Opinião
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9 de maio de 2023
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07:15

“A arte do erro” (Coluna da APPOA)

Reprodução
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Lucia Serrano Pereira (*)

Minha leitura do momento, mais um livro de Maria Negroni, agora podemos comemorar, com publicação no Brasil. A arte do erro, com textos/ensaios que surpreendem sempre, como também a escrita que se estende por seus outros livros. Conheci Maria Negroni em Buenos Aires, onde trabalhamos juntos, colegas argentinos e brasileiros em um Colóquio de  psicanálise tendo como tema O estranho. Texto freudiano rico com a linha de tensão que articula estranho/familiar, que permite transitar da clínica à toda uma linhagem literária que dialoga com o caminho da literatura gótica. Maria Negroni, escritora argentina tem aí uma grande produção, entre elas o livro Museu negro, onde perpassa essa literatura que tem a ver com um costado do Iluminismo, a greta, a fenda, a sombra que acompanha as luzes.  Faz ali também um desdobramento buscando a relação com o cinema com relação  à estética do filme noir. Podemos ainda lembrar seu premiado Galeria fantástica, onde trabalha sobre textos fundamentais na literatura latino-americana do século XX ( As hortências, de Felisberto Hernández, A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, Cortázar, Silvina Ocampo, entre outros), lendo a literatura fantástica da América Latina também como uma deriva da literatura gótica. 

Um dos livro que mais me encanta é Pequeño mundo ilustrado, onde apresenta pequenos verbetes, diversidades que partem sempre de um detalhe, do lugar para o fragmento de onde se abre uma ideia, uma interrogação, e, fundamentalmente, uma perturbação. Uma espécie de mapa-museu que evoca o estilo, certa herança benjaminiana lembrando Paris capital do século XIX.  Bonecas, Edgar Alan Poe, Miniaturas, Golem, Duplos, Diorama, Manequins, Caixinhas, Bibliotecas, Hoffmann, Ilhas, e além. E na base de tudo isso a questão da criação, da relação criador – obra, da arte que ao mesmo tempo em que se produz não para de por em questão os conflitos que estão envolvidos nesta operação.

Agora em A arte do erro inicia por questionar, em literatura, mas na arte em geral, as tentativas que buscam a classificação das obras em categorias, em gêneros e em escolas nesse campo onde, segundo ela, não se encontram outra coisa do que aventuras espirituais de artistas e autores. Onde a paisagem que interessa, diz, tem a ver com a linguagem, com a prática de cada um em por à prova sua vontade de criar e o encontro com os limites de seu exercício na aventura da linguagem, que são também, os limites de seu próprio mundo. 

“Assim a escrita busca sempre o mesmo: rebelar-se contra o automatismo e as petrificações do discurso, que cancelam o direito à dúvida, limitando às criaturas o acesso à sua própria inadequação.” 

A escrita e a literatura como possibilidades desordenadoras das acomodações e que convidam a cada um, escritor e leitor, podemos pensar, a se perder (assim como Walter Benjamin nos lembra de que para conhecer uma cidade é preciso deixar-se perder nela, como podemos nos deixar perder em uma floresta).

E nessa direção escolhe falar a partir da leitura de autores que nem sempre aparecem nas vitrines ou nas mesas mais expostas das livrarias; mas que são aqueles que lidam de perto com o desafio de escrever perto das bordas e dos limites, ali onde quase pode faltar a linguagem, onde mesmo lidam com a falta de linguagem como riqueza no exercício de localizar o vazio; fugazes, transversos, que com seus movimentos desafiam as petrificações e as tentações dos sentidos únicos.

O “errar” aqui é precioso, é próximo à falta, ao equívoco, que nos devolvem as possibilidades dos outros sentidos, das polissemias, das errâncias, da criação.

Poetas e escritores, começando por Arthur Rimbaud – A invenção do deserto; seguindo por A enciclopédia mágica de Walter Benjamin; Bruno Schulz -Amadurecer rumo à infância; Emily DickinsonA miniatura incandescente, e outros.

Ao final, fina escrita em torno da questão da tradução, que intitula Música nômade: a tradução em sete verbos. Que serão ler, exilar-se, transferir, ouvir, amar, criar e desmentir.

Leitura que nos embarca em uma viagem que beira sempre o risco, onde o principal vem de sua aposta: “a experiência literária representa um modo radical de liberdade”.

 “[…] a palavra poética é transversal, anônima e desorientada. Por isso é também, inesperadamente, política e necessária”.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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