Opinião
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13 de março de 2023
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15:49

Serra gaúcha, polo bolsonarista (por Luiz Marques)

Em fevereiro de 2023, mais de 200 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão atuando na colheita da uva em Bento Gonçalves. Foto: Divulgação/PRF
Em fevereiro de 2023, mais de 200 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão atuando na colheita da uva em Bento Gonçalves. Foto: Divulgação/PRF

Luiz Marques (*)

A existência de trabalho análogo a escravo, na cidade serrana que leva o nome do patriarca da Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul, Bento Gonçalves, envolveu uma empresa terceirizada (Fênix Serviços e Oliveira & Santana) e três importantes e renomadas vinícolas (Salton, Aurora e Cooperativa Garibaldi). Depois que alguns neoescravizados conseguiram fugir em busca de auxílio das autoridades, mais de duzentos trabalhadores foram libertados de ambientes degradantes em que eram monitorados por câmeras nos cubículos de uma pousada, alimentados com comida estragada, submetidos a choques elétricos, sprays de pimenta e espancamentos para cumprir uma jornada de labuta exaustiva, com até 16 horas, sem receber salários. 

A empresa contratada recusou um acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT) para pagar R$ 600 mil de indenização pelo moderno escravismo, e vai recorrer à Justiça. Rejeita a acusação de trabalho forçado, apesar das evidências e dos testemunhos. Sob a ótica patronal, parece que tudo se afigurava “normal”, mesmo em desacordo com a legislação trabalhista. O MPT lista incumbências das vinícolas sobre as sevícias nos empregados para a colheita da uva. Os vinicultores imaginavam se safar com notas de indignação tardias, como se nada tivessem a ver com as fartas violações à Declaração Universal dos Direitos Humanos, das Nações Unidas. Melhor cair na real, e compensar o sofrimento das mulheres e dos homens arregimentados a dois mil quilômetros, na Bahia. É o que fizeram as vinícolas, ao subscrever um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), comprometendo-se a pagar uma indenização de R$ 2 milhões para os trabalhadores e destinar R$ 5 milhões para um fundo de combate ao trabalho neoescravo. Estava na hora.

O Centro de Indústria, Comércio e Serviços bento-gonçalvense tentou justificar a situação com um sofisma rasteiro. Acusou as políticas sociais, a exemplo do Bolsa Família, de retirar do mercado a população ativa que teria passado a sobreviver à sombra dos programas governamentais. A ginástica mental dos representantes do Produto Interno Bruto (PIB) local, se insulta o senso comum, ilustra o contexto político social e cultural em que sucederam os tristes acontecimentos de barbárie. A Serra tornou-se um polo bolsonarista. O falso messias venceu em 47 das 49 municipalidades, na eleição. Não espelhou o resultado obtido na capital gaúcha e arredores. 

O segundo turno das mais populosas cidades da região foi emblemático. Em Caxias do Sul, Jair Bolsonaro fez 66,43% dos votos contra 33, 57% de Lula da Silva. Em Bento Gonçalves, fez 75,89% contra 24,20% respectivamente. Em Nova Pádua, o recorde: 92,96% chancelaram o genocida. As urnas captaram o preconceito antipolítica de tendências neofascistas (xenófobas), neoconservadoras (discriminatórias) e neoliberais (aporofóbicas). As intimidações e as agressões a cidadãos baianos, com a vexatória participação de policiais militares, assim como o discurso infame de capitão-do-mato do vereador que condenou os oprimidos, em episódios outrora experimentados por pobres de etnias europeias e asiáticas (portugueses, italianos, alemães, chineses, japoneses), seguiram normas não escritas de naturalização de um sentimento de superioridade. 

É reconfortante crer que os rumos da coletividade são traçados “de baixo para cima”. Mas seria um erro crasso responsabilizar pela ignomínia a base da pirâmide social. Em uma sociedade hierárquica os responsáveis acham-se sempre no topo. A extinção, pelo desgoverno nacional, do Ministério do Trabalho após 88 anos de atividades e o desmonte das equipes de fiscalização sobre as condições de empregabilidade, está na origem da escalada para o terror. Voltaremos ao tema. O bolsonarismo celebrou o “Brasil profundo”, ao enaltecer os sujeitos da dominação remanescentes da acumulação primitiva do capital (torturadores, milicianos, supremacistas). Porém, o espírito de emancipação do colono-imigrante de priscas eras revive na juventude, confrontando o totalitarismo da mercadoria. A prova é a unção de três guerreiros pretos (um rapaz, duas moças), de esquerda, para a Câmara de Vereadores caxiense. Uma elegeu-se deputada federal, em outubro. 

Lei das Terceirizações

O golpismo sintetizado na posse de Michel Temer (2016), e condessado em um documento, teve por objetivo legitimar a volta ao laissez-faire do século XIX, sem garantias legais às massas laboriosas. Intolerante e descomedida, a tal “Ponte para o futuro” jogou uma pá de cal na Nova República pós-democratização. A escravidão clássica foi reatualizada, estimulada e agravada com a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei das Terceirizações (2017). O atentado aos direitos trabalhistas foi homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF, 2018), sem dó. 

Segundo Luís Roberto Barroso, no artigo “Judicialização da vida”, inserido na obra comemorativa 130 anos: em busca da República, organizada por Edmar Bacha et alli: “(i) o direito do trabalho e o sistema sindical precisam se adequar às transformações no mercado de trabalho e na sociedade; (ii) a terceirização não enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários. O exercício abusivo da sua contratação é que pode produzir tais violações, existindo meios de prevenir e de reprimir tal comportamento”. Mas o solo histórico desmente a tese. Lembrar as datas refresca a memória.

O texto do ministro foi publicado em junho de 2019, seis meses após a predatória abolição do Ministério do Trabalho e do sucateamento da atuação dos órgãos de controle: as Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego (SRTE) e Gerências Regionais do Trabalho e Emprego (GRTE). Unidades de atendimento nos estados encarregadas pela execução, supervisão e monitoramento de ações relacionadas a políticas públicas de trabalho e emprego. Abusos eram previsíveis, quando se permitiu que a raposa se instalasse no galinheiro. Não à toa, os problemas triplicaram no “garrão da pátria”. Em 2021, os auditores fiscais do trabalho resgataram 69 vítimas no RS. Em 2022, foram 156. Em 2023, já são 208. Ops, em Uruguaiana, na fronteira Oeste estadual, outros 82 (entre eles, 10 adolescentes entre 14 e 17 anos) foram resgatados em duas fazendas de arroz, nas estâncias Santa Adelaide e São Joaquim. E recém estamos nas águas de março.

As digitais do Executivo, do Legislativo e do Judiciário estão na cena do crime, para a vida “se adequar às transformações no mercado de trabalho e da sociedade”. Não ocorre nunca aos doutos a preocupação com se adaptar às exigências para a criação de um Estado de Bem-Estar, com justiça social e ambiental, livre dos penduricalhos indecentes e indecorosos em determinadas carreiras. Não percebem o nexo causal ou agravante entre as premissas legalizadas e a conclusão na prática. Como no velho e sábio ditado, “pimenta nos olhos dos outros é colírio”.

A tempestade desumanizante não parou por aí. A contrarreforma do ensino médio consagrou no currículo das escolas a divisão de trabalho vigente na sociedade. O desemprego se disseminou na escala de várias dezenas de milhões. A falta de moradia perdeu o guarda-chuva do Minha Casa, Minha Vida. A precarização mostrou-se um sinônimo perverso de achatamento salarial. O período de labor foi dilatado para afastar as aposentadorias. A perspectiva de mobilidade social cresceu como rabo de cavalo. A pobreza trouxe a fome e o desalento. Acirraram-se os ressentimentos que, por sua vez, conduziram às polarizações perigosas, de soma zero. O sonho que parecia sólido de uma governabilidade e sociabilidade cidadãs com liberdade, igualdade e solidariedade desmanchou no ar. O ódio sistêmico mirou nossos avanços civilizacionais. 

Os novos governantes (Lula / Alckmin) têm desafios que demandam engajamento e mobilização do “mundo do trabalho” (centrais sindicais, associações, movimentos sociais, entidades comunitárias), para ser enfrentados. Em contrapartida, as iniciativas governamentais devem interpelar o coração e a mente dos trabalhadores. Neste mandato, com normas de convívio não escritas que – para além do texto da Constituição – consolidem os valores democráticos. 

(*) Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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