Opinião
|
2 de março de 2023
|
11:44

Relações Brasil-África sob governo Lula 3: O que esperar? (por Deuinalom Fernando Cambanco)

Lula diz que irá retomar relação com os países africanos que foi a marca de seus governos anteriores. Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula
Lula diz que irá retomar relação com os países africanos que foi a marca de seus governos anteriores. Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

Deuinalom Fernando Cambanco (*)

O segundo turno das eleições presidenciais, ocorridas no dia 30 de outubro do ano passado, confirmaram o então ex-presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, como o próximo Presidente da República (cargo para o qual tomou posse no dia primeiro de janeiro do ano corrente), portanto, o grande vencedor daquele sufrágio. No embate, o ex-metalúrgico derrotou seu oponente, líder da extrema direita brasileira, o agora ex-presidente, Jair Messias Bolsonaro que, curiosamente, não reconheceu a derrota e, como se não bastasse, abandonou o País um dia antes do fim oficial do governo por ele liderado no último quadriênio, para entre outras coisas, evitar o cumprimento do tradicional protocolo de passação da faixa presidencial.

Sob seus quatro anos de governo, de 2019 a 2022, as relações Brasil-África conheceram consideráveis estrangulamentos e retrocessos, não apenas no campo diplomático (com encerramento das embaixadas brasileiras em diversos países africanos), como nos setores econômico-comerciais, culturais, sociais e etc. À partida, esse recuo não constitui nenhuma surpresa já que figurava na retórica do mandatário ainda na campanha eleitoral, portanto, antes de sua chegada ao Planalto, quando já assegurava, sem qualquer reserva, que a prioridade da política externa sob seu comando seria a relação com os Estados Unidos e com a Europa.

Na contramão disso, o seu adversário, o agora (novamente presidente da República), Luiz Inácio Lula da Silva, nos seus primeiros dois mandatos, entre 2003 e 2010, priorizou o continente negro na agenda de sua política externa. Ao contrário de Bolsonaro, ele abriu diversas novas embaixadas por todo o continente, realizou dezenas de viagens e visitas aos seus homólogos africanos, fortaleceu alguns programas de cooperação já existentes e criou diversos outros, sobretudo no campo educacional e de cooperação técnico-científica.

Entretanto, importa salientar que todo esse movimento do presidente na ocasião não se limitava apenas a solidariedade, “pagamento de dívida histórica com o continente”, amizade entre os povos brasileiro e africano etc., vocabulários muito presentes em seu discurso, mas também, como é de se esperar em qualquer relação de cooperação, a projeção dos interesses brasileiros nas terras africanas. Não tenho nada contra isso, apenas achei prudente fazer menção a esse pormenor para não inspirar interpretações equivocadas, particularmente de pessoas leigas sobre a questão.

Bem, voltando a questão prévia, justifica destacar que o presidente afirmou inúmeras vezes, antes, durante e após o pleito eleitoral que a África voltará a constar na lista de prioridades na agenda da política externa brasileira. Voltou inclusive a enfatizar isso assegurando a uma jornalista angolana, quando da sua visita aos Estados Unidos, a pretensão de muito brevemente visitar aquele e outros países do continente. “Estou a organizar agora, certamente, uma viagem para três países africanos: quero ir a Angola, África do Sul e Moçambique, numa demonstração de que o Brasil vai a reatar a sua forte relação com o continente africano”.

Como africano (da Guiné-Bissau) no Brasil há quase uma década fico feliz e entusiasmado com a promessa e disposição do presidente. A boa relação cultivada com o continente a partir de seus anteriores governos, particularmente na seara educacional, por exemplo, resultou, entre outras coisas, em minha vinda (não apenas minha, mas de incontáveis outros colegas de diversos países do continente) ao Brasil com a finalidade de realização de formação acadêmica. A partir desse fato, penso que as relações entre os nossos povos, portanto, devido as questões histórico-culturais que nos conectam, deveriam transcender as cores partidárias e nunca serem menosprezadas e relegadas a tamanha insignificância que foi no último quadriênio, por esta ou daquela tendência política; esse é o apelo que aproveito para fazer a classe política brasileira no seu todo, não apenas ao presidente.

Conforme já mencionei, em seus mandatos anteriores se registrou um forte engajamento (quiçá sem precedentes) com o continente, notavelmente no universo educacional, mas espero que nesse novo mandato (e me disponho a colaborar na medida que puder, por que não?!) o presidente traga para o centro da agenda cooperativa com o continente – tanto no âmbito multilateral (Brasil-União Africana) quanto no âmbito bilateral com cada país – não apenas o já destacado setor educacional, mas também setores tão importantes quanto, como o de esporte, cultura e meio ambiente.

A sociedade brasileira precisa conhecer mais sobre o continente (sobretudo para combater narrativas preconceituosas e discriminatórias) e pode-se lograr isso, em minha percepção, apenas com forte interação e intercâmbio, não apenas no campo acadêmico-científico (que também deve continuar na ribalta), mas particularmente nos campos esportivo, por um lado, com articulação de atividades esportivas e recreativas com pendor educacionais; e, por outro, no da cultura, com promoção (com mais volume e frequência) de atividades culturais com vista a facultar um conhecimento positivo (no verdadeiro sentido do termo) tanto aos brasileiros sobre o continente e vice-versa.

Sem uma cooperação forte e positiva nesses setores e, em particular o da cultura, assim penso, será difícil “vencer” a ignorância sobre o continente que infelizmente ainda acomete uma parte considerável da sociedade brasileira. Sem o fortalecimento de laços culturais, a própria lei 10.639, que obriga o ensino de história e cultura da África nas escolas brasileiras, não fará devidamente jus a razão de sua preconização. A mesma interpretação vale para as diversas outras leis e medidas preconizadas nesse viés.

Na verdade, com o seu fortalecimento poderá se evitar casos de assassinatos covardes e literalmente movidos por xenofobia e preconceito para com os africanos, como o de congolês Moise Kabagambe, na Barra da Tijuca-RJ; poderá, ainda, se evitar a histórica demonização das culturas e tradições africanas e, consequentemente, extirpar as agressões que as próprias religiões de matrizes africanas no Brasil, como o candomblé, sofrem diuturnamente.

Espero que essa possível retomada da relação entre ambos, nessa nova era, também cubra e/ou abranja fortemente o setor ambiental, não menos importante, no qual o Brasil é um inquestionável expert, por entre outras coisas possuir a maior floresta tropical de que se tem conhecimento, refiro-me claramente a floresta amazônica. Durante a cúpula do G20 em novembro do ano passado, em Bali, na Indonésia, foi anunciada a assinatura de um acordo trilateral entre Brasil, Congo e Indonésia para aprofundamento de intercâmbio no setor ambiental e na consequente proteção das florestas tropicais. Lembrando que os três países são países com maior área coberta de florestas tropicais do mundo.

A expectativa de minha parte aqui é de que esse acordo não se limite apenas ao Congo, no caso africano, mas que se estenda para outros países do continente. A cooperação nessa área entre o Brasil e o continente é deveras importante na minha visão. O continente apresenta um quadro muito forte de vulnerabilidade a mudanças climáticas, já que possui dezenas de países costeiros. Apresenta, outrossim, um forte problema de extrativismo centrado justamente nos abundantes recursos naturais que possui. O Brasil, curiosamente, também depara com esse mesmo problema com os garimpos ilegais que ocorrem na região amazônica, entre outras questões. Compartilhamos, no fim das contas, as mesmas problemáticas climáticas e ecológicas.

Portanto, há um cenário concreto para que a cooperação nesse e nos já mencionados setores entre ambos ocorra de forma mais natural possível; um cenário que, se bem compreendido e explorado, por assim dizer, todos saem a ganhar, um com a experiência e expertise do outro. Enfim, todas essas questões aqui externadas refletem as minhas expectativas e aspirações (que creio também serem de boa parte de africanos e africanas no Brasil, no continente e em sua vasta diáspora) sobre como se devem desenrolar as relações Brasil-África nesse novo período.

Reconheço, no entanto, que não constituem e não constituirão panaceias para os grandes desafios existentes na relação de cooperação entre ambos, mas tenho certeza que, se chegarem às autoridades competentes e forem de fato encaradas com devido mérito, poderão ricamente contribuir para dar novos e esperançosos rumos às nossas históricas e incontornáveis relações. No mais, desejo ao presidente e a todo seu staff uma boa sorte na gestão do País e que possa fazer o melhor para uma excelente relação entre nossos povos! Brasil-África, África-Brasil: E Pluribus Unum!

* Mestre e doutorando em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora