Opinião
|
16 de abril de 2024
|
15:36

Entre os dois golpes de abril, tanto mar, tanto mar…(por Carlos Frederico Guazzelli)

Foto: Joedson Alves/Agência Brasil
Foto: Joedson Alves/Agência Brasil

Carlos Frederico Guazzelli (*)

Este mês assinala o transcurso, no Brasil e em Portugal, de 60 e 50 anos, respectivamente, de dois fatos extraordinários, que definiram a história contemporânea destes países. Curiosamente tratam-se, ambos, de golpes de estado, promovidos por militares. Mas acabam aí as coincidências – pois estes episódios têm motivações e finalidades não apenas diversas, mas até mesmo opostas. Por sua relevância, convém recordá-los e, sobretudo, destacar as circunstâncias que os revestiram e suas consequências, presentes até os dias de hoje.

Quanto ao primeiro, o putsch desfechado no “dia da mentira” há seis décadas – instalando entre nós uma ditadura militar que se seguiu por mais de vinte anos, com a ativa participação das oligarquias nacionais e apoio de parcelas dos extratos sociais médios – cabe trazer à colação o inventário de suas perversas realizações. Conforme a síntese do jornalista gaúcho Luiz Cláudio Cunha, reproduzida por Juremir Machado da Silva em “1964-golpe midiático-civil-militar”, durante o regime ditatorial aproximadamente meio-milhão de pessoas foram investigadas, das quais duzentas mil foram detidas sob suspeita; onze mil cidadãos e cidadãs foram submetidos a inquéritos por comissões civis ou militares; 707 processos foram instaurados perante a Justiça Militar Federal, contra mais de seis mil pessoas, acusadas da prática de “crimes contra a segurança nacional”; mil e oitocentos destes réus foram ali condenados, sendo quatro deles à morte (penas ao depois comutadas para prisões perpétuas); três ministros do Supremo e cinquenta juízes foram cassados; quase quinhentos parlamentares tiveram seus mandatos cassados, o Congresso Nacional foi fechado em três ocasiões e sete Assembleias Legislativas colocadas em recesso; cerca de mil e duzentos funcionários públicos civis foram cassados, e mais de mil e trezentos militares foram reformados compulsoriamente; mais de dez mil brasileiros e brasileiras foram forçados a exilar-se, e cento e trinta pessoas foram banidas do território nacional; 1202 sindicatos sofreram intervenção militar e 245 estudantes universitários foram expulsos.

Esta contabilidade trágica da ditadura de ’64 não permite mascarar sua natureza brutal, como alguns tentaram fazer, inclusive na mídia oligopólica, que se comportou como cúmplice dos golpistas – antes, durante e depois do golpe. 

Além do mais, durante o período excepcional, o País sofreu retrocesso em todas as áreas em que experimentara avanços nos anos anteriores, não apenas nas esferas política e econômica, mas também na cultura e em todos os domínios da vida social – desde a urbanização desordenada, marcada pelo inchamento das cidades grandes e médias e a submissão das populações periféricas a péssimas condições de vida; até o aprofundamento da já indecente concentração de renda, direcionando os frutos do crescimento econômico exclusivamente às burguesias urbanas e às oligarquias rurais.

Não bastasse isso, persistem até nossos dias, como efeitos deletérios da ditadura implantada há sessenta anos, algumas práticas e rotinas, bem como ideologias e instituições – conforme foi apontado neste espaço, em quatro artigos publicados ao longo dos meses de fevereiro a abril de 2015, sob o título “As sequelas da ditadura”. Cabe mencioná-las aqui, mesmo de passagem – a começar pela sofisticação e institucionalização da tortura, que evidentemente já existia, nos aparelhos repressivos do Estado, não só nas polícias, mas também nos presídios, penitenciárias e estabelecimentos para detenção de adolescentes.

Da mesma forma, a militarização das antigas forças públicas dos estados, transformadas em “forças auxiliares do Exército”, cujos oficiais e praças são ainda hoje formados sob a famigerada “doutrina da segurança nacional”. Cabe lembrar que consiste a mesma em ideologia estruturada à base do conceito de “inimigo interno”, sujeito construído discursivamente, que estaria diluído entre a população – não mais os “subversivos”, ou “terroristas” da época ditatorial, substituídos no presente pelos “marginais”, ou “bandidos”, ou simplesmente “vagabundos”. Não por outra razão, nossas polícias estão entre as mais violentas e letais do mundo, tendo como alvo de suas ações repressivas seletivas, os habitantes das populosas periferias de nossas cidades, em especial os jovens pretos e pardos.

Outro legado da ditadura de ’64 é o aprofundamento do processo de concentração dos meios de comunicação de massa, por meio do favorecimento a grupos familiares regionais, donos de jornais, revistas e rádios que, além de participaram ativamente na preparação e defesa do golpe, depois da assunção dos golpistas ao poder apoiaram, até mesmo materialmente, a repressão criminosa por eles desencadeada contra seus oponentes – como é o caso da Folha de São Paulo. 

Merece registro também, ao lado da oligopolização da mídia, o aviltamento da atividade parlamentar – que, como outras instituições da democracia liberal, foi mantida de forma caricata e controlada pelos ditadores, como mecanismo de descompressão interna e tentativa de justificação externa do regime. A exemplo da violência policial, a corrupção política sempre existiu – mas foi institucionalizada com a redução da vida parlamentar ao tráfico de influência e negócios com fornecedores ou prestadores de serviços ao Poder Público.

Em direção diametralmente contrária, o movimento que culminou em Portugal, há cinco lustros, com a deposição forçada da ditadura que subjugava este país há quarenta e oito anos, foi responsável pela reinstalação da democracia – cuja efetivação acarretou desde então a modernização da sociedade lusa, nos moldes da Comunidade Europeia, que passou a integrar alguns anos depois do “25 de Abril”. Convém recordar que a nação portuguesa, depois das turbulências políticas que marcaram, nas duas primeiras décadas do século XX, o fim da monarquia quase milenar e a adoção do regime republicano, sofreu em 1926 um golpe militar que entronizou no poder um obscuro professor – António Salazar.

  Homem de ideias profundamente reacionárias, esteadas no autoritarismo político e no clericalismo mais retrógrado, tratou ele desde o início de manter e aprofundar uma ditadura feroz, avessa radicalmente às demandas das classes populares, e presa a um tradicionalismo social e cultural que manteve a maioria da população lusitana na pobreza e no atraso. Não por acaso, um grande contingente de portugueses, antes e depois da 2ª Guerra Mundial – conflito no qual o ditador, malgrado sua indisfarçável simpatia para com os nazifascistas, teve que manter a neutralidade, para não perder os Açores aos aliados – emigrou para outros países da Europa, para as colônias africanas e, principalmente para o Brasil. Aliás, as remessas financeiras dos emigrados e a exploração dos recursos naturais de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé- e-Príncipe, eram essenciais para a economia da metrópole.

Internamente, toda potencial dissidência era brutalmente reprimida por uma polícia política – a famigerada PIDE – que funcionava à maneira dos sistemas repressivos fascistas – vigiando, censurando, perseguindo, prendendo, torturando e até matando os adversários do regime, reais, potenciais ou imaginários.

Por certo, há várias causas para o fim a ditadura salazarista – que continuara mesmo depois da doença e morte de Salazar, no final dos anos 1960, com a assunção à chefia do governo de seu sucessor, Marcelo Caetano. Depois de quase meio século de atraso e isolamento, o regime vinha-se deteriorando notavelmente, sobretudo em função do desgaste, pessoal e material, decorrente da guerra colonial promovida contra os movimentos que buscavam a independência das colônias na África.

Neste particular, foi decisivo o papel dos jovens, muitos deles universitários, recrutados compulsoriamente para servir como oficiais nas tropas portuguesas que ali lutavam – e que constituíram na clandestinidade o “Movimento das Forças Armadas”, responsável por desencadear no final de abril de 1974, o golpe militar que acabou com o auto-denominado “Estado Novo”. Inicialmente sob a liderança de António de Spínola, um general populista, que se destacara nos anos anteriores na administração de Guiné-Bissau, e depois sob o governo dos “capitães de Abril”, a vida democrática foi sendo restabelecida, com o retorno dos exilados, a legalização dos partidos políticos proscritos na ditadura e o fim da guerra colonial, concedida a independência às antigas possessões africanas.

Houve inicialmente um período de intensa disputa de projetos entre os novos atores do processo político, durante o qual, inclusive, o governo revolucionário aprovou um programa de nacionalizações e de reforma agrária – o que gerou instabilidade, superada com as eleições gerais realizadas em 1976, vencidas pelo Partido Socialista, cujo líder, Mário Soares, torna-se então o primeiro-ministro. Desde então a centro-esquerda, representada pelos socialistas – que são na verdade social-democratas – e a direita democrática – liberais e conservadores – têm-se revezado à testa de governos que ampliaram e efetivaram a democracia, e modernizaram o país, sobretudo depois de seu ingresso na Comunidade Europeia em 1986.

Como se procurou demonstrar com a sucinta revisão histórica acima feita, desde o final do século passado, Brasil e Portugal percorreram trajetórias diferentes, na busca da consolidação das instituições democráticas – como condição imprescindível à coexistência pacífica e civilizada de seus povos. E idêntica ameaça paira sobre ambas as nações: a investida da nova ultradireita fascista – que, aliás, também avança em vários outros países da Europa e da América.

Com efeito, do lado de cá do Atlântico, mesmo derrotado eleitoralmente e acuado fortemente pela Justiça, o neofascismo bolsonarista permanece atuante e ameaçador; e na outra margem do Oceano, nas eleições legislativas ocorridas no mês passado, a versão lusitana da extrema direita teve inédita e expressiva votação, atingindo cerca de um-quinto do eleitorado votante. E não por mera coincidência, para tanto foram também favorecidos pela recaída lavajatista do Ministério Público português, seguida da precipitada – ou deliberada – atitude presidencial, em dissolver o Parlamento e convocar novo pleito eleitoral.

Como se vê, não é apenas entre nós que a associação lamentável do moralismo punitivista com o oportunismo politico, leva água ao moinho do neofascismo. No recente episódio português, ao menos serve de consolo saber que a direita democrática adotou a lúcida decisão de não aceitar aliar-se com os inimigos da democracia.

Seria mais do que desejável que nossos sedizentes liberais seguissem esse exemplo, inclusive como forma de purgar os graves pecados cometidos nos últimos anos – ajudando a chocar o ovo da serpente do fascismo.   

(*) Carlos Frederico Barcellos Guazzelli é Defensor Público aposentado, foi Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora