Opinião
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1 de agosto de 2023
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09:48

O duplo papel das commodities nos governos Lula (por Flavio Fligenspan)

Guerra na Ucrânia reconfigurou cadeias produtivas globais (Imagem: Pixabay)
Guerra na Ucrânia reconfigurou cadeias produtivas globais (Imagem: Pixabay)

Flavio Fligenspan (*)

As críticas mais rasteiras sobre os dois primeiros mandatos de Lula vinculam seus bons números na economia apenas ao ambiente internacional favorável, em que se verificaram aumentos de preços e de quantidades exportadas, principalmente de commodities agropecuárias e minerais. A China foi a grande demandante destas mercadorias no mundo inteiro naquele período e o Brasil se beneficiou muito desta conjuntura, melhorando todos seus indicadores externos, acumulando reservas e resolvendo problemas históricos com a dívida externa.

Não há nada de errado em ter um cenário internacional positivo, e realmente isto favoreceu a economia brasileira sob Lula entre 2003 e 2010, ainda que no final do período tenha ocorrido a grande crise financeira global, a partir de setembro de 2008, com efeitos negativos sobre o Brasil. Porém, não só de resultados externos positivos se construíram os dois primeiros Governos Lula. Houve inúmeras iniciativas com excelentes resultados no plano doméstico que são “esquecidas” pelos críticos. As mais importantes foram: aumento real do salário mínimo; implantação dos Programas Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida; expansão do emprego, com ênfase no formal, dado o aumento da fiscalização; o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC); e expansão significativa do crédito; todas com consequências muito positivas sobre o crescimento e a distribuição de renda.

É interessante observar que os aumentos de preços internacionais das commodities daquela época traziam dois efeitos antagônicos sobre a inflação brasileira: por um lado, aumentavam os preços domésticos destas mercadorias, mas, por outro, o grande volume de divisas geradas com as exportações em alta, além dos resultados já comentados sobre o Balanço de Pagamentos e sobre a dívida, acabou por valorizar a moeda nacional, o que ajudou a controlar a inflação via preços dos produtos importados. O efeito colateral negativo desta valorização do real foi sua contribuição para a continuidade do processo de desindustrialização da economia brasileira, algo que já vinha acontecendo desde os anos 1980.

Agora, em 2023, vinte anos depois do início de Lula 1, o cenário externo é bem diferente. A pandemia e a invasão da Ucrânia reconfiguraram cadeias produtivas globais, alteraram preços relativos mundo afora, e estão mexendo com a organização geopolítica do mundo. O resultado de curto prazo foi o aumento da inflação, a alta dos juros e uma perspectiva de crescimento bem mais contida para quase todos os países, inclusive os grandes compradores de commodities, como a China. O novo ambiente traz um comércio internacional menos aquecido e uma fase de redução de preços de commodities depois do ciclo de alta de 2021 e 2022.

Diferentemente de Lula 1 e 2, quando os preços das commodities estavam elevados, a queda atual é prejudicial ao Brasil, um país exportador destas mercadorias? Se a questão central fosse a geração de dólares para cumprir compromissos externos e/ou acumular reservas, a resposta seria sim. Mas, como visto, esta não é uma preocupação desde quando o ciclo de vinte anos atrás mudou o quadro de nossas contas externas. Talvez o maior indicador desta nova fase seja o chamado risco-país, um indicador que expressa o grau de confiança do sistema financeiro internacional no Brasil. Pois bem, esta variável atingiu nos últimos dias seu nível mais baixo, cerca de 200 pontos. Ou seja, um título de dívida brasileiro paga hoje no mercado internacional 2 pontos percentuais de juros acima do que paga um título americano de características semelhantes. Vale lembrar, como curiosidade, que em setembro de 2002, quando parecia que Lula ganharia sua primeira eleição presidencial, o risco-país subiu a impressionantes 2.400 pontos.

Contudo, se as contas externas não têm mais a importância que tinham no passado para o equacionamento da política econômica brasileira, a inflação continua sendo um tema de destaque. Neste caso, preços internacionais das commodities em baixa, associados a uma safra agrícola recorde, são uma excelente notícia. Suas repercussões recentes nos índices de inflação já são visíveis, com o item “alimentação no domicílio” pesando a favor de preços médios menores, tanto pela relação direta dos grãos (soja e milho) com o custo de vida das famílias, como pela sua influência nos custos menores da ração animal, principalmente de aves e suínos.

Por outro lado, a moeda nacional vem passando por um processo de valorização nestes últimos meses, tanto em função dos juros muito altos – que atraem recursos externos –, como pelo aumento da confiança internacional, que se expressa inclusive na entrada de recursos para investimento direto ou produtivo. Obviamente, esta valorização ajuda a conter os preços dos importados e, portanto, diminui a inflação. Porém, tudo indica que esta valorização já chegou no seu limite, depois de sair de R$ 5,4/dólar no meio de 2022 para R$ 4,7/dólar atualmente. 

Enfim, se o País passou a depender muito menos dos dólares gerados no comércio internacional, especialmente pela exportação de commodities, melhor que elas estejam com preços em baixa, porque estas mercadorias ainda pesam na inflação. O lado negativo desta nova conjuntura é que perdemos os estímulos das rendas de exportações de commodities para o crescimento do PIB, pelo menos os estímulos vinculados à variável preço, porque os derivados das quantidades continuam atuando, especialmente os vinculados a safras recordes de grãos. De qualquer forma, Lula 3 já lançou várias ações no plano doméstico para fomentar o crescimento e a distribuição de renda. Se o ambiente internacional não for tão favorável, o que restará à crítica rasteira?

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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