Revolução Russa -- 100 anos
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3 de julho de 2017
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11:39

XIX — A crise de Julho

Por
Sul 21
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Fernando Horta

Julho foi o estopim de uma série de revoltas contra o governo provisório, ainda composto pela aliança entre os antigos políticos imperiais (Outubristas) e os mencheviques. Julho marca o fim deste chamado “governo dual”, reportando-se ao arranjo citado. Mais do que apenas um arranjo político, em Julho ficam claras as limitações do governo provisório. No campo, a demora em liderar uma reforma agrária profunda levou a que os camponeses se pusessem a fazer as reformas eles mesmos. Nas cidades, os planos de tomada do controle proletário das fábricas tinham no governo um forte opositor. Buscando ainda uma concertação como caminho para reorganizar a Rússia, o Governo Provisório não estava disposto a perder o apoio do capital e, tampouco, gostaria de lidar com a pressão internacional, caso o plano das desapropriações das fábricas fosse levado a cabo.

Crise de julho em Petrogrado. Cartazes contra o “governo autoritário” e pedindo “todo poder aos soviets”. | Foto do museu estadual de História Política da Rússia

Também pelo conservadorismo, mas não só por ele, o Governo Provisório mantinha as demandas de mudanças mais profundas em compasso de espera, enquanto tentava rearticular uma concertação de classes. Este “caminho do meio” terminou por desgostar a todos os lados, erodindo o apoio ao gabinete. Se no campo e nas fábricas o governo claramente não conseguia se impor, o mesmo ocorria quanto com relação ao exército. Várias foram as tentativas de retomada da hierarquia e disciplina, com vistas a reorganização das frentes de combate do exército russo. Todas, entretanto, terminaram no embate entre o poder de fato (que estava com os soviets) e os antigos oficiais russos.

Há muitas discussões sobre o caráter da Crise de Julho de 1917. Conforme o autor, ela é vista desde um golpe fracassado dado pelos bolcheviques, até uma erosão catastrófica do poder do Governo Provisório de que se aproveitaram uma série de lideranças sem coordenação para um movimento de massas espontâneo. Seja como for, o fato é que em 3 de julho (16 no nosso calendário) dezenas de milhares de soldados e trabalhadores, a maioria armados, saíram às ruas e entraram em combate com a polícia ou os cossacos. As exigências eram a imediata retirada da Rússia da guerra, rompimento total com o governo provisório (chamado de burguês) e o famoso brado “Todo poder aos Soviets”. Os bolcheviques estavam alheios ao movimento até seu início. Segundo Robert Service, Lênin teria sido “acordado” por um oficial militar no dia 4 de julho (17) contando sobre os levantes contra o governo provisório.

Famosa foto do 4 de julho em Petrogrado quando o governo, usando metralhadores, abriu fogo contra a população. Foto de K. Bulla

Kerensky imediatamente culpou e perseguiu os bolcheviques, acusando-os de incitação à baderna e à violência. Se é verdade que os bolcheviques apoiaram o movimento, queriam o movimento e até se beneficiaram do movimento, parece mais evidente, hoje, que eles não tiveram capacidade de se aproveitarem da força social que explodiu. Os bolcheviques vieram a reboque das movimentações. Mesmo o slogan “Todo poder aos soviets”, de Lênin, foi entendido como melhor ser escondido durante o Sexto Congresso Nacional dos Soviets, ocorrido naquele mês.

Trotsky, que voltara de Nova York para a Rússia em maio de 1917, vai ser preso durante a crise de julho e finalmente se juntará aos bolcheviques, por convite pessoal de Lênin. Numa demonstração de coragem, é de Trotsky o discurso que evitou que as “Jornadas de Julho” se tornassem ainda mais sangrentas. Dirigindo-se diretamente aos marinheiros do Krondstat que, armados queriam linchar os ministros do governo provisório (em especial Chernev) em Petrogrado, Trotsky diz “Vocês vieram, vocês os homens vermelhos de Krondstat, tão logo ouviram sobre o perigo que ameaçava a revolução. Longa vida aos vermelhos de Krondstat, a glória e o orgulho da revolução!”.

Capa do jornal “Zhivoe Slova” (Palavra Viva) de 06 de julho de 1917 afirmando que Lênin era um espião alemão. “Сообщение о том, что Ленин, Ганецкий и Ко командированы в Россию немцами и оплачены немецкими деньгами — ОФИЦИАЛЬНО” (Anunciamos que Lênin, Hanecki e Cia. foram mandados para a Rússia pelos alemães e são pagos com o dinheiro deles – OFICIALMENTE)

Nas memórias de Nikolai Sukhanov, sobre a revolução, ele testemunharia o improviso de Trotsky e o perigo de que eles mesmos fossem chacinados pela população enfurecida com qualquer palavra errada. Trotsky continuaria: “Vocês vieram até aqui para mostrar seu desejo e demonstrar ao soviet que a classe trabalhadora não quer mais ver a burguesia no poder. Mas por que manchar a sua própria causa? Por que deveriam escurecer e tingir sua história usando violência indiscriminada sobre civis? Cada um de vocês mostrou sua devoção à revolução. Todos estão preparados para morrer pela revolução. Eu sei disto! Me dê sua mão, camarada! Me dê sua mão, meu irmão …

Nos dias seguintes, o Governo Provisório, destituído das antigas lideranças nobres, iria denunciar Lênin como um “espião” alemão, prender vários bolcheviques, como Trotsky e Kollontai e obrigar Lênin ao exílio para não ser morto. Se o Governo Provisório agora estava nas mãos de Kerensky, os bolcheviques finalmente ganhavam a energia e o carisma de Trotsky. As forças se reorganizavam no tabuleiro da Revolução. E se a posição dos bolcheviques não parecia confortável, ficava cada vez mais patente que o governo provisório não conseguiria reunir condições de governar.

Lênin disfarçado buscando o exílio em função das prisões e perseguições do governo provisório após a Crise de Julho de 1917

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Fernando Horta é professor, historiador, doutorando na UnB.


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