Opinião
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28 de novembro de 2023
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06:00

A ficção nossa de cada dia (Coluna da APPOA)

peça 'Ficções', estrelada por Vera Holtz (Divulgação)
peça 'Ficções', estrelada por Vera Holtz (Divulgação)

Gerson Smiech Pinho (*)

Em sua “Interpretação dos Sonhos” (1900), Freud escreve que a realidade psíquica não deve ser confundida com a realidade material. Ao traçar essa linha divisória, o pai da psicanálise coloca em evidência o fato de que nossa experiência não coincide com a mera existência concreta e factual. A subjetividade comporta uma porção desconhecida e inabordável de modo direto, o inconsciente, revestido por uma fina película de certezas que compõem a imagem que construímos de nós mesmos e da realidade que nos circunda. As certezas que estruturam nosso “eu” se sobrepõem como as cascas de uma cebola que, quando retiradas, deixam à mostra um núcleo vazio.

A peça “Ficções”, que esteve em cartaz em Porto Alegre nas últimas semanas, não deixa de ser uma experiência de suspensão momentânea do invólucro de certezas que acondicionam nossa realidade. Baseado no livro Sapiens e magnificamente estrelado por Vera Holtz, o espetáculo escrito e dirigido por Rodrigo Portella consiste num monólogo que desconstrói gradualmente os fundamentos que alicerçam nossas convicções cotidianas e embasam nossa humanidade.

A palavra ficção é facilmente associada à ilusão, àquilo que se opõe à realidade, a algo irreal e inexistente. No entanto, de modo inverso, trata-se aqui de conceber a realidade constituída de modo ficcional, fundada na rede de certezas que compõem o sentido mais imediato que configura nosso cotidiano, da religião ao capitalismo. Enquanto a protagonista se metamorfoseia em uma série de figuras – como um asno, um ramo de trigo e um rei, passando por Deus –, o enredo da peça se desenrola em torno de uma gigantesca massa disforme que se aloja no fundo do palco, que ora lembra uma pedra sobre a qual são projetadas imagens, ora evoca um cérebro com sua superfície irregular e acinzentada.

A certa altura do enredo, outro objeto vem fazer companhia a esse primeiro: uma grande moldura de metal surge em meio ao palco e enquadra a cena que se desenrola. Nesse ponto, não deixamos de pensar o quanto nossa experiência imediata é emoldurada pela porção de ficções que fabricamos e que, ao mesmo tempo, nos constituem. Como se o quadro da realidade fosse simultaneamente pintado e habitado por nós – moldura que enquadra a cena do mundo mas que bem poderia ser a de um espelho, que reflete aquilo que percebemos de nós mesmos. Repentinamente, tem-se a impressão de que a gigantesca estrutura irá tombar e alcançar a plateia, signo da queda da envoltura ficcional a qual somos convidados a experimentar no transcorrer da peça. O ponto culminante é atingido quando se explicita o sofrimento e o padecimento do corpo da personagem principal, acompanhado de uma afirmação veemente: – “Isto não é ficção!”.

Na peça, ocupa um lugar peculiar o “ponto”, ou seja, aquela pessoa que exerce a função de auxiliar os atores a lembrar do texto – uma espécie de “cola” caso a fala seja esquecida. Se, tradicionalmente, o “ponto” encontrava-se em um lugar oculto em relação à plateia, em “Ficções”, está visível no canto do palco. Se tomarmos a cena do palco como metáfora da cena do mundo, a peça explicita o quanto aquilo que dizemos não tem nada de autônomo, mas é sustentado por um lugar outro, que sussurra as palavras que orientam nosso destino.

Possivelmente o caráter ficcional da realidade nunca tenha ficado tão evidente como em nosso tempo, com o contraste de universos de sentido tão díspares habitados pelas pessoas. Fundam-se mundos quase opostos e, por esta mesma razão, tão semelhantes. Uma pluralidade de opiniões e crenças proliferam no interior das “bolhas” que aderem de forma instantânea às certezas que lhes convém, quase sempre com a exclusão do pensamento.

Assistir a “Ficções” oportuniza uma experiência da qual se sai extremamente tocado, não somente carregado de questões mas embalado por uma intensa emoção. Impossível não ficar profundamente afetado por este espetáculo. Evidentemente, as interpretações contidas nesse relato não tem qualquer pretensão de esgotar a totalidade da peça. Trata-se da pequena ficção que construí, após assisti-la.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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