Opinião
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3 de fevereiro de 2023
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08:21

24 anos do sistema de metas de inflação: um breve balanço (por Flavio Fligenspan)

Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

Nosso sistema de metas de inflação existe desde 1999, quando desmoronou a âncora cambial que havia segurado a inflação nos primeiros anos do Plano Real com um dólar artificialmente barato. A crise dos primeiros dias de 1999 deixou a economia brasileira órfã de uma política de controle dos preços até o meio daquele ano, quando o novo Presidente do Banco Central (BC), Armínio Fraga, implantou o sistema de metas. Naquele momento da história ainda eram poucos os países que adotavam tal política, que se disseminou a seguir.

Com variações entre os diversos países, o sistema é relativamente simples. Fixa-se uma meta anual com antecedência de dois ou três anos e procura-se atingi-la, usando a taxa de juros como instrumento central. Se a inflação anual ameaça extrapolar a meta, o BC eleva os juros, segurando a demanda (a atividade econômica) e tentando, com isso, trazer os preços de volta ao pré-estipulado. Como se vê, está implícito um diagnóstico de inflação de demanda, o que nem sempre é correto. Além do ponto central da meta, há também uma margem ou intervalo para erros, para mais ou para menos, igualmente pré-fixada, que deve absorver choques de oferta. Assim, por exemplo, se os preços das commodities nos mercados internacionais sobem por qualquer motivo e isto impacta a inflação no Brasil, esta margem (intervalo de tolerância) deve servir para acomodar elevações de preços domésticos, considerando-se que o objetivo foi atingido, ainda que a inflação tenha ficado além do ponto central (meta).

Claro que aí já se identifica um importante problema do sistema; se o choque de oferta for grande, a tolerância não será suficiente e a meta não será cumprida, mesmo que os juros sejam bem elevados. E tanto pior, os juros em alta contém a atividade, mas não evitam o choque e seus efeitos sobre a inflação, até porque não se trata de uma inflação de demanda. Ou seja, se faz um diagnóstico errado – de inflação de demanda –, se contrai a economia, com todos os efeitos colaterais negativos, e não se controla a inflação.

No final de 2022 o sistema de metas brasileiro completou 24 anos e me propus a fazer um balanço deste período já longo. Incrivelmente, em 18 dos 24 anos a inflação esteve acima do centro da meta. E em seis destes 18 anos (2001, 2002, 2003, 2015, 2021 e 2022), a inflação – medida pelo IPCA – foi maior que o limite superior da meta, a margem. Esta informação simples já indica que o sistema não teve bons resultados.

Tentei avaliar com um pouco mais de detalhe a experiência brasileira com o sistema e verifiquei que em 13 anos (dos 24) houve choques de oferta. Arbitrei, para tanto, que os choques de oferta teriam ocorrido quando as elevações dos preços no atacado (IPA) fossem 50% superiores às dos preços do índice de referência para o cumprimento da meta, o IPCA (preços ao consumidor). Por razões diversas, em vários destes anos os preços no atacado variaram bem mais do que o dobro da alta dos preços ao consumidor, o que indica que a economia brasileira é bastante sensível a choques de oferta, tornando ineficaz a alta dos juros.

Podemos avançar na análise, atendo-se aos 18 anos em que a meta não foi cumprida. Se cruzarmos duas variáveis observadas para estes 18 anos, aparece uma relação significativa; em 10 destes anos a meta não foi cumprida e, simultaneamente, houve choques de oferta, ou seja, os choques têm peso na história recente de insucesso do controle da inflação brasileira. Avançando um pouco mais, observa-se que dentre estes 10 anos em que se combinam não cumprimento da meta e choques de oferta, há cinco anos em que também se verifica uma baixa utilização da capacidade instalada na indústria (UCI), variável utilizada aqui como critério para identificar a não ocorrência de excesso de demanda (considerou-se baixa UCI percentuais menores que a UCI média de todo período, que foi de 80,4%).

Ora, tal combinação de variáveis nos informa que a meta não foi alcançada, os choques de oferta foram importantes para este resultado e não se verificaram excessos de demanda, logo não tinha sentido aplicar o remédio usual do sistema de metas de inflação, a alta dos juros, porque a demanda (fraca) não ajudava a explicar a inflação, isto é, não havia excesso de demanda a ser contido. A despeito desta combinação de variáveis e a despeito do fato de que nossa taxa de juros já é historicamente alta, em três destes cinco anos (1999, 2002 e 2021) o BC elevou a taxa de juros básica da economia brasileira, a SELIC. Penso que neste ponto do argumento já está claro que o sistema é falho e/ou não deve ser aplicado da forma pura como o fazemos no Brasil.

Diante do pouco sucesso do sistema, já há muito se discutem possíveis ajustes. Aqui mesmo, nesta Coluna, tenho insistido em pelo menos dois ajustes simples e eficazes: a adoção de núcleos da inflação, ao invés de se usar o “índice cheio”; e a ampliação do período para verificar o cumprimento da meta, que no nosso caso é o ano calendário, um intervalo reconhecidamente muito curto. Na verdade, o BC até já vem estendendo informalmente o período sem o anunciar, visto que toma ações quanto aos juros sempre mirando o “horizonte relevante” da política monetária, que é algo em torno de 18 meses, o tempo necessário para a variação dos juros surtirem efeito.

É com base no insucesso do sistema de metas e nas possibilidades de ajustes que tem se aberto um debate sobre aprimoramentos e eventuais mudanças de parâmetros. Um dos pontos importantes deste debate é reavaliar a meta que está estipulada, mais especificamente, o caminho de redução da meta que se adotou no Brasil, de forma a se chegar a 3% em 2024, tal como outros países que adotam o sistema, o Chile, por exemplo, e aproximá-la das metas de 2% dos países desenvolvidos em geral.

A pergunta relevante é: seria esta uma meta factível para o Brasil, uma economia com problemas estruturais, com histórico de inflação alta e com um ainda alto nível de indexação? Agregue-se a isto o fato de que o Conselho Monetário Nacional não chegou a este número mágico (3%) após estudos técnicos que o recomendassem, mas somente em busca da equiparação com as metas de outros países que usam o sistema. Alguns participantes do debate argumentam que, dadas as características da economia brasileira, uma inflação em torno de 4% ao ano pareceria um parâmetro mínimo mais adequado à nossa realidade; além disso, seria recomendável a ampliação da margem, que já foi de dois pontos percentuais e passou a um ponto e meio desde 2017. Ou seja, nos últimos anos, tanto o centro da meta como as margens foram reduzidos, exigindo apertos maiores da política monetária.

O contra argumento é que não vivemos um bom momento para alterar os parâmetros do sistema, pois com inflação alta, além do limite superior da meta, esta atitude poderia parecer uma tentativa de mudar a regra no meio do jogo, dando uma impressão negativa de manipulação. Isto poderia deteriorar as expectativas, também uma variável importante do sistema, e acabar por causar um efeito oposto ao esperado, exigindo taxas de juros ainda mais elevadas.

Ocorre, porém, que este debate se dá num momento histórico bem específico, em que a inflação aumentou em todo o mundo em função da pandemia, das tensões geopolíticas EUA-China e da Guerra na Ucrânia. Este novo ambiente trouxe aumentos generalizados de custos (observe-se, inflação de custos, não de demanda) desde 2020, suficientes para se propor adaptações das metas anteriormente estipuladas e do próprio sistema. Se isto é verdade para vários países, e são indiscutíveis os aumentos de custos mundo a fora, porque não para o Brasil?

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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