Opinião
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16 de abril de 2024
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06:55

Perfect days: Wim Wenders e o gesto da arte na vida (Coluna da APPOA)

Cena de Perfect days, de Wim Wenders (Foto: Divulgação)
Cena de Perfect days, de Wim Wenders (Foto: Divulgação)

Lucia Serrano Pereira (*)

 Ainda sob os efeitos do belo filme de Wim Wenders, as impressões vão se desdobrando, as associações acontecendo. O paradoxo que se apresenta já na saída.  A vida de Harayama, o faxineiro dos banheiros públicos de Tóquio, vida repetitiva, trabalho constante de limpeza dos restos, do lixo e do nojo (nosso, não dele) em limpar o tempo todo o banheiro dos outros, justo o banheiro público que no mais das vezes é um lugar atirado, coisa pelo chão, restos das ressacas e da falta de papel, do molhado na frente dos vasos, dos entupimentos, e tudo o mais.

Ao mesmo tempo a experiência do viver, da poesia, da lírica nos gestos, nas expressões, na canção desde The house of the rising sun até o calor da voz de Nina Simone em Feeling good. Tocar na beleza da vida, fazer esse reconhecimento, mesmo que fugaz. É o paradoxal que faz o enigma e a chegada ao espectador: algo se transmite do ato criador quando estamos diante da arte. Arte na vida.

Na saída do filme, certa alegria misturada com um inexplicável alívio. De onde o alívio, pensava… Acho que o principal vem dessa sensação de que se toca algo da experiência do viver em sua grandeza, sem que esse encontro precise do imperativo de uma pauta extraordinária. Não os grandes feitos, as viagens maravilhosas, o prazer dos incríveis objetos de consumo do nosso mundo. Há como acessar esses momentos limiares pela simples implicação e reconhecimento do que  nos constitui, nos fala, nos emociona.

Harayama vive um ritual cotidiano que Wim Wenders nos faz percorrer. Acordar, dobrar a cama, regar (amorosamente) suas plantinhas, escovar os dentes vigorosamente, descer, pegar um café de máquina, entrar na camionete. Sua pequena casa abre para um pátio de garagem, na primeira cena tudo nos parece meio feio, aparência de precariedade…

Outro gesto que abre o dia (depois da água nas plantas): a escolha da fita cassete (!) que vai tocar no caminho, e aí sim, temos notícia de algo ainda difuso mas que entra pela música e pela câmera colada ao rosto de Harayama, que faz desse simples trajeto como que a travessia de um portal. É entre a noite e o nascer do sol, é zona limiar que concentra uma intensidade incomparável, mistério do “estar ali”. There is a house in New Orleans, they call the rising sun, And it’s been the ruin of many poor boy, And God, I know I’m one

E inicia-se o encontro com Tóquio. A cidade, um tema caro a Wim Wenders em seus filmes. Lisbon story é o meu preferido, onde o personagem cineasta chega a Portugal para  busca o amigo desaparecido em Lisboa.  Quais pistas seguir para achar o parceiro? Ele faz isso a partir dos sons da cidade, áudio que foi registrando o ruído das  ruas, das águas, das vozes, através dos barros e recantos de Lisboa – fitas que o amigo gravou desses sons da cidade para o filme que estavam por fazer juntos. Espécie de mapa sonoro gravado, deixado no quarto abandonado e que acaba sendo o material que vai orientando agora a “viagem” do recém chegado por Lisboa, para nortear sua própria descoberta, o roteiro da sua busca, a procura do amigo ( e de si, nesta trajetória).

Agora se trata da cidade de Tóquio pelo que parecem ser as highways que passam por fora, por cima das ruas,  que acompanham os grandes cruzamentos das  linhas de trem, ou que descem para a rua comum como em qualquer outro lugar, não fossem os escritos, tabuletas, neons, outdoors que marcam para nós a escrita absolutamente outra, sem traço de familiaridade exercendo o fascínio do estrangeiro…

Acompanhamos nosso tokyo man pelas paradas em diferentes banheiros de praças, em limpar e escovar os vasos como quem cuida de verdade, nos cantinhos, nos fios embutidos, quando escovar não é o mal-estar, é sua tarefa, e que ele executa e toma conta à perfeição.

A música de suas fitas cassetes – sempre nos trajetos por Tóquio – fazem também o transporte, por vezes, de um tom melancólico em suas canções. Sometimes I feel so happy, some times I feel so sad, but mostly you make me mad…

Harayama é um solitário, mas isso não quer dizer viver sem o outro. As cenas vão apontando, ele ajuda o menininho que ficou sozinho fechado no banheiro, a quem dá a mão e o leva até a mãe. O jovem parceiro de trabalho que precisa desesperadamente de uma ajuda para conquistar uma namorada. A sobrinha que chega de surpresa para ficar com ele em função de uma briga com a mãe ( o tio a recebe em casa, cede o lugar do quarto e fica espremido entre o armário e a máquina de lavar do quarto de limpeza). E, passada a surpresa da vinda está tudo bem, ele adora o encontro, e ela o acompanha na peregrinação desse dia seguinte pelos banheiros, ajudando, fazendo companhia, testemunhando algo de sua vida. A sobrinha de certa forma faz a ponte entre os dois mundos, o familiar e este do “the Tokyo toilet” man, titulo escrito em seu macacão de trabalho. A irmã ele não encontra há anos. Vemos que tem uma história de ruptura por ali, que resta sem esclarecimento maior, mas é quase evidente. Quando a mãe vem buscar sua filha, então, Harayama em um gesto de surpresa, dá um abraço na irmã, e ela se vai no carrão luxuoso, contraste com o lugar, a rua e a vida do irmão.

Encontro silencioso com a presença do outro – ele lanchando e a garota no banco ao lado, a poucos metros. Se olham, é um constrangimento mas também uma curiosidade, registro do estarem ali, lado a lado. Capturado pelo movimento das copas das árvores, do céu que compõe a cena, do vento e de seus murmúrios, ele fotografa, a cada vez. Máquina  digital, foto preto e branco, e o prazer desse ato. Também o de colher um broto de planta para levar e plantar cuidadosamente em casa. Mais uma para regar e ver crescer.

Um conjunto de cenas marca de forma especial esse “encontro com outro” através do jogo da velha. Em uma de suas limpezas encontra entre a fresta do mármore da pia e a parede um papel dobrado, o “hashtag” de um jogo da velha iniciado. Ele então faz o seu lance, escreve o x em outra casa (o que já vinha traçado era o círculo no meio), e recoloca o papel no mesmo lugar. No dia seguinte já encontra o movimento escrito do outro (novo círculo em um dos ângulos). Estão jogando juntos! E por aí vão partilhando o prazer da brincadeira sem se conhecerem, mas com os intervalos e a espera desejosa da sequência de quem tem parceria no jogo.

De noite os sonhos recolhem também os restos: trajetos e trajetos das ruas passando rápidas e  desfocadas pelo olhar, a mão do adulto segurando a mãozinha da criança, a sombra, as folhas das árvores balançando.

Harayama lê Faulkner todas as noites, as duas ou três páginas que atravessa antes do livro cair da mão pelo cansaço. Livros de um dólar, do sebo que frequenta. Palmeiras selvagens, o livro. Imaginei que era desse amor dele pela natureza, algo assim, ele sempre atento às folhas, às arvores, às plantas… Baixo o livro no kindle e me surpreendo pela narrativa que de bucólica não tem nada, New Orleans, a trama difícil de um casal, a história de condenados, um mundo perturbado.

Ainda Perfect days nos leva pelos trajetos fora de casa, o estranhíssimo ( para nós)  espaço dos banhos compartilhados de Tóquio onde ele vai ( o banho não é em casa); o restaurante que frequenta que é um boteco na estação do metrô ( mas onde encontra acolhimento). E, em algumas noites, o restaurantezinho onde tem o amor por uma mulher que atende, talvez a dona, e que canta divinamente.

Lembro aqui,  de Giorgio Agamben, “A aventura”. No sentido em que a aventura tem, na Idade Média, relação com a experiência do cotidiano ( do cavaleiro/poeta), e não de algo extraordinário. Sua andança, o que lhe acontece no caminho, e como lidar com isso. Depois narrar. O evento indissociado da sua narrativa. É muito recente na história, com a entrada na modernidade,  que a aventura tenha sido empurrada para um nicho do superlativo, do extraordinário. A composição da experiência: não o que está na vivência de um desfile de acontecimentos, mas, o que importa – o que fazemos com essas vivências. Composição de experiência, lembrando aqui W.Benjamin.

No nosso filme vale considerar o tanto de narrador na figura do diretor, de Wim Wenders e suas  escolhas. Não temos – e isso é também inusitado – nada da experiência interior de Harayama, nada de dialogo interno, seus pensamentos. É da sutileza dos gestos, de uma leve nuance de sorriso, de preocupação, de perplexidade, de angústia, de alívio ou de satisfação…Dos sonhos, também breves, discretos, de alguns toques.  E o destaque tão especial que é a alegria suave que se esboça em seu rosto a cada vez que abre a porta para o dia que vem.

Assisti de novo o documentário de Wim Wenders de 1973, Tokyo-Ga. Registro maravilhoso do amor de Wenders pela cidade de Tóquio, uma outra Tóquio já marcada pela distância no tempo, e por tudo o que mudou. A Tóquio da década de setenta, onde ele quer destacar o cinema de quem nomeia como seu mestre, sua grande referência: o cineasta Ozu. Estilo de Ozu que  também incide fortemente sobre o cotidiano comum, do pequeno detalhe que navega no meio da repetição.

Dias perfeitos, e isso é mesmo um espanto, foi um filme encomendado a Wim Wenders pela prefeitura de Tóquio, com o interesse de revitalizar certa valorização do trabalho e dos espaços dos banheiros públicos da cidade. Não é que ele tenha escolhido o faxineiro dos banheiros públicos para metaforizar algo fundamental ou crucial das nossas existências, como o que poderia ser, sabe-se lá,  nosso lixo, nossos restos e o mundo contemporâneo, por exemplo. Mas é uma mágica de criação o que ele inventa com isso, torção da encomenda, criação em arte e sim, terminando por tocar algo crucial da nossa existência.

E Nina Simone canta para Harayama  e para nós, ao final, de novo adentrando Tóquio no amanhecer:

 Birds flying high, you know how I feel

Sun in the sky, you know how I feel

Breeze driftin’ on by, you know how I feel

It’s a knew dawn, it’a new day

It’s a new life for me, ooh

And I’m feeling good

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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