar os advogados para que encharcassem o Judiciário de ações sobre esses temas.

Sul21 – Qual a diferença do estatuto e dos demais projetos que já tramitam no Congresso e reconhecem direitos à população LGBT?
Maria Berenice – Os projetos que existem concedem apenas alguns direitos. O estatuto é uma forma moderna de legislar com princípios, regras, políticas públicas e punição, assim como o estatuto da igualdade racial e o do idoso. São leis específicas para segmentos vulneráveis. O estatuto da diversidade sexual não deixa brechas e atende a todos os segmentos, é algo que não existe em lugar nenhum do mundo. Há um olhar muito especial para travestis e transexuais, que são o segmento mais vulnerável da população LGBT. No colégio, são os maiores alvos de bullying e acabam saindo da escola. Muitas vezes também são expulsos de casa muito cedo.Então eles acabam tendo uma qualificação muito baixa, dificultando a inserção no mercado de trabalho. Além de tudo, o mercado de trabalho não aceita os travestis. Onde enxergamos travestis ou transexuais? Eles não estão trabalhando nos bancos, nas universidades, nem no comércio. Ou a pessoa tem um pendor para um tipo de atividade muito específica, como a de cabeleireiro, ou acaba tendo que se prostituir. Isso gera um ciclo muito perverso, porque as pessoas acabam dizendo que travesti é tudo prostituta.

Sul21 – Como o estatuto pretende resolver esse problema?
Maria Berenice – Está prevista uma cota no mercado de trabalho para travestis e transexuais, na atividade pública. Nos presídios, deve haver um cuidado com o lugar onde essa população fica. Aqui no Rio Grande do Sul, travestis e transexuais ficam em celas separadas, mas ficam dentro de um presídio masculino, quando deveriam ficar no presídio feminino.

“A via judicial está exaurida, precisamos de uma legislação. A melhor maneira é entrar no Congresso escancarando a porta através de um projeto de iniciativa popular”
Exigência de 1,4 milhão de assinaturas para projeto popular de lei é "muito perversa", diz Maria Berenice Dias: "O legislador não faz as leis necessárias e ainda põe uma barreira quase intransponível" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – E por que a opção por protocolá-lo como projeto de iniciativa popular?
Maria Berenice – A Lei da Ficha Limpa teve uma repercussão muito importante. Se entregarmos a apenas um parlamentar um projeto que foi feito por muitas mãos, o destino será o mesmo das demais propostas, que estão até hoje tramitando. O estatuto é um projeto muito amplo, é um movimento de cidadania. Não há outro caminho a não ser uma legislação. A Justiça já fez o que poderia ter feito. O sujeito vai ao Judiciário, consegue uma decisão contrária, recorre, consegue alterar, depois perde de novo… Isso se torna um calvário. Esta via judicial está exaurida, precisamos de uma legislação. A melhor maneira é entrar no Congresso escancarando a porta através de um projeto de iniciativa popular.

Sul21 – Como fazer para conseguir as assinaturas necessárias?
Maria Berenice – É preciso haver uma conscientização das pessoas. Temos que aprender a nos colocar no lugar do outro. Se eu tenho meus direitos preservados, os outros também têm que ter, independentemente de sua identidade sexual. A campanha de coleta de assinaturas está sendo estruturada e um levantamento não oficial estima que tenhamos já 50 mil apoios, o que é um número bastante significativo. Essa exigência de 1,4 milhão de assinaturas é muito perversa. O legislador não faz as leis necessárias e ainda põe uma barreira quase intransponível para que se apresente um projeto de iniciativa popular.

Sul21 – Há algumas críticas ao estatuto vindas, inclusive, de pessoas que defendem os direitos dos homossexuais. Dizem que o projeto é muito amplo e não especifica os tipos de proteção, não diferencia “proteção de discriminação sexual” de “proteção aos homossexuais”.
Maria Berenice – Acho engraçado que essas pessoas que criticam não mandaram sugestões. Se não está bom, então por que não redigem um projeto de lei? A única coisa que o projeto quer é assegurar direitos. Se algo vai ser retirado ou modificado, isso pode ser discutido. Mas não vejo como não unir forças nesse sentido. Ao criminalizar a homofobia, o estatuo protege os homossexuais, não somente as relações homossexuais. O que se deseja é a proteção às pessoas e aos seus relacionamentos. O que às vezes percebo um pouco no movimento LGBT é um discurso vitimista, uma posição confortável que diz: “Coitadinho de mim, não tenho nada”. Tem gente do movimento que critica até os avanços conquistados no Poder Judiciário. Tem uma parcela que é contra a legalização do casamento porque considera que é uma instituição heterossexual falida e conservadora. Mas as pessoas precisam ter o direito de poder optar.

"O que às vezes percebo um pouco no movimento LGBT é um discurso vitimista, uma posição confortável que diz: 'Coitadinho de mim, não tenho nada'” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Outra crítica é que a aprovação do estatuto significaria um retrocesso no PL 122, que criminaliza a homofobia como crime de ódio.
Maria Berenice – O estatuto trouxe para dentro o PL 122, um não enfraquece o outro. Nada impede que a criminalização da homofobia esteja presente no estatuto, isso não enfraquece um projeto que já está tramitando desde 2006 e que agora ficou acéfalo com a saída da senadora Marta Suplicy (PT-SP). Com o estatuto, é o próprio povo que está batendo na porta do legislador, isso tem um significado e uma força política maior.

Sul21 – Apesar de ser um projeto de iniciativa popular, é importante abrir um diálogo com parlamentares afinados à causa. Como estão as conversações?
Maria Berenice – Além desse projeto, foram feitas três emendas constitucionais. Duas estão com a Marta e uma está com o Jean Wyllys (PSOL-RJ). A ideia é buscar todos os parlamentares da Frente LGBT. Mas não queremos chegar ao Congresso agora, com poucas assinaturas. E também temos que deixar passar o período eleitoral, esse não é o melhor momento. A ideia é irmos com maior força no ano que vem, em datas mais sensíveis, como o dia mundial de combate à homofobia.

“O estatuto da igualdade racial não teria sido aprovado sem o apoio dos brancos. Essa é uma legislação para um segmento da população, mas precisa ser apoiada por toda a sociedade”

Sul21 – Depois que o projeto estiver no Congresso, a senhora não teme que ele possa ser modificado e descaracterizado pelos conservadores?
Maria Berenice – É um risco que qualquer projeto corre. Mas com o estatuto será mais difícil, por sua estrutura interna. Além disso, ele vem com o apoio do movimento social. Esse não é um movimento de homossexuais para homossexuais. É um movimento da cidadania. Quem acabou com a escravidão não foi o negro. O estatuto da igualdade racial não teria sido aprovado sem o apoio dos brancos. Essa é uma legislação para um segmento da população, mas precisa ser apoiada por toda a sociedade.

Sul21 – O estatuto frisa a importância de políticas públicas de conscientização sobre a diversidade sexual nas escolas.
Maria Berenice – Nem o kit contra a homofobia avançou no Brasil. O maior grau de vulnerabilidade aos homossexuais está dentro da família. Quando uma criança chama um coleguinha de “viado” na escola, ela está trazendo isso de dentro da sua casa. E o professor não sabe como lidar. É preciso acabar com dia dos pais ou dia das mães nas escolas. Esse não é mais o formato de uma família, se é que algum dia foi.

"O maior grau de vulnerabilidade aos homossexuais está dentro da família. Quando uma criança chama um coleguinha de “viado” na escola, ela está trazendo isso de dentro da sua casa" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – A senhora disse que a Justiça já esgotou sua capacidade de estender de direitos à população LGBT. Mas não foi um pouco surpreende esses direitos terem sido conseguidos pela via judicial, já que o Judiciário é bastante conservador?
Maria Berenice – Os fatos atropelam os juízes, batem na cara deles. Lembro do meu primeiro julgamento sobre um caso assim. Era sobre uma pessoa que viveu com outra por 47 anos. Essa pessoa não tem o direito de receber nada quando seu companheiro morre? Iria ficar tudo para o primo, que tinha horror a ela por ser homossexual? Iria ser uma enorme injustiça. O fato de não existir uma legislação específica não desobriga o juiz de julgar. Mas claro, a tendência foi sempre não enxergar a realidade, dizer que um casal homossexual não é uma família, que um não é herdeiro do outro nem tem direito à pensão previdenciária. Há um escapismo e uma tendência de não reconhecer essas coisas. Mas essa realidade vem arrombando o Poder Judiciário.

Sul21 – A conquista de direitos pelo Judiciário é mais forte em julgamentos de primeira instância ou nos tribunais superiores?
Maria Berenice – A primeira decisão favorável foi do TJ-RS. Quando fiz uma sustentação oral no Supremo Tribunal Federal, disse que já havia mais de mil decisões no país. É um caminho sem volta. Vão fazer o que? Anular os casamentos? O caminho é a legislação. A Justiça avança, mas também esbarra.

Sul21 – Como a senhora avalia a decisão do TJ-RS que, na semana passada, reconheceu, por unanimidade, a possibilidade jurídica do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo?
Maria Berenice – Foi o primeiro tribunal do país que começou a reconhecer direitos à população LGBT. Claro que a jurisprudência não é muito uniforme porque depende do juiz. Esse caso foi julgado pela 8ª Câmara. Se fosse na 7º Câmara, não seria unanimidade, porque tem um desembargador que de jeito nenhum admite essas questões, apesar de toda jurisprudência construída. Essa decisão corresponde à orientação que a Justiça do RS ditou ao Brasil inteiro.

“No Brasil, o mais assustador é que tem aumentado o número de projetos de lei contrários à população LGBT. Na última contagem, havia 62”

Sul21 – O que significaria a aprovação do estatuto pelo Congresso Nacional?
Maria Berenice – O Brasil se tornaria o país onde haveria maior número de garantias à população LGBT. No Canadá a homofobia é criminalizada e o casamento é admitido. Mas não há essa legislação específica sobre todos os aspectos. No Brasil, o mais assustador é que tem aumentado o número de projetos de lei contrários à população LGBT. Temos que estancar isso. Na última contagem, havia 62 projetos contrários, dizendo que homossexuais não podem casar, adotar… Tem até projeto querendo anular a decisão do Supremo. Esse segmento conservador está tão articulado no Congresso que não duvido que esses projetos não sejam aprovados. Tem projeto até defendendo que todas as salas de aula do país tenham uma bíblia. Eles são perniciosos, articulados e com dinheiro. Colocam os fiéis em grau de dependência e estão dominando os meios de comunicação. Já tomaram conta dos conselhos tutelares. É uma organização extremamente profissional que só avança. Parece que o Estado não acorda para isso.


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