Opinião
|
14 de junho de 2023
|
05:50

Sobre câmeras corporais policiais, políticas da visualidade e uma perspectiva abolicionista (por Roberta da Silva Medina)

Polícia Militar de São Paulo com câmeras nos agentes policiais. Foto: Governo do Estado de São Paulo / Divulgação
Polícia Militar de São Paulo com câmeras nos agentes policiais. Foto: Governo do Estado de São Paulo / Divulgação

Roberta da Silva Medina (*)

Após estudo divulgado pela Fundação Getúlio Vargas, que constatou que o uso de câmera nos uniformes e viaturas resultou na redução de violência policial, o tema passou a ser amplamente discutido no país. A última decisão do STF, que reiterou a obrigatoriedade de sua adoção pelas polícias do Estado do Rio de Janeiro, incluindo o próprio Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), juntamente com a implementação de medidas de compartilhamento das imagens digitais e demais informações com o Ministério Público, Defensoria e familiares das vítimas, foi bastante comemorado pelos movimentos sociais progressistas. No Rio Grande do Sul, o projeto de lei sobre a obrigatoriedade de seu uso em uniformes e viaturas, de coautoria dos deputados do PSOL Luciana Genro e Matheus Gomes, tramita na Assembleia Legislativa do Estado. Além disso, no mês de maio, o governo estadual realizou uma nova licitação para o aluguel da tecnologia. Os movimentos sociais vislumbram uma possibilidade de disputa de narrativa a partir das imagens, ou até mesmo uma resposta institucional às crescentes preocupações vocalizadas sobre o uso de violência pela polícia, o que deverá se desenrolar nos próximos meses no âmbito judiciário. 

Narrativas semelhantes se dissiparam na parte norte do globo principalmente depois da morte de George Floyd em 2020, ponto de eclosão do movimento “Black Lives Matter”. A nova transparência policial e sua consequente passividade de ser registrada a qualquer momento, inclusive por câmeras celulares (prática chamada de “sousveillance”), é entendida por alguns como capaz de expor práticas violentas à sociedade com uma proporção que não era possível anteriormente, em comparação principalmente com os meios de mídia tradicionais. Essa exposição e transparência seriam capazes de transformar as relações assimetrias de poder entre a polícia e a população, possibilitando uma mobilização mais ampla (Mann & Ferenbok, 2013; Goldsmith, 2010). De modo semelhante, as câmeras corporais auxiliariam nessa nova “visualidade policial”, sendo um elemento a mais capaz de comprovar a violência policial.  Alguns aspectos chamam atenção no que está por trás dos (nem tão novos) anseios por essa política de vigilância.

“Nem tão nova” porque, sob uma perspectiva criminológica, a visualidade como forma epistemológica de produção de verdade sobre o que se considera “perigoso” tem sido uma constante. O corpo e sua imagem há muito tempo têm sido posicionados como uma ferramenta para identificar e classificar aquilo que se entende como desvio ou criminalidade (Hood, 2020).  Cesare Lombroso, um dos mais famosos expoentes da criminologia positivista, utilizava fotografias em suas análises para identificar biotipos físicos de potenciais criminosos, considerados como “criminosos natos”. Simone Browne (2015) afirma que a formação histórica da vigilância não está dissociada da formação histórica da escravidão. Browne expõe como as práticas de vigilância não estão restritas ao Estado moderno liberal, mas têm operado desde os tempos coloniais contra corpos racializados de pessoas escravizadas. Nessas práticas, o corpo é tomado como ‘prova’ ao buscar essa suposta verdade corporificada

O campo visual é uma forma epistemológica de produção da verdade. A visualidade é um ponto crucial na criação da prática discursiva da historicização do Ocidente e da Modernidade (Mirzoeff, 2011). O caso das câmeras corporais foi muito discutido no norte global, pois sua utilização começou ao menos desde 2017 nos Estados Unidos. Pesquisadores demonstraram como esses “dispositivos de criação de imagem” enquadram os encontros policiais de forma específica, o que pode favorecer a interpretação e o ponto de vista da polícia em relação aos demais (McKay & Lee, 2020). Isso porque o ponto de vista está situado em primeira pessoa, o que estimula experiências cognitivas e psicológicas entre os espectadores, como a identificação com a posição e o movimento da câmera em seu campo de ação implícito (McKay & Lee, 2020). Dito de outro modo, a câmera acoplada ao corpo pode produzir imagens que reforçam o ponto de vista da polícia, não alcançando as forças mais amplas envolvidas no poder policial, ou seja, o ponto de vista assumido exclui outras possibilidades de observação. Devemos nos questionar acerca do que foi excluído e quais são os efeitos dessa exclusão. 

No entanto, e aqui parece ser o ponto mais radical (no sentido de que vai às raízes), não há como falar sobre aquilo que enxergamos sem falar das dimensões racializadas das políticas da visualidade e a produção de imagens que nos cercam diariamente. A relação histórica e constitutiva entre raça e visualidade circunscreve uma epistemologia na qual enxergar é acreditar, por meio de uma observação que se pretende “racional” e “objetiva”. Sob essa ode inquietante e perturbadora sobre aquilo que vemos, Denise Ferreira da Silva (2007) entende a eterna repetição do corpo negro caído no chão (Flauzina, 2006) como expressão de momento colonial-racial fora do tempo. Como não causa revolta? Qual é o arsenal de conhecimento da modernidade que justifica essa eterna repetição? Refletindo sobre o caso Rodney King ¹ , por sua vez, Judith Butler (1993) se questiona como um vídeo pode ter sido utilizado enquanto “evidência de que o corpo sendo agredido era ele mesmo a fonte do perigo, a ameaça de violência?” A própria Butler afirma, em conclusão, o que é visto é sempre de partida uma questão do que certa episteme racista produz como visível. 

À vista disso, me questiono se possa ser um pouco ingênuo pensar que esse novo aparato de visualidade e transparência envolto na polícia não vai servir para reafirmar construções do corpo racializado como inerentemente perigoso. Não que a intenção de disputa de narrativa não seja válida, mas será suficiente para estancar a política racista e militarizada de produção morte já normalizada no Brasil? Penso isso enquanto recordo que, na semana passada, circulavam nos jornais e nas redes sociais uma filmagem de (novamente) um corpo negro amarrado pelos pés e mãos e sendo carregado por policiais, numa representação estética quase caricata do imaginário imagético colonial escravocrata. Quando acionado o judiciário, a magistrada concluiu que não houve excesso na conduta policial, muito menos tortura. A visualidade é uma armadilha, nos lembra Foucault (2002). O que é isso que legitima de forma tão escancarada o inaceitável? Como disputar a narrativa sobre aquilo que é Real?

É uma questão de reinvindicação do direito ao real enquanto política democrática. Desafiar a lei que sustenta a autoridade para justificar seu próprio senso de “ordem” e “direito” (Mirzoeff, 2011). Alguns pesquisadores estão adotando aquilo que chamam de “método fantasma” (Mirzoeff, 2002; Glasbeek, 2022) para endereçar uma política de visualidade que nos permita enxergar também o que é invisível – nos forçando a uma análise temporal e espacial que as presenças assombrosas do colonialismo, da escravidão e do patriarcado são sempre relevantes no enquadramento naquilo que é visto, vestígios de violência como presenças palpáveis que exigem de nós uma prestação de contas. Isso inclui, justamente, enxergar o poder policial em seus fundamentos: criado para assegurar e fabricar uma ordem de mundo capitalista e desigual. É uma questão escrachada para quem tem olhos de ver – seja em sua atuação na produção de morte de corpos negros como continuum, em seu papel de suporte ao encarceramento em massa, ou ainda na defesa irrestrita da propriedade privada. Que possamos aprender a multiplicar modos de ver abolicionistas, para além do sempre renovado desejo por soluções reformistas.

Nota

[1] O caso Rodney King foi um incidente de brutalidade policial ocorrido em 1991, nos Estados Unidos. Rodney King, um homem negro, foi brutalmente espancado por quatro policiais brancos da Polícia de Los Angeles após uma perseguição de carro. O ataque foi capturado em vídeo por um morador local. 

Referências:

Butler, J. (1993). “Endangered/Endangering: Schematic Racism and White Paranoia”, in R. Gooding-Williams (ed). Reading Rodney King/Reading Urban Uprising (Routledge), 15-22.

Browne, S. (2015). Dark matters: On the surveillance of blackness. Duke University Press.

Da Silva, D. F. (2007). Toward a global idea of race (Vol. 27). U of Minnesota Press.

Flauzina, A. L. P. (2006). Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro.

Foucault, M. (2002). Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes.

Glasbeek, A. (2022). The Haunting of Surveillance Studies: Seeing, Knowing, and Ghostly Apparitions. Surveillance & Society, 20(4), 364-371.

Goldsmith, A. J. (2010). Policing’s new visibility. The British journal of criminology, 50(5), 914-934.

Hood, J. (2020). Making the body electric: The politics of body-worn cameras and facial recognition in the United States. Surveillance & society, 18(2), 157-169.

McKay, C., & Lee, M. (2020). Body-worn images: Point-of-view and the new aesthetics of policing. Crime, media, culture, 16(3), 431-450.

Mann, S., & Ferenbok, J. (2013). New Media and the power politics of sousveillance in a surveillance-dominated world. Surveillance & Society, 11(1/2), 18-34.

Mirzoeff, N. (2002). Ghostwriting: working out visual culture. Journal of visual culture, 1(2), 239-254.

Mirzoeff, N. (2011). The Right to Look: A Counterhistory of Visuality, Durham: Duke University Press.

(*) Doutoranda em Socio-legal Studies na York University, Canadá. Email: [email protected]

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora