Opinião
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7 de novembro de 2023
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06:30

O que pode um dizer contra a força bruta? (Coluna da APPOA)

Faixa de Gaza Foto:  Majdi Fathi/16October
Faixa de Gaza Foto: Majdi Fathi/16October

Roséli Olabarriaga Cabistani (*)

Em 1932, a Liga das Nações e o Instituto de cooperação Intelectual, órgão criado após a primeira guerra mundial, propôs a Einstein endereçar uma carta a uma personalidade de sua escolha, para suscitar um debate com tema sugerido por ele. Einstein escolheu como seu interlocutor Sigmund Freud e o tema escolhido foi a guerra. 

Há um caminho para libertar os seres humanos da guerra? – perguntou Einstein a Freud. 

O que é uma guerra?  Todo o horror que a cultura civilizada proíbe fica permitido.  O que nos torna humanos fica suspenso. A resposta de Freud revela algo que costumamos ignorar, ele afirma que na formação de nossas sociedades, as leis são formas de conter a violência destinada a eliminar todo aquele que se oponha ao poder de uma comunidade. Quando esse pacto civilizatório é rompido temos a matança indiscriminada. É aqui oportuno trazer as palavras do personagem de Tabajara Ruas, o general farroupilha, Antônio de Souza Netto, na sua escrita impactante: 

“Eu matei índios. Matei negros. E matei brancos. Mais do que tudo, matei castelhanos: uruguaios, argentinos, paraguaios, chilenos. Matei portugueses. Matei galegos. Aqui neste quarto eu ficava matutando comigo mesmo nessa gente toda que matei e me dava um peso enorme no coração, sargento. Acho que buscava um pretexto, queria justificar, dar um sentido decente a essa sangueira toda, mas a razão falta quando a gente se lembra de tanto sangue. A gente quer se lembrar por que matou tanto e pensa nas ideias, nas grandes palavras, e não acha resposta que valha a pena tanto sangue…” (Ruas, Tabajara. Netto perde sua alma, p.149, 1995)

Os homens voltavam das guerras sem palavras, emudecidos, sem possibilidades de dar conta de uma experiência que os arremeteu para fora da cultura civilizatória, essa que permitia reconhecerem-se como parte de uma comunidade de falantes, de humanos. 

A preciosidade da troca de cartas entre Einstein e Freud está na aposta no uso das palavras para pensar um acontecimento que aboliu o poder das palavras. 

O que podem as palavras contra as armas? Qual o seu potencial disruptivo diante de algo que se apresenta como dado e gerador de impotência? 

No discurso cotidiano nos deslocamos numa lógica dual, em pares de opostos onde aparentemente cada um precisa situar-se num ou noutro lugar, ser contra ou a favor; ou se é bom ou se é mau. A partir dessa lógica se produz a violência. Nos enunciados fixos fica excluída a possibilidade da enunciação, isto é, do dizer. Não convivemos bem com os paradoxos. Na sociedade dos influencers, temos um império de imagens planas, totalitárias, que supostamente estabelecem tudo que precisamos e podemos almejar na vida. Quem não teme a “lacração” nos dias de hoje? A busca das curtidas nas redes denuncia o fascínio pelo império das tiranias do Outro. 

A experiência psicanalítica nos ensina que em toda  imagem há um resto não reconhecido que tem sua função de cortar esses ideais. É por essas fendas, através dos restos refratários aos ideais alienantes que podemos encontrar lugar de palavras e de subversão. 

O inconsciente é linguagem, mas também comporta algo que nos cinde, que abre um furo impossível de ser preenchido, determinando o dizer, que nos impulsiona constantemente a bordear, com nossas produções fantasísticas, nossos desejos, sonhos e invenções. 

Há menos de três anos vivemos uma pandemia de proporções mundiais, que no Brasil nos atingiu de forma traumática, especialmente pelo descaso governamental, que veio a se somar ao horror de uma doença desconhecida que levou milhares de vidas. Parece muito fácil esquecer tantas mortes. Ledo engano. Freud nos advertiu que longe da ideia do senso comum, de que o tempo cura todos os males, o trabalho de luto requer lembrar, transformar o vivido em experiência compartilhada, para poder seguir a vida. 

Aparentemente, o sofrimento coletivo compartilhado a partir da pandemia da covid 19, criou uma espécie de trégua nos conflitos internacionais. Parecia que o mundo que renasceria disso seria melhor, mais solidário. 

Nós psicanalistas fomos convocados a testemunhar tanto sofrimento, tanta angústia, que precisamos pensar na função ética da psicanálise em circunstâncias tão devastadoras. Ainda não saímos totalmente disso e já nos deparamos com outros acontecimentos destrutivos, que ameaçam nossa humanidade e a própria continuidade da vida. 

Com frequência excessiva deixamos de ver e nos indignar com a miséria e a violência que está perto de nós, na periferia, na vida dos pobres, negros e indígenas do Brasil. 

Nossa tarefa, além de emprestar escuta e testemunho, o que não é pouco, precisa incluir o desafio de encontrar frestas de respiro e subversão, que a irredutibilidade do inconsciente, constituído de linguagem e sua abertura a uma verdade não-toda podem legar. 

Estes são alguns temas a abordar, nas Jornadas Clínicas que a Associação Psicanalítica de Porto Alegre estará realizando, no teatro Unisinos, dias 10 e 11 de novembro. Maiores informações e inscrições através  do site www.appoa.org.br

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, doutora em Educação e professora a da UFRGS- [email protected] 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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