Opinião
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24 de outubro de 2023
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07:10

Racismo e Vergonha (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Carolina Mousquer Lima e Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

Recentemente, tivemos a satisfação de escutarmos Isildinha Baptista Nogueira e Dalva Maria Soares. Foram duas atividades muito potentes promovidas pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre [1]. Ambas, por diferentes percursos e estilos, foram acolhedoras ao mesmo tempo em que sacudiram seus interlocutores, sobretudo aqueles que estavam em condições de reconhecer o racismo que lhes habita e dispostos a aprender com quem tem a vivência a transmitir. 

Isildinha [2], ao falar de seu livro A cor do inconsciente significações do corpo negro, deixa claro um princípio ético necessário nessa discussão: somos todos racistas. Trata-se de uma fala que toca numa verdade, especialmente, porque ela, na condição de mulher negra, teve a sabedoria de se incluir na sua própria afirmação, convocando-nos à responsabilidade de pensar o quanto o racismo nos diz respeito. Com fala serena, olhar firme, uma experiência de vida incrível, seguida de escuta analítica refinada, pode-se dizer que ouvir a sua intervenção foi um acontecimento de corpo. 

Como alguém consegue criar um ambiente de confiança a ponto de tocar tão profundamente nos nossos racismos e preconceitos sem despertar paixões? Como, ao apontar o racismo nas instituições psicanalíticas, a potência de sua delicadeza, nos fez, responsavelmente, sentirmos vergonha? Estamos falando de uma vergonha civilizatória que convoca o empenho coletivo para que possamos agenciar mudanças imprescindíveis. Isildinha nos lembra algo que tanto Freud, quanto Lacan já haviam apontado: a culpabilização superegóica produz paralisias e resistências das mais diversas ordens, ao passo que a responsabilidade pode ser subversiva e transformadora, pois convoca a posição desejante de cada um.

Dalva Maria Soares [3], no evento Racismo e Vergonha, começa falando de sua leitura de Annie Ernaux, lembrando-nos de que a autora, em diversos de seus livros (O lugar, A vergonha, O acontecimento, Paixão simples e O jovem), toma o tema da vergonha como fio condutor de sua escrita. Percorrendo desde a vergonha de classe, passando pela vergonha de namorar alguém quase trinta anos mais jovem, a vergonha de se relacionar com um homem casado, passando, até mesmo, pela vergonha de ter realizado um aborto. Dalva fala da relevância dessa mulher que tem a coragem de falar das mazelas humanas, desvelando, assim, as nossas feridas. No entanto, ela observa a importância de contextualizarmos o tema haja vista a nossa condição de brasileiros, pois na pobreza que Ernaux narra, há dignidade. Como diz Dalva:

“Mas, ainda falta um elemento, porque agente está falando de uma mulher branca, europeia. A pobreza que Ernaux narra nos livros dela ainda é uma coisa completamente diferente do que é a pobreza pra nós, a pobreza aqui no Brasil. Porque tem uma dignidade ali. Tem uma casa, tem comida, é uma coisa diferente de ser um pobre europeu, ainda que seja no pós-guerra, e de ser um pobre no Brasil. E mais do que isso: de ser um pobre descendente de escravizados”.

Ao falar de sua origem mestiça, Dalva nos diz que o descendente de negro no Brasil parece viver numa eterna diáspora. Ela chama a atenção para uma questão fundamental, qual seja: “A vergonha da origem”. Trata-se de uma violência tão cruel que implica “negar as próprias raízes negras”. Isso terá seus impactos subjetivos, especialmente, porque a pessoa vai sofrer racismo e não saberá se defender. Por isso, “a importância de ter orgulho das suas origens e saber se defender frente ao racismo”, pois, “uma das primeiras crueldades do racismo é negar quem você é”. 

Dalva, em sua fala testemunho, destacou também a vergonha de ser pobre, no seu caso, a vergonha dos colegas que possuíam banheiro em casa. Seu avô teria começado a construir um banheiro quando ela ainda era criança, mas não pôde terminá-lo. Marcas profundas que relançaram o desejo indestrutível: “Há 57 anos sonho com um banheiro que não foi terminado”. Ela nos lembra não só de se ter orgulho para transpor a vergonha, mas também da importância de sonhar, pois “a vergonha que entrecruza essa questão de raça e de classe é muito cruel”. “Isso molda a subjetividade. Curar essas feridas, às vezes, a gente leva uma vida inteira e não consegue”. 

Apesar de apontar a gravidade das vergonhas que carregamos ao longo de uma vida, ela teve a generosidade de compartilhar a sua saída: “A literatura me curou”. “Duas coisas que me fizeram ter orgulho de quem eu sou e parar de ter vergonha – Guimarães Rosa e a Antropologia”. Dalva e Isildinha nos transmitiram o quanto a dignidade, o orgulho, a coragem, os livros e as parcerias que estabelecemos ao longo de uma vida podem realmente ser agentes de transformação.   

Priscilla de Souza, psicanalista que estava presente nessa conversa com Dalva, ao reconhecer o poder transformador da “literacura”, propõe pensarmos que, talvez, “O avesso da vergonha, seja a criação”. Inspirada na literatura de Dalva e na transmissão de Lacan, ela nos convoca de um lado à criação; de outro, a urgência de enegrecer a psicanálise. Priscilla não deixa de apontar “a falácia de fazer crer que um consultório de psicanálise é imune a raça”, bem como, de compartilhar seu afeto: “Sinto que é vergonhoso que tudo esteja assim, branco no branco”.

A vergonha de viver: a transformação do significante em signo é obscena

Depois de termos o privilégio de escutarmos a potência da fala destas três mulheres negras, lembramos também, do Seminário de Lacan O avesso da psicanálise, precisamente, da lição de 17 de junho de 1970. Lacan, ao discutir o lugar da vergonha na clínica psicanalítica, se interroga sobre como o analista se ocupa dessa questão na condução de uma análise, pois ela não é simplesmente um afeto que nos toma de assalto em determinados momentos, ou ainda, em alguns instantes que somos desnudados diante do olhar do Outro. A vergonha, ao transformar o significante em signo, é obscena. Sendo assim, ela flerta com a morte, pois coloca em causa a vergonha de viver. Portanto, seu impacto pode ser atemporal e direcionar a vida do envergonhado ao longo de sua trajetória, sobretudo, quando ele sente vergonha do que supostamente lhe falta diante do olhar dos outros.

Em relação ao racismo, enquanto psicanalistas brancos, não sabemos o que a inscrição da cor no corpo produz, tanto naquilo que diz respeito às suas consequentes privações, quanto as suas proliferações imaginárias e inscrições simbólicas. Por mais que possamos ler e pesquisar sobre o tema, jamais saberemos. Para que possamos “tocar” um pouquinho nisso, precisamos escutar o testemunho destes que sofrem na pele, no olhar do outro e na alma, os efeitos desse saber sobre um corpo que muitas vezes é tomado de forma violenta e obscena, como signo. 

Desde o nosso ponto de vista, os psicanalistas brancos que, curiosamente, em sua esmagadora maioria, se dizem não racistas, prestam um desserviço a essa discussão quando tendem a reduzir o racismo a questões imaginárias. Como se estivesse em questão a frustação social do sujeito decorrente do dano imaginário de um suposto objeto real. Ainda que não seja essa a intenção, essa posição pode sustentar uma política de dominação, pois tende a colocar o outro numa posição persecutória. A branquitude em seu pedantismo colonizador supõe saber, até mesmo, aquilo que desconhece.  

Diante do pudor que busca recobrir nossa ignorância, que possamos dar lugar a vergonha do racismo que nos habita. Certamente, isso não se trata de um dever de exigência em relação aos nossos pares. Nesse sentido, estamos diante de uma questão de ordem ética, do lugar que ocupamos na linguagem, de como nos endereçamos ao outro e lidamos com o saber, ou ainda, o saber fazer com a castração. Como disse Lacan: “o verdadeiro habitat dos ser falante é sua falta a ser”. Então, que a falta se converta em desejo, inclusive, esse pode vir a ser um dos destinos de uma análise. 

Inventários de vergonhas: “um passinho à frente, por favor.”

A palavra inventário tem ao menos dois sentidos. O de catálogo ou lista e o de uma descrição detalhada daquilo que herdamos. Que vergonhas você já sentiu? E quais vergonhas você herdou? Queremos, ainda, propor um terceiro sentido: de que sejamos inventários. Que saídas você já inventou para as suas vergonhas? 

Seguindo a esteira de Lacan, começamos pela vergonha de existir. Podemos descrevê-la como uma vergonha que nasce ao vermos o espanto no olhar do outro. Não um espanto que poderia significar uma curiosidade pela diferença, mas um tipo de espanto de quem vê no outro um horror, uma aberração. Trata-se de um olhar paralisado e ofendido. Nessa cena, quem é olhado com espanto sente-se devendo um pedido de desculpas, mas sem nada ter feito para ofender o outro além de existir. A vergonha de existir, de existir desse jeito

Uma menina diante dessa cena nos conta que percebeu que ao não desviar o olhar conseguia retornar aquele olhar de horror para a pessoa que a olhava. Ela inventou uma forma de devolver a vergonha para quem a olhava. 

Além da vergonha de existir, há também a vergonha que nasce do desprezo social. Frédéric Gros, no livro “A vergonha é um sentimento revolucionário”, nos fala desse afeto como um embate doloroso com o mundo do dinheiro, do bem-estar, das referências culturais que nos distanciam ou, ao contrário, denunciam uma origem humilde. 

Uma senhora costureira, envergonhada diante das clientes abastadas que lhe davam ordens de forma pouco educada, dizia, em uma espécie de vingança: “quem muito manda, melhor faz”. Em resposta à vergonha, ela inventava uma vingança íntima, orgulhando-se de que as clientes, apesar de dar ordens, não saberiam nem como pregar um botão. 

Mas o saber-fazer da senhora costureira foi perdendo seu valor. A incidência do capitalismo sobre o discurso do mestre produz uma usurpação do saber-fazer, transformando-o em um saber teórico, científico e asséptico. Nasce assim o proletário que, além de explorado, é destituído daquilo que lhe conferia algum valor, seu saber-fazer. Do desprezo social deriva-se, então, a vergonha de pertencer à classe trabalhadora.

Essa vergonha costuma ser experimentada em espaços intelectualizados. A Psicanálise, é claro, não está fora disso e também corre o risco de ser asséptica, rebuscada, abstrata, a ponto de se descolar da clínica e da vida das pessoas, tornando-se não só refém de um discurso universitário, mas também se afastando do seu caráter subversivo. Não seria isso uma vergonha para a Psicanálise? 

Aí chegamos novamente ao racismo. Como explicar que autoras como Isildinha Baptista Nogueira e Cida Bento tenham esperado mais de 20 anos para que suas provocações sobre a cor do inconsciente e sobre o pacto da branquitude, pudessem ser acolhidas para o debate entre psicanalistas e não relegada ao campo da polêmica? Autores como Neusa Santos Souza, Frantz Fanon, Virginia Bicudo e Lélia Gonzalez foram por anos ignorados nos círculos psicanalíticos. A presença coletiva, e não mais do lugar de exceção, de pessoas negras nas Universidades, descortinam um epistemicídio. Apenas um exemplo das vergonhas que nossa branquitude produz e que começamos a conhecer. 

O que parece estar acontecendo é isso: as pessoas negras aprenderam a devolver a parte da vergonha que nos cabe. O que nós, brancos, faremos com esse desconforto? Seria interessante que pudéssemos inventar outras saídas diferentes daquelas já conhecidas: a irritação com o tema, a negação, a defesa no estilo “tenho até um amigo negro” ou de que todas as vidas importam.  

Muitas respostas estão sendo construídas coletivamente, de forma que possamos não nos deixar paralisados ou estacionados na constatação. Obviamente, haverão desencontros, pois, como psicanalistas, não nos cabe prescrever o que se deve fazer, mesmo porque, cada um irá encontrar o limite do que está disposto a perder para avançar no laço social. Mas, sabemos que alguma dimensão de perda se dará de qualquer forma. Logo, recusar as suas vergonhas é ser solidário com a covardia moral do neurótico. Isso também tem seu preço e costuma ser alto. 

E se a saída só se faz pelo movimento coletivo, vale lembrar a clássica frase que se ouve no ônibus, quando ele está cheio o cobrador nos pede para criar espaço, porque tem gente querendo e precisando subir também: “Um passinho à frente, por favor”. Muitas vezes a gente fica lá parado achando que não tem como se mover. Mas sempre tem como, porque alguns vão descendo e se todo mundo der um passinho, mesmo sem saber para onde, a gente cria no coletivo um espaço que parecia impossível.

Notas

[1] O encontro com a Isildinha, Leituras na Biblioteca, a partir de seu livro: A cor do inconsciente significações do Corpo Negro, ocorreu no dia 23/09/23, atividade promovida pela Biblioteca da APPOA, Linha de trabalho: Psicanálise, racismo e políticas étnico-raciais e Correio da APPOA. Contou também com a participação do colega Abrão Slavutzky, psicanalista e autor do prefácio do livro de Isildinha. Ver aqui . A atividade Racismo e Vergonha foi um evento promovido pelo seminário Retorno a Lacan e o coletivo Palavra Aberta (atividades do quadro de ensino da APPOA), realizado no dia 14/10/23, contou também com a participação das psicanalistas Carolina Mousquer Lima, Priscilla Machado de Souza, com mediação do psicanalista Alexei Conte Indursky. Ver aqui.

[2] Psicanalista, formação nos Ateliers de Psychanalise, em Paris, doutora em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano – USP.

[3] Doutora em Antropologia Social, escritora, autora de: Para diminuir a Febre de sentir (Venas Abiertas, 2020), Do Menino (Venas Abiertas, 2021) Me ajuda a olhar! (no prelo).

(*) Psicanalistas, integrantes da APPOA

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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